Inteligência artificial e direito digital
Autor | James Magno A. Farias |
Páginas | 138-177 |
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James Magno A. Farias
CAPÍTULO 3
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E
DIREITO DIGITAL
3.1. Inteligência articial: origem e futuro
O caminho do Direito Digital ainda é incipiente, porém, está repleto de
possibilidades que podem levar ao desenvolvimento de novas ferramentas ele-
trônicas que, certamente, vão auxiliar o sistema de justiça em seus objetivos de
aperfeiçoar sua prestação jurisdicional. A inteligência articial é uma dessas no-
vas possibilidades que podem ter aplicação ao Direito Digital. Porém, o avanço
da inteligência articial nas estruturas do mundo digital tem gerado grandes
discussões neste século.
Paulo Victor Alveo Reis deniu muito bem inteligência articial como “a
possibilidade das máquinas – aqui compreendidas como computadores, robôs
e demais dispositivos e sistemas com a utilização de eletrônica, informática,
telemática e alcançadas tecnologias algorítmicas – executarem tarefas que são
ou demandam características precípuas da inteligência humana, tais como com-
preensão de linguagens, reconhecimento de objetos e sons, raciocínio, solução
de problemas etc.”(497).
As origens da inteligência articial não são recentes, estão em 1956, no
campus da Faculdade Dartmouth, nos Estados Unidos, quando o cientista John
McCarthy denominou de inteligência articial a nova área de pesquisa realizada
em computação, com o desenvolvimento de um programa de aprendizado da
máquina, chamado LIPS, criado para jogar xadrez no computador(498). Em 1988,
Kai-Fu Lee criou o Sphinx, o primeiro programa do mundo desenvolvido para
reconhecimento de voz, baseado em uma técnica semelhante às redes neurais(499).
No entanto, foi no nal do século passado que a IA adquiriu muita visibilidade,
diante do aumento signicativo de suas aplicações em diversos segmentos téc-
nicos e cientícos. No histórico dia 10 de fevereiro de 1996, o computador Deep
(497) REIS, Paulo Victor Alfeo. Algoritmos e direito. São Paulo: Almedina, 2020. p. 133.
(498) REIS, Paulo Victor Alfeo. Algoritmos e direito. São Paulo: Almedina, 2020. p. 134.
(499) LEE, Kai-Fu. AI powers: China, Silicon Valley and the new world order. Boston: Houghton Miin
Harcourt, 2018, posição 192. Kindle.
Direito, Tecnologia e Justiça Digital
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Blue, da IBM, derrotou o campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov, e, pela
primeira vez, uma máquina venceu uma partida contra um humano, feito notável
diante do fato de isso ter ocorrido em um jogo ancestral, complexo, e, supunha-se,
que seria sempre dominado apenas por humanos. Atualmente, aquela façanha
parece pequena diante do que a tecnologia já evoluiu desde então(500).
A IBM tem investido fortemente, desde a primeira década deste século, no
desenvolvimento de sua famosa inteligência articial Watson, a ponto de tercei-
rizar sua tradicional produção de computadores para a chinesa Lenovo, em prol
de atuar apenas na evolução de sistemas e softwares inteligentes. Watson consegue
fornecer diagnósticos médicos com extrema precisão, e, também, é um poderoso
banco de dados posto à disposição dos sistemas de educação, além de gerar muitas
funcionalidades em diversas áreas de conhecimento(501).
O impacto da inteligência articial ainda está sendo dimensionado. Evgeny
Morozov armou que “desde educação a seguros, passando pelo uso de energia
aos serviços bancários, setores inteiros e áreas da sociedade são transformados
pela inteligência articial”(502). De acordo com Morozov, o desenvolvimento da
inteligência articial está relacionado diretamente ao volume de dados coletados
na internet e ao grande uso que os internautas fazem dos aplicativos instalados
em seus dispositivos eletrônicos, o que acaba por gerar ainda mais aprendizado
para a máquina.
Kai-Fu Lee classicou as ondas de evolução da inteligência articial em
quatro espécies: IA de internet, IA de negócios, IA de percepção e IA autônoma.
Na IA de internet, os algoritmos são usados para oferecer recomendações de
conteúdos diversos ou sugestões de compras, produtos e serviços, o que é feito
diariamente pelos mais diversos sítios digitais de compras. Na IA de negócios,
os algoritmos mineram os bancos de dados digitais em busca de informações
para diversas funcionalidades, por exemplo, quando um banco analisa os ris-
cos na concessão de um empréstimo, apreciando todas as informações digitais
disponíveis, muitas das quais os humanos às vezes não conseguem identicar.
Na IA de percepção, os algoritmos organizam as imagens e sons em bancos de
dados, que lhes permitem identicar a realidade física, o que a câmera de um
smartphone já faz quando desbloqueia a tela do aparelho ao reconhecer o rosto
cadastrado do proprietário (face id), assim como tem sido feito nos sistemas de
reconhecimento facial com suas multifuncionalidades, desde segurança pública
até vigilância aduaneira e de fronteiras. Na fase da IA autônoma, que ainda não
(500) LEE, Kai-Fu. Inteligência articial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos,
nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. p. 17.
(501) IBM. Disponível em: <https://www.ibm.com/watson/br-pt>. Acesso em: 07.03.2018.
(502) MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora,
2020, p. 184.
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aconteceu plenamente, haverá a sucessão das atuais máquinas automatizadas
por máquinas autônomas, capazes de ver e escutar o mundo ao seu redor, a m
de tomar decisões de modo independente, sem ter de receber o comando de um
ser humano(503).
A respeito do comando humano, Nick Bostrom alertou sobre o risco de
extinção que a humanidade corre se a inteligência articial sair de controle.
Bostrom partiu do princípio de que a máquina não está presa a condicionantes
sensoriais, como a ética ou as leis, e, se puder subscrever suas próprias tarefas,
a humanidade é que poderá ser vista como um empecilho a ser eliminado pelas
máquinas(504). Bostrom armou que uma IA hostil “poderia encontrar maneiras
sutis de esconder suas reais capacidades e suas intenções comprometedoras”, e
mesmo que os programadores tentem monitorar secretamente seu código-fonte,
“uma IA esperta o bastante perceberia a vigilância e ajustaria seus pensamentos
de acordo com essa realidade”(505).
O temor da “singularidade”, o momento no qual a IA assumiria o comando
de todas as decisões no planeta, tem movido grandes debates. Nick Bostrom ar-
mou que alguns teóricos, como Ray Kurzweil e Vernon Vinge, usaram o termo de
forma confusa e “vem acumulando uma aura profana (porém, quase apocalíptica)
e com conotações tecnoutópicas”(506). Bostrom denominou de “curva traiçoeira”
o fenômeno que ocorre no momento em que uma IA, antes fraca e cooperativa,
torna-se mais forte e inteligente, permitindo que, então, ela forme um singleton(507),
para atacar e assumir determinada posição de poder, “otimizando diretamente o
mundo de acordo com o critério sugerido por seus valores nais” (508). Singleton é o
termo que Nick Bostrom utilizou para definir “uma ordem mundial onde haveria
uma única agência para tomar decisões a nível global”, solucionando todos os
problemas. Entretanto, o singleton poderia ser tanto uma democracia mundial,
uma ditadura mundial ou uma inteligência articial poderosa que eliminasse
qualquer rival(509).
(503) LEE, Kai-Fu. Inteligência articial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como
amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. p. 155-158.
(504) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 220.
(505) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 222.
(506) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 24.
(507) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 481.
(508) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 225.
(509) BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio
de Janeiro: Dark Side Books, 2018, p. 204.
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