Execução das sentenças trabalhistas estrangeiras no ordenamento jurídico brasileiro

AutorLucas Scarpelli de Carvalho Alacoque
Ocupação do AutorMestrando em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
Páginas53-59

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1. Introdução

O fenômeno da globalização, característico da modernidade, avança de forma cada vez mais intensa com o passar do tempo, fazendo com que as fronteiras nacionais se tornem mais maleáveis e possibilitando a existência de relações jurídicas que superam limites territoriais.

Como consequência da formação de relações jurídicas entre indivíduos e empresas domiciliados ou estabelecidos em diferentes países, bem como entre os próprios Estados, surgem naturalmente conflitos de interesse envolvendo partes e bens jurídicos que desconhecem fronteiras. Tal situação tornou necessária a criação de métodos que tornem possível o cumprimento no Brasil das decisões judiciais prolatadas em um Estado estrangeiro, com o objetivo de assegurar a efetividade dos direitos das partes.

Dessa forma, uma rede de cooperação internacional em matéria jurisdicional foi progressivamente instituída, visando a evitar o descumprimento das sentenças prolatadas em outro país pela parte que se esconde por trás da soberania estatal, na tentativa de frustrar a execução do julgado. O auxílio interestatal, no qual se insere o Brasil, estimula uma releitura do conceito de soberania, antes compreendido de forma absoluta, e explicita a necessidade de integração entre os países para proteção dos direitos individuais, por meio de tratados internacionais.

Tratando-se de sentenças em matéria trabalhista, é evidente a necessidade de se efetivar da melhor forma possível os direitos por ela reconhecidos, dependendo tal decisão de rito especial e célere para seu efetivo cumprimento, rito esse seguido pelo órgão que se mostre mais preparado para fazê-lo. Ora, trata-se, normalmente, de sentença que reconhece ao trabalhador o direito ao pagamento de parcelas de caráter alimentar, garantidoras de sua dignidade.

O presente trabalho busca analisar a conformida- de do procedimento de reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras em matéria trabalhista no Brasil com o caráter especial desses direitos, essen-ciais para a garantia de uma existência digna.

2. Conceito e elementos de estado

A definição de Estado vem sendo desenvolvida há tempos pelos teóricos, sem que se tenha chegado a um conceito plenamente satisfatório em razão da grande complexidade do instituto. Pablo Ramella (1946. p. 6), sintetizando o pensamento clássico propagado no século XIX, afirmava que El estado es la nación juridicamente organizada. Tal entendimento, entretanto, foi superado pela doutrina moderna, tendo em vista o surgimento de uma diferenciação entre as concepções de Estado e Nação1.

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Atualmente, verifica-se que o conceito de Estado guarda maior profundidade: Dalmo de Abreu Dallari, a despeito da parcela da doutrina que o considera o ente estatal pessoa jurídica2, aprofunda a definição o apresentando como a "ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território" (DALLARI, 2005. p. 119), já explicitando, dessa forma os principais elementos que o compõem.

São, portanto, reconhecidos pela maior parte dos autores especializados como elementos essen-ciais da entidade estatal o povo, o território e a soberania, não havendo que se falar na existência de Estado caso falte qualquer um deles.

É denominado povo o "conjunto dos cidadãos, isto é, dos que podem votar e serem votados" (FIUZA, 1991. p. 47), sendo ele a parcela da população que possui o direito de sufrágio. Difere ele dos conceitos de população e nação, de acordo com a lição de José Luiz Quadros de Magalhães (2013):

O elemento povo não se confunde com população, que é mera expressão numérica, demográfica ou econômica que não revela o vínculo existente entre a pessoa e o Estado. Tampouco confunde-se com a palavra nação, que expressa somente a relação de pertinência a uma comunidade histórico-cultural, ou seja, o compartilhar de valores comuns em uma sintonia bem específica.

O território, por sua vez, é exposto como o âmbito de domínio especificamente soberano e palco do domínio estatal (ZIPPELIUS, 1997. p. 111), sendo descrito por Kildare Gonçalves Carvalho, inspirado em Kelsen, como o "referencial indispensável à fixação dos contornos geográficos do Estado e como limite espacial de validade de sua ordem jurídica". (CARVALHO, 2010. p. 114).

Por fim, caracteriza-se também a soberania como elemento essencial do Estado, sendo ela ponto-chave para a compreensão do atual procedimento de reconhecimento e execução de sentença estrangeira.

2. 1 Soberania

O último dos elementos essenciais do Estado, segundo a doutrina moderna, é resumido pelo binômio supremacia-independência: Darcy Azambuja (2005. p. 49) ressalta que "A esse poder do Estado, que é supremo, que é o mais alto em relação aos indivíduos e independente em relação aos demais Estados, os escritores clássicos denominam soberania".

Michel Foucault aborda com profundidade o atributo:

O Estado só se subordina a si mesmo. Não há nenhuma lei positiva, claro, nem tampouco nenhuma lei moral, nem tampouco nenhuma lei natural, no limite talvez nem mesmo nenhuma lei divina - mas essa é outra questão - em todo caso, não há nenhuma lei que possa se impor de fora ao Estado. O Estado só se subordina a si mesmo, busca seu próprio bem e não tem nenhuma finalidade exterior, isto é, ele não deve desembocar em nada mais que em si mesmo. (FOUCAULT, 2008. p. 389).

Apesar do radicalismo do autor francês, verifica-se que de fato a soberania pressupõe, inicialmente, uma relação de superioridade do Estado em face do indivíduo. Ramella (1946. p. 57) lembra que Ya no es el pueblo en sí mismo el que tiene el poder de decisión, sino que el pueblo lo ha transferido a la entidad Estado, que es superior y está por encima del mismo pueblo, fixando-se assim as bases para a legitimação do Estado Democrático de Direito.

Se por um lado a relação de supremacia revela o aspecto interno da soberania, seu aspecto externo é traduzido na independência do Estado em relação aos demais ordenamentos jurídicos. A bipartição conceitual é explicitada por Azambuja (2005. p. 50):

A soberania interna quer dizer que o poder do Estado, nas leis e ordens que edita para todos os indivíduos que habitam seu território e as sociedades formadas por esses indivíduos, predomina sem contraste, não pode ser limitado por nenhum outro poder (...) A soberania externa significa que, nas relações recíprocas entre os Estados, não há subordinação nem dependência, e sim igualdade.

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A Constituição brasileira de 1988 incluiu ambos os aspectos da soberania em seu texto de forma destacada, ao considerá-la fundamento da República e princípio das relações internacionais do país3.

No entanto, da interpretação sistemática do texto constitucional conclui-se que não é a soberania elemento irrenunciável, podendo ser relativizada de acordo com a vontade estatal.

2. 2 Cooperação internacional como mitigação do conceito clássico de soberania

Se nos primórdios a soberania era considerada um atributo absoluto, a hodierna intensificação das relações entre os diferentes países faz com que não seja mais possível pensá-la dessa forma. Essa é a lição de Karl Doehring (2008. p. 202-203):

Uma autonomia ilimitada dos Estados não mais constitui uma característica determinante dos Estados. Essa soberania é voluntária, delineável, dispensável e renunciável, de acordo com estipulações contratuais.

Diante desse cenário, podem os Estados abdicar de parte de sua...

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