O trabalho voluntário no Brasil: um olhar crítico sobre a prestação de serviços na copa do mundo de 2014

AutorRoberta Dantas de Mello
Ocupação do AutorDoutoranda e mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG.
Páginas96-102

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1. Introdução

O trabalho voluntário, por ter caráter de benevolência, não se encontra amparado pelo ordenamento jurídico trabalhista.

Entretanto, diante da renitente tentativa de fraude dos direitos trabalhistas pelos detentores de capital por meio de artifícios criativos para precarização nas contratações de trabalho, torna-se necessário um olhar crítico sobre as formas de pactuação que excluem a relação de emprego ou a tornam nebulosa de ser identificada.

No presente artigo, privilegiou-se a situação de contratação de prestador de serviços voluntários na Copa do Mundo de 2014. Para tanto, serão estudados, de forma breve, a concepção de voluntariado e alguns recortes jurídicos sobre a temática.

2. Breves linhas acerca do voluntariado e da sua concepção

A filantropia, que tem em sua essência o amor à humanidade, busca contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa por meio do voluntariado, das doações (ou donativos) e das ações sociais (sem fins lucrativos ou políticos).

O voluntariado decorre da motivação do indivíduo em buscar as causas que se identifique e que acredite com intuito de melhorar as condições de vida na sociedade. Assim, de forma livre, de acordo com as aptidões e a disponibilidade de horário, o prestador de serviços passa a desenvolver o trabalho voluntário em prol do público que tenha escolhido para beneficiar com suas ações.

A literatura especializada indica que o trabalho voluntário é impulsionado pelos sentimentos de compaixão, solidariedade e indignação contra a miséria humana.

De modo geral, a motivação básica para a ação voluntária se pauta no altruísmo. Desta feita, a execução de atividades voluntárias atende não somente às necessidades do próximo como também aos imperativos de uma causa.

No entanto há outros motivos que podem orientar a prática de serviços voluntários, como os de interesse próprio (de forma combinada ou não com o altruísmo).

Esse tipo de motivação, de cunho de interesse próprio, pode estar ligado a questões profissionais (trata-se do voluntariado com foco profissional, atrelado ao desenvolvimento de habilidades valorizadas pelo mercado de trabalho a fim de obter a experiência desejada) quanto ao proveito próprio (a título exemplificativo, a participação de construção

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de uma praça que poderá ser aproveitada pelo voluntário e pela sua família).

3. O trabalho voluntário no brasil: recorte jurídico

Há registro do trabalho voluntário no Brasil desde 1543 na capitania de São Vicente1.

O trabalho voluntário se contrapõe ao trabalho obrigatório (este, no sentido de trabalho-dever, como aquele prestado nos serviços militar e eleitoral) e ao trabalho forçado (decorrente de pena cominada em sentença criminal)2.

Ainda que de forma tímida, uma corrente do bem cresce pelo Brasil. De acordo com o estudo feito pela organização britânica Charities Aid Fundation (CAF), em 2012, estima-se que há 18 milhões de voluntários no Brasil, de maneira que o País assume o nono lugar no ranking mundial3.

Neste tópico será estudado o trabalho voluntário disciplinado pela Lei n. 9.608/98 e não aquele em sentido lato, objeto de várias áreas de conhecimento.

No Brasil, o trabalho voluntário encontra-se regulado pela Lei n. 9.608/984, in verbis:

Art. 1º Considera-se serviço voluntário, para fins desta Lei, a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade.

Parágrafo único. O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim.

Art. 2º O serviço voluntário será exercido mediante a celebração de termo de adesão entre a entidade, pública ou privada, e o prestador do serviço voluntário, dele devendo constar o objeto e as condições de seu exercício.

Art. 3º O prestador do serviço voluntário poderá ser ressarcido pelas despesas que comprovadamente realizar no desempenho das atividades voluntárias.

Parágrafo único. As despesas a serem ressarcidas deverão estar expressamente autorizadas pela entidade a que for prestado o serviço voluntário.

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.

Com base no texto legal, o serviço voluntário tem as seguintes características: deve ser prestado por pessoa física a entidade governamental ou privada sem fins lucrativos e voltada para objetivos públicos; a atividade voluntária não é remunerada e não gera vínculo empregatício; previsão de termo de adesão a ser firmado entre o indivíduo e a entidade pública/instituição privada de fins não lucrativos; possibilidade de ressarcimento das despesas no desempenho da atividade voluntária.

Acerca da elaboração da Lei do Voluntariado (Lei n. 9.608/98), Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena não duvida que o legislador brasileiro tenha se valido da influência do direito germânico para confeccioná-la. Porém, aduz que o texto da Lei n. 9.608/98 reflete uma inspiração até errônea da noção de serviço voluntário na Alemanha e a caracteriza como "deformadora arte da imitação". O jurista explica que o único ponto de contato entre a lei brasileira e o instituto desenvolvido na Alemanha seria que em ambos não há remuneração5.

No entendimento de Alice Monteiro de Barros, a legislação brasileira sobre o trabalho voluntário recebeu significativa influência da Lei italiana n. 266 de 1991, motivo pelo qual é nítida a semelhança de tratamento. A jurista aduz que o ordenamento jurídico italiano também trata o trabalho voluntário de forma distinta do subordinado e do autônomo. Porém ressalta um aspecto louvável da legislação italiana que não consta da previsão legal brasileira: a obrigatoriedade de o credor do trabalho voluntário fazer seguro contra infortúnio e doenças profissionais (seguro de natureza privada, não sendo gerido pelo órgão previdenciário), além da responsabilidade civil em relação a terceiros6.

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No âmbito juslaboral brasileiro, Mauricio Godinho Delgado define o trabalho voluntário como "aquele prestado com ânimo e causa benevolentes"7.

Nesta conceituação observa-se que a benemerência do trabalho voluntário se encontra prevista em duas dimensões de forma conjugada. A sua dimensão subjetiva se pauta na intenção graciosa do indivíduo no cumprimento da prestação laborativa. Já a segunda, sob a perspectiva objetiva do trabalho voluntário, diz respeito à presença de causa propicia-dora e instigadora do labor ofertado.

De forma similar, Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena observa que o trabalho voluntário comporta as acepções geral e individual, que são indissociáveis entre si. Na primeira, sob o aspecto geral, leva-se em consideração a vontade própria do interessado em prestar o serviço. Já na segunda, sob o aspecto individual, pauta-se em razão do seu conteúdo, ou seja, na execução da atividade não onerosa8.

No Direito, o que fundamenta subtrair, praticamente, qualquer proteção jurídica ao trabalhador nas relações de voluntariado seria a intenção graciosa do indivíduo no cumprimento da prestação laborativa, bem como a presença de causa propiciadora e instigadora do labor ofertado.

Em anteposição à onerosidade9, um dos pressupostos da relação de emprego, Mauricio Godinho Delgado observa que a graciosidade do vínculo de trabalho deve ser enfocada pela perspectiva do prestador de serviços, já que em todo labor, por mais simples que seja, há sempre certa transferência de valor econômico para quem recebe o serviço prestado.

A aferição da onerosidade ou da graciosidade se encontra na ocorrência ou não de efetivo pagamento. Se o pagamento apresentar caráter basicamente contraprestativo, está presente a onerosidade e, por conseguinte, não há enquadramento do trabalho voluntário. Ao revés, configura-se o clássico trabalho voluntário se constatada a inquestionável índole benevolente, a consistente justificativa para desempenho de serviço de natureza cívica, política, comunitária, filantrópica, religiosa e congêneres10 e as demais características inerentes ao instituto do voluntariado sob o enfoque do prestador de serviços. Evidentemente, cabe ao operador do Direito investigar, na relação sociojurídica concreta, a real intenção do indivíduo que ingressou na relação de trabalho.

Neste contexto, no que tange ao ramo juslaboral, em determinado caso prático deve ser arguido principalmente o princípio da primazia da realidade sobre a forma (art. 9º da CLT). Logo, comprovado o trabalho oneroso, abre-se a possibilidade até para o enquadramento de vínculo empregatício.

Quanto à regra do art. 3º da Lei n. 9.608/98, que prevê a possibilidade...

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