Repensando o sistema de enquadramento sindical: uma releitura à luz dos novos princípios constitucionais

AutorBruno Ferraz Hazan - Luciana Costa Poli
Ocupação do AutorDoutorando em Direito Privado pela PUC-MINAS. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MINAS. Professor - Pós-Doutoranda pela UNESP (Bolsista da CAPES/PNPD). Doutora em Direito Privado pela PUC-MINAS. Mestra em Direito e Instituições Políticas pela Universidade FUMEC/MG
Páginas137-147

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1. Introdução

A Constituição da República de 1988 inaugurou formalmente um novo paradigma: o Estado Demo-crático de Direito. Nele, a forma de se perceber o Direito, por meio da própria Constituição, faz com que a estrutura normativa até então concebida seja revista e reinterpretada, especialmente por meio dos princípios constitucionalmente assegurados.

Em relação ao Direito Coletivo do Trabalho, a Constituição inaugurou dois princípios basilares: a liberdade sindical e a autonomia sindical. A partir deles, o arcabouço legislativo sindical deve ser revisitado, em especial os pontos de contato entre a nova liberdade e autonomia propostas e a estrutura sindical corporativa ainda presente na legislação infraconstitucional.

O trabalho tem, portanto, o objetivo de apresentar propostas reinterpretativas relativas, particularmente, ao sistema de enquadramento sindical brasileiro com base em uma aplicação plena dos princípios constitucionais supramencionados.

Para tanto se deve, inicialmente, perceber o papel do sindicato na construção do Direito do Trabalho - autonomamente concebido por meio do poder normativo das negociações coletivas - e sua importância na manutenção das conquistas trabalhistas e no desenvolvimento do próprio ramo justrabalhista.

Tal perspectiva deve ser confrontada com as premissas limitadoras do sistema de agregação corporativista baseado exclusivamente em categorias, estruturalmente contraditório com a perspectiva principiológica constitucional. A falta de plasticidade do enquadramento sindical oficial retira a possibilidade de reestruturação interna dos sindicatos, o que dificulta - e muito - a superação da crise pela qual passam.

A fim de se adequarem às novas necessidades da classe trabalhadora - além da necessidade do enfrentamento da crise - e a fim de a representarem adequadamente, propõe-se um novo caminho para a crise de identidade que acomete o sindicalismo brasileiro. Ao se reconfigurar o sistema de enquadramento sindical, espera-se que os sindicatos - readaptados e internamente remodelados - reassumam seu papel histórico na reconstrução do próprio Direito do Trabalho.

2. A importância e o papel do sindicato no desenvolvimento autônomo do direito do trabalho

Não se pode negar a importância dos sindicatos para o Direito do Trabalho, já que suas fontes mate-riais são atreladas, essencialmente, à questão social

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e ao agrupamento organizado dos trabalhadores, na luta por melhores condições de trabalho.

Assim, não é absurda a afirmativa de que o Direito do Trabalho tem, em seu nascedouro, a área coletiva que, por sua vez, criou as condições do surgimento da área individual, e isto por mais que algumas legislações, como a brasileira, privilegiem o Direito Individual sobre o Coletivo do Trabalho: "sob este aspecto pode afirmar-se que surgiu, primeiro, um Direito Coletivo impulsionado pela consciência de classe e, em seguida, um Direito Individual do Trabalho."1

Portanto, quase que intrinsecamente ao Direito do Trabalho, nasceu o poder das partes de construírem suas próprias condições de trabalho, por meio das negociações e lutas organizadas. Isso porque, quando de seu surgimento, o Estado, liberal, não exercia qualquer tipo de intervenção nas relações entre particulares, incluídas aí as relações trabalhistas entre patrão e empregado.

Assim, no sistema liberal, o trabalho se concretizou por meio das locações de trabalho, forma jurídica primeva de relação trabalhista. Tal forma de contratação se formatava pela autonomia da vontade entre os contratantes, consistindo no respeito total à liberdade volitiva do trabalhador e do empregador que se obrigavam um a prestar serviços e o outro a pagar salários, porém sem quaisquer outras implicações2.

No entanto, como a igualdade entre trabalhador e patrão era, por óbvio, meramente formal (não havia liberdade ou bilateralidade na estipulação das condições de labor) e como o patrão detinha, além dos meios de produção, todo o controle sobre a vida do trabalhador que dele dependia para sobreviver - destacando-se que sobreviver naquele período era, simplesmente, não morrer de fome -, por certo que esta relação "livre" não resistiria muito tempo.

As primeiras formas de produção capitalista eram disseminadas, descentralizadas. O empregador, assim, distribuía a matéria-prima e as máquinas aos trabalhadores que laboravam em suas próprias residências. O mercado, porém, exigia uma produção controlada, barata e regular. Com isso, o empregador reuniu seus funcionários em um mesmo local de trabalho.

Esta reunião fez com que os trabalhadores desenvolvessem consciência coletiva e a solidariedade do grupo passa a se colocar contra a exploração demasiada nas fábricas, com a conscientização de que apenas coletivamente poderiam lutar por melhores salários e condições de trabalho, e isto não obstante fosse juridicamente proibida a união dos trabalhadores, já que desequilibraria a balança do liberalismo, onde empregados e empregadores eram considerados iguais perante a lei. Isso, claro, não passava de mais uma falácia do sistema liberal:

Todo esse processo desvelava a falácia da proposição jurídica individualista liberal enquanto modelo explicativo da relação empregatícia, eis que se referia a ambos os sujeitos da relação de emprego como seres individuais singelos. Na verdade, perceberam os trabalhadores que um dos sujeitos da relação de emprego (o empregador) sempre foi um ser coletivo, isto é, um ser cuja vontade era hábil a detonar ações e repercussões de impacto social.

[...] Em comparação a ela, a vontade obreira, como manifestação meramente individual, não tem a natural aptidão para produzir efeitos além do âmbito restrito da própria relação bilateral pactuada entre empregador e empregado. O Direito Civil tratava os dois sujeitos da relação de emprego como seres individuais, ocultando, em sua equação formalística, a essencial qualificação de ser coletivo detida naturalmente pelo empregador.

O movimento sindical, desse modo, desvelou como equivocada a equação do liberalismo individualista, que conferia validade social à ação do ser coletivo empresarial, mas negava impacto maior a ação do trabalhador individualmente considerado. Nessa linha, contrapôs ao ser coletivo empresarial também a ação do ser coletivo obreiro3.

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A partir desta consciência coletiva4, os traba- lhadores é que conquistaram, pela força da união e autonomamente, sem ingerência estatal5, melhorias, mesmo que tímidas, nas condições de vida e labor.

Assim, as conquistas trabalhistas, coletivas e individuais passaram a se efetivar por meio das uniões sindicais dos trabalhadores em tratativas diretas com as empresas, de forma autônoma, especialmente porque estas não conseguiam seguir com seu desenvolvimento produtivo sem o trabalho.

Somente depois das grandes lutas operárias é que o Estado capitalista passou a regulamentar as condições de trabalho6 trazendo, para o seu controle, por meio do ordenamento jurídico, as conquistas trabalhistas já realizadas pela classe operária, em uma legislação social afastada do ramo civilista.

Note-se, portanto, que grande parte do movimento de construção normativa, culminado com a intervenção do Estado nas relações de trabalho, veio de "baixo para cima" e não de "cima para baixo".

Sendo assim, desde o surgimento do Direito do Trabalho, os atores sociais tiveram participação essencial na regulamentação de suas condições de vida:

A origem das negociações coletivas é atribuída à fase na qual o Estado era omissivo diante da questão social, diante de sua política liberalista, com o que surgiu a espontânea necessidade de organização dos trabalhadores em torno das organizações sindicais. Com a força da greve, os trabalhadores conseguiram levar seus empregadores a concessões periódicas, especial-mente de natureza salarial, estendendo-se para outros tipos de pretensões, hoje as mais generalizadas.

Formou-se assim um direito do trabalho autônomo7.

Desta forma é que se tem, como a mais específica deste ramo do Direito que, inclusive, o destaca dos demais outros, a função normativa que dá possibilidade de construção de normas (fonte formal de Direito) pelos próprios sujeitos da relação coletiva para o alcance da melhoria das condições dos trabalhadores que, certamente, leva à paz social e à redução das desigualdades entre o capital e o trabalho:

A geração de normas jurídicas é o marco distintivo do Direito Coletivo do Trabalho em todo o universo jurídico. Trata-se de um dos poucos segmentos do Direito que possui, em seu interior, essa aptidão, esse poder, que desde a Idade Moderna tende a se concentrar no Estado. A geração de regras jurídicas, que se distanciam em qualidades e poderes das meras cláusulas obrigacionais, dirigindo-se a normatizar os contratos de trabalho das respectivas bases representadas na negociação coletiva, é um marco de afirmação do segmento juscoletivo, que confere a ele papel econômico, social e político muito relevante na socie-dade democrática8.

Assim se fez o Direito do Trabalho, por meio do poder normativo9 conquistado, na luta, pela classe trabalhadora.

3. A estrutura sindical corporativa: uma mudança necessária

É de se destacar, entretanto, que toda esta postura do Estado capitalista, que se viu obrigado a aceitar como legais e legítimas tanto as organizações da classe trabalhadora quanto sua competência normativa, esteve vinculada à capacidade de mobilização dos trabalhadores. Assim é que a correlação de forças entre o capital e o trabalho é a força motriz do próprio Direito do Trabalho.

Ocorre que a estrutura sindical brasileira, implantada por Getúlio Vargas na década de 30, foi...

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