Funções essenciais à justiça

AutorEduardo dos Santos
Páginas689-732
CAPÍTULO XX
FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA
1. INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário, no desempenho de suas funções, precisa observar o princípio dispositivo
(princípio da inércia da jurisdição, ne procedat iudex ex off‌icio), não podendo os magistrados instaura-
rem e/ou manifestarem-se de ofício (sem provocação das partes) dentro do processo, salvo expressa
autorização legal (como a possibilidade de concessão de habeas corpus de ofício, por exemplo), 1
sendo essa uma das principais exigências (e garantias) do princípio do juiz natural, independente
e imparcial (art. 5º, XXXVII e LIII, CF/88) e de nosso modelo constitucional de processo.2
Em razão disso, para o desenvolvimento da dialética processual inerente ao due process,
a Constituição de 1988 institucionalizou, como funções essenciais à justiça, as atividades
prof‌issionais especializadas em impulsionar, movimentar e colaborar com a atividade
jurisdicional, isto é, aquelas atividades responsáveis por operacionalizar o princípio da
iniciativa das partes (nemo judex sine actore), que, embora não integrem o Poder Judiciário,
são essenciais e imprescindíveis à prestação jurisdicional e à realização da justiça.
Assim, nos termos constitucionais (arts. 127 a 135, da CF/88), são funções essenciais à
justiça: i) o Ministério Público; ii) a Advocacia Pública; iii) a Advocacia Privada; e iv) a Defensoria
Pública.
2. MINISTÉRIO PÚBLICO
2.1 Histórico, denição e natureza
Há na doutrina3 quem aponte que o Ministério Público tem suas origens no Antigo
Egito (há, no mínimo, 4 mil anos, com base no Magiai, funcionário do Real), em Esparta
(com base no Éforos, juiz que tinha, dentre suas funções, o dever de equilibrar o poder real
e o poder senatorial, exercendo o ius acusationis), na Roma Antiga (com base no advocatus
f‌isci e no procuratores caesaris, aos quais competia f‌iscalizar a administração dos bens do
imperador) e na Idade Média (com base em diversas f‌iguras, como o gemeiner Anklager, na
Alemanha, o Procurador da Coroa, em Portugal, e o Procurador do Rei, na França).4
Entretanto, a nosso ver, as origens do Ministério Público, tal qual o concebemos atu-
almente, remontam aos movimentos de limitação do poder real, de separação dos poderes e
de f‌iscalização da coisa pública, bem como às revoluções que deram origem às democracias
modernas, com destaque para a Revolução Francesa de 1789, sendo o parquet um produto
da Idade Moderna, da democracia e do Estado Constitucional de Direito.5
No Brasil, a história do Ministério Público pode ser assim sistematiza: no período
colonial, o Brasil foi orientado pelo direito lusitano, no qual não havia o Ministério Público
como instituição, mas as Ordenações Manuelinas de 1521 e as Ordenações Filipinas de
1. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo. Salvador: Juspodivm, 2020.
2. DOS SANTOS, Eduardo R. Princípios Processuais Constitucionais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
3. MAZZILI, Hugo Nigro. O ministério público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.
4. FERNANDES, Bernardo G. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
5. OTACÍLIO, Paula Silva. Ministério Público. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981.
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1603 já faziam menção aos promotores de justiça, atribuindo a eles o papel de f‌iscalizar a
lei e de promover a acusação criminal, existindo, ainda, o cargo de procurador dos feitos da
Coroa (defensor da Coroa) e o de procurador da Fazenda (defensor do f‌isco). No período
imperial, em 1832, com o Código de Processo Penal do Império, iniciou-se uma tímida
sistematização das ações do Ministério Público. Mas, foi no período republicano, a partir do
Decreto 848 de 1890, que o Ministério Público foi efetivamente organizado e estruturado,
tendo suas atribuições delineadas.
Já no âmbito do constitucionalismo brasileiro, temos que: i) a Constituição de 1824 não
fez referência expressa ao Ministério Público; ii) a Constituição de 1891, praticamente, não
tratou do Ministério Público, apenas dispondo sobre o Procurador-Geral da República; iii) a
Constituição de 1934 institucionalizou o Ministério Público, tratando especif‌icamente dele
no Capítulo dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais; iv) a Constituição de
1937, em função dos retrocessos totalitários da época, apenas dispôs sobre o Procurador-Geral
da República e a atuação do parquet nos tribunais superiores por meio do quinto constitucional;
v) a Constituição de 1946 fez referência expressa ao Ministério Público em título próprio sem
vinculação aos poderes; vi) a Constituição de 1967, em função dos retrocessos totalitários
da época, recolocou o Ministério Público no capítulo destinado ao Poder Judiciário; vii) a
Constituição de 1969 (Emenda Constitucional1, de 1969), fundada nos auspícios ditatoriais
e no controle e subserviência das instituições, tornou o Ministério Público órgão do Poder
Executivo; viii) a Constituição de 1988 conferiu, expressamente, independência e autonomia
ao Ministério Público, prevendo-o como uma função essencial à justiça, que não pertence a
qualquer dos poderes, def‌inindo e ampliando suas funções institucionais, enquanto f‌iscal da
ordem jurídica constitucional e democrática (custos constitucionis), conferindo-lhe garantias
institucionais aptas a assegurar o livre, imparcial e independe desempenho de suas funções.
Nos termos da Constituição de 1988, o Ministério Público é instituição permanente,
autônoma e independente dos demais poderes, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais
e individuais indisponíveis.
Assim, embora haja na doutrina, ainda, algumas poucas vozes que defendam que o Mi-
nistério Público tenha natureza jurídica de órgão vinculado ao Poder Executivo6 ou mesmo
de órgão vinculado ao Poder Judiciário, não resta dúvida, nos termos constitucionais, que
o parquet é uma instituição constitucional autônoma e independente, tendo natureza de órgão
público despersonalizado não vinculado a qualquer dos poderes.7
2.2 Princípios institucionais
Nos termos expressos do art. 127, §1º, da CF/88, são princípios institucionais do
Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Além desses,
a doutrina majoritária e a jurisprudência recente do STF reconhecem o promotor natural
como princípio institucional implícito do Ministério Público.
O princípio da unidade nos revela que o Ministério Público deve ser visto como uma
instituição única, que, embora possua uma divisão orgânica e funcional, tem como objeti-
vo comum o cumprimento de suas funções institucionais na defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
6. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
7. GARCIA, Emerson. Ministério público: organização, atribuições e regime jurídico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
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Entretanto, em que pese seja uma instituição única (una), o Ministério Público não
consiste em um órgão único, possuindo uma divisão orgânico-estrutural dada pela própria
Constituição (art. 128, CF/88), isto é, trata-se de uma instituição única que possui mais de
um órgão (existem diversos Ministérios Públicos que compõem a instituição Ministério
Público), tendo todos eles, entretanto, o objetivo comum de cumprir com as funções ins-
titucionais do parquet. Em suma: em linhas gerais, o princípio da unidade refere-se a uma
unidade institucional, teleológica e funcional, mas não orgânica.
Nesse sentido, justamente por reconhecer que não há unidade orgânica entre os
diversos Ministérios Públicos (por exemplo, entre o Ministério Público da União e os Mi-
nistérios Públicos dos Estados, ou entre o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e o
Ministério Público de Pernambuco) e, consequentemente, que não há hierarquia entre eles,
o STF8 e o STJ9 já decidiram que o Ministério Público de cada Estado possui legitimidade
autônoma para atuar como parte perante os tribunais superiores, através de seu respectivo
Procurador-Geral de Justiça ou de alguém designado por ele.10
Ademais, o princípio da unidade nos revela que, dentro de uma mesma estrutura orgâ-
nica do Ministério Público, todos os membros do parquet são dirigidos por um mesmo chefe
institucional, o Procurador-Geral. Assim, o Ministério Público da União é chef‌iado pelo
Procurador-Geral da República, do mesmo modo que cada Ministério Público Estadual é
chef‌iado por um Procurador-Geral de Justiça. Perceba que são vários órgãos do Ministério
Público que, em conjunto, formam uma unidade institucional: o Ministério Público.
Porém, é de suma importância registrarmos que o STF, ao julgar a ADPF 482, af‌irmou
que “só existe unidade dentro de cada Ministério Público, não havendo unidade entre o Ministé-
rio Público de um Estado e o de outro, nem entre esses e os diversos ramos do Ministério Público
da União”. A nosso ver, embora tenha sido utilizada para justif‌icar a acertada decisão de
vedação de transferência entre membros de parquets distintos, essa af‌irmação é um tanto
quanto infeliz, pois dá a entender que não há qualquer espécie de unidade entre os diversos
Ministérios Públicos previstos na Constituição, conclusão que está na contramão da previsão
constitucional do princípio da unidade do parquet.
Nada obstante, podemos concluir que, pelo princípio da unidade, o Ministério Público
é uma instituição una (unidade institucional, teleológica e funcional), mas possui divisões
orgânico-estruturais estabelecidas pela própria Constituição (portanto, em linhas gerais, não
tem unidade orgânica). Entretanto, a partir dessa divisão orgânica, dentro de cada Ministério
Público, há uma unidade mais ampla que abrange tanto a unidade institucional, teleológica
e funcional, quanto a unidade orgânica.
O princípio da indivisibilidade nos revela que a atuação dos membros do Ministério Pú-
blico é na verdade a atuação do próprio Ministério Público (não é possível dividir ou separar
a ação do membro da ação da instituição, quando este age no desempenho de suas funções
institucionais), assim, os membros do parquet podem ser substituídos uns pelos outros,
respeitado o princípio do promotor natural, sem que isso prejudique os atos já praticados,
vez que quando um membro do Ministério Público atua, na verdade, é o próprio Ministério
Público, enquanto instituição, que atua. A indivisibilidade, então, decorre da própria unidade
institucional (todos os membros de um determinado Ministério Público compõem e atuam
funcionalmente pela mesma instituição), da impessoalidade (o membro do parquet não age
8. STF, Rcl. 7.358, Rel. Min. Ellen Gracie.
9. STJ, EREsp. 1.327.573, Rel. Min. Nancy Andrighi.
10. Nada obstante, a atuação do Ministério Público, como custos legis, perante o STF e o STJ, nos expressos termos da
Constituição, é do Procurador-Geral da República (chefe do Ministério Público da União).
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