A razoável duração do processo eletrônico

AutorJames Magno A. Farias
Páginas178-233
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James Magno A. Farias
CAPÍTULO 4
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO
ELETRÔNICO
4.1. Jurisdição e acesso à e-Justiça
Nos primórdios da Antiguidade imperava “a lei do mais forte” como meio
para impor a vontade de um indivíduo ou de um grupo contra outrem. Ao longo
da história, houve uma lenta evolução das formas de solução dos conitos de
interesses intersubjetivos, desde a força bruta, sequenciada pela autocomposição,
pela arbitragem, até chegar à jurisdição eletrônica no século XXI.
Eduardo Couture aplicou a expressão autotutela em referência à força inata
ao direito de resistência(649). José Eduardo Carreira Alvim, por sua vez, deno-
minava de autodefesa o direito de resistência diante da violência privada(650).
Mesmo na atualidade, ainda há nítidos resquícios de autotutela ou autodefe-
sa, como ocorre na resistência a esbulho, na prisão em agrante, no estado de
necessidade ou na legítima defesa de direito próprio ou de outrem(651). Após
séculos de imposição da autotutela, a autocomposição passou a ser utilizada
para a resolução de conitos. Considerada uma forma compositiva autônoma,
a autocomposição, segundo José de Albuquerque Rocha, consiste no uso de
“meios persuasivos e consensuais” para a busca de uma solução comum para
o conito. Para Albuquerque Rocha, a autocomposição costuma ser subclas-
sicada em três formas: a desistência, que consiste no abandono unilateral da
pretensão; a submissão, que revela o acatamento sem oposição da vontade da
outra parte; e a transação, que consiste em concessões recíprocas, que melhor
satisfaçam os interesses de ambos os contendentes(652). Apesar de ser, a princípio,
um método bastante simples de operacionalizar, a autocomposição é uma ma-
neira muito recomendável para resolver conitos, pois permite que os próprios
envolvidos, diretamente entre si, possam solucionar seus problemas de forma
(649) COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
p. 154.
(650) ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 21.
(651) ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13.
(652) ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13.
Direito, Tecnologia e Justiça Digital
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dialogada, informando as diculdades presentes no caso concreto e cientes de
toda a problemática que a realidade fática envolve.
Destarte, desde a Antiguidade, têm sido construídos mundo afora modelos
baseados em regras com poder suciente para sobrepor-se à vontade das partes
e no intuito de diminuir a vingança privada entre os contendentes. Na antiga
Grécia, no Tribunal de Areópago, fundado em Atenas por volta de 460 a.C.(653),
os Arcontes decidiam os conitos de sangue, atribuição que foi desempenhada
posteriormente em Atenas pelos Tesmótetas e em Esparta pelos Éforos(654).
Porém, foi em Roma que surgiu o modelo que mais inspirou a atual es-
trutura judicante adotada no mundo ocidental. O Pretor foi criado em 387 a.C.,
na vigência da Lei das XII Tábuas, de 450 a.C., para cuidar da administração
da justiça, concentrando em si duas funções: o judicium, o poder de decidir,
e o imperium, espécie de poder de polícia e de comando, inclusive de tropas
militares(655). José Cretella Jr. escreveu que em Roma havia o Pretor urbano e o
Pretor peregrino; o primeiro julgava casos entre cidadãos romanos; o segundo
julgava casos entre estrangeiros ou entre esses e os romanos. José Cretella Junior
armou que, posteriormente, foi criado o Edil cural, “para julgar questões de
venda animais e escravos”(656). Ao longo do tempo, o sistema de justiça em Roma
cou ainda mais organizado. Após superar a fase processual calcada na litiscon-
testatio(657), na qual as partes levavam a disputa para a apreciação presencial do
Pretor, que decidia oralmente, foram criadas as guras do Advocatus Fisco, do
Defensor Civitatis e do Procuratoris Caesaris, cada qual com uma função especí-
ca, como realizar a petição por cobrança de impostos, a defesa dos cidadãos
e a defesa dos interesses dos governantes(658).
Após a desintegração do Império Romano do Ocidente no século III, diante
das Invasões Bárbaras, os sistemas de justiça encontrados na Europa medieval
eram construtos que descendiam do antigo Direito Romano e do Direito Bizan-
tino. Havia também a Common Law inglesa, o Direito dos povos germânicos, o
Direito Canônico, além do Direito Islâmico(659). Durante os últimos séculos da
Idade Média na Europa, a função jurisdicional, lentamente, passou a substituir
a vingança privada e impôs a prevalência do poder decisório estatal. Guilherme
Guimarães Feliciano armou que a Magna Charta inglesa formalizou o julgamento
(653) OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2007. p. 107.
(654) MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministér io Público. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 59.
(655) CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 290.
(656) CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 290.
(657) DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 31.
(658) MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministér io Público. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 60.
(659) FELICIANO, Guilherme Guimarães. Por um processo realmente efetivo: tutela processual dos
direitos humanos fundamentais e inexões do due process of law. São Paulo: LTr, 2016. p. 152.
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por júri colegiado (Trial by Juri), modelo que, desde então, faz parte da tradição
da Common Law. Feliciano armou que os povos germânicos já mantinham estru-
turas com tribunais e juízes expertos, denominados, respectivamente, de Mallum
e Urteilnder (“o dizedor do direito”)(660). Na Idade Média, também apareceram
guras ancestrais que exerceram funções que hoje são desempenhadas pelo Mi-
nistério Público, como os Missi Dominici e os Senescais, que faziam a defesa dos
interesses dos senhores feudais, além do Gemeiner Anklanger, o acusador comum
nos antigos domínios germânicos(661).
Segundo Hermes Afonso Tupinambá Neto, em 1426, em Paris, 24 cidadãos,
chamados Prud’hommes, foram escolhidos pelo Conselho Municipal para auxiliar o
Magistrado (Prévot) a resolver os conitos entre comerciantes e fabricantes; e assim
foi feito até 1776, quando os Prud’hommes foram extintos e os conitos laborais
passaram a ser solucionados pelos magistrados, pelo Prefeito de Polícia e pelos
comissários(662). Porém, em 1806, foram criados os Conseils des Prud’hommes, já na
vigência do Código de Napoleão, com a função de decidir os conitos laborais
entre patrões e empregados, revivendo a ideia original dos Prud’hommes, e que
estão na origem da atual Justiça do Trabalho francesa(663).
Entretanto, apesar de os Estados terem progressivamente diminuído os po-
deres do clero e dos senhores feudais, as populações europeias ainda viviam em
condições muito precárias, com baixa expectativa de vida, sob fome e doenças
endêmicas, como as terríveis epidemias de cólera, varíola e peste bubônica(664).
No século XVI, iniciou-se o fortalecimento dos Estados Nacionais. Cleones Cunha
armou que foi a Paz da Vestefália e os dois tratados de paz assinados, em Müns-
ter e Osnabruck, em 1648, que, ao colocarem m à Guerra de Trinta Anos entre
católicos e protestantes, zeram surgir o Estado como hoje é concebido. Segundo
Cleones Cunha, os mencionados tratados de paz deram início ao Direito Interna-
cional moderno, quando foram estabelecidas “relações de respeito e equilíbrio
entre países soberanos e independentes”(665).
(660) FELICIANO, Guilherme Guimarães. Por um processo realmente efetivo: tutela processual dos
direitos humanos fundamentais e inexões do due process of law. São Paulo: LTr, 2016. p. 155.
(661) MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministér io Público. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 60.
(662) TUPINAMBÁ NETO, Hermes Afonso. A solução jurisdicional dos conitos coletivos no direito
comparado. São Paulo. LTr, 1993, p. 58.
(663) Esse modelo de representação tripartite trabalhista foi adotado em outros países do mundo,
como na Alemanha e no Brasil, neste, até 1999, quando a Emenda Constitucional n. 24 extinguiu a
representação classista. E está na essência do próprio modelo organizacional tripartite da OIT (Estado,
representantes de trabalhadores e representantes de empresas). TUPINAMBÁ NETO, Hermes Afonso.
A solução jurisdicional dos conitos coletivos no direito comparado. São Paulo: LTr, 1993, p. 58.
(664) HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das
letras, 2017. p. 17.
(665) CUNHA, Cleones. Relações Igreja-Estado. São Paulo: Fons Sapientiae, 2016. p. 115.

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