Poder legislativo

AutorEduardo dos Santos
Páginas517-574
CAPÍTULO XVI
PODER LEGISLATIVO
1. INTRODUÇÃO
A ideia de separar/dividir as funções estatais entre órgãos distintos encontra ante-
cedentes desde a Antiguidade Clássica, na obra de Aristóteles.1 Na Idade Moderna, John
Locke,2 tendo como pano de fundo o Reino da Grã-Bretanha pós Revolução Gloriosa, irá
defender uma separação entre as funções estatais, notadamente entre as funções legislativa
e executiva, vez que reuni-las em um mesmo órgão “seria provocar uma tentação muito forte
para a fragilidade humana, tão sujeito à ambição”.3
Inspirado pela obra de Locke e pelo modelo inglês de separação das funções estatais,
Montesquieu, após constatar, pela “experiência eterna”, que “todo homem investido no poder
é tentado a abusar dele” até que encontre limites, irá sustentar que a limitação de um poder
estatal somente é possível se existir outro poder capaz de limitá-lo.4 Assim, Montesquieu irá
propor um modelo de separação das funções estatais entre os poderes constituídos, em que
um poder irá limitar e controlar o outro impedindo o seu exercício arbitrário, um verdadeiro
mecanismo de freios recíprocos (checks and controls) visando o equilíbrio entre os poderes
(equilibrium of powers), estabelecendo, portanto, uma separação relativa das funções e não
uma separação absoluta, propiciando um ambiente político de interpenetração de compe-
tências e ingerências recíprocas entre os poderes e impedindo que apenas um órgão ou uma
pessoa concentrasse todo o poder estatal.
O pensamento de Montesquieu inf‌luenciou de forma determinante o constituciona-
lismo moderno, tendo inspirado fortemente os autores da Constituição dos Estados Unidos
da América do Norte de 1787, que estabeleceram um sistema constitucional com separação
e controle mútuo entre os poderes (checks and balances), em que os órgãos estatais possuem
a faculdade de impedirem-se reciprocamente.5 Do outro lado do mundo, com a Revolução
Francesa, tornou-se um dogma universal, ao ser consagrado no art. 16, da Declaração Uni-
versal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que assim expressa: “A sociedade em
que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não
A doutrina liberal do séc. XIX, de forma diversa da idealizada por Montesquieu, de-
fendeu uma separação rígida das funções estatais aos poderes constituídos. Contudo, essa
separação se mostrou inadequada ao longo do desenrolar da modernidade, especialmente
em face da complexidade política e social. Assim, contemporaneamente, a separação de
poderes não é vista com a rigidez de outrora, exigindo, para além da independência entre os
poderes, harmonia e colaboração para o bom funcionamento do sistema político.
Nesse cenário, a Constituição brasileira de 1988 foi categórica ao af‌irmar que os poderes
são independentes e harmônicos entre si (art. 2º), constituindo o princípio da separação dos
1. ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2006.
2. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
3. CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
4. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2009.
5. COOLEY, Thomas. Princípios Gerais de Direito Constitucional dos Estados Unidos da América do Norte. 2. ed. São
Paulo: RT, 1982.
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poderes cláusula pétrea (art. 60, §4º, III), engendrando um sistema de separação de funções
e distribuição de competências com o intuito de assegurar a independência, a harmonia e o
equilíbrio entre os poderes constituídos, bem como de controle recíproco entre eles (checks
and balances), de modo a evitar o abuso e o arbítrio por parte de quaisquer deles. Ademais,
nosso sistema constitucional consagrou um sistema em que cada poder exerce, de forma
predominante, uma função típica, mas, também, exerce, de forma excepcional, funções
atípicas (típicas de outros poderes).
As origens modernas do poder legislativo relacionam-se, especialmente, com o movi-
mento político e jurídico de limitação dos poderes dos reis. Como se sabe, durante a Idade
Média, a função legislativa, enquanto função de criar as leis e as normas sociais, estava
concentrada nas mãos do rei, do soberano, que detinha todo(s) o(s) poder(es). Esse sistema
vem a ser rompido, de forma relevante, num primeiro momento, na Inglaterra, no f‌inal do
séc. XVII, com a Revolução Gloriosa e a consagração da Carta de Direitos (Bill of Rights) e
o Act of Setlement, submetendo o rei ao parlamento inglês e conferindo a independência do
Poder Legislativo.
Para além de inspirar f‌ilósofos, como Montesquieu, esse movimento inspirou verdadei-
ras revoluções que vieram um século depois a consagrar a doutrina da separação de poderes
nas Constituições dos Estados Unidos da América do Norte e da França pós-revolução.
Assim, a função legislativa adquiriu independência e consagrou-se como um legítimo po-
der do Estado a ser exercido de forma independente e autônoma dos demais. Deste modo,
o estabelecimento moderno do poder legislativo liga-se à separação de poderes, bem como
à limitação dos poderes do Estado e ao surgimento dos Estados Democráticos, a partir da
ótica do constitucionalismo moderno em sua face liberal.
Nesse sentido, especialmente considerando que à luz do paradigma do constitucionalis-
mo moderno um poder deve f‌iscalizar e controlar o outro (doutrina dos freios e contrapesos),
o poder legislativo possui competências típicas da função legislativa e, também, atípicas.
Como funções típicas, o poder legislativo deve legislar e f‌iscalizar. Legislar implica
em inovar na ordem jurídica, mediante a elaboração de normas primárias, isto é, através
da edição de leis e das demais espécies legislativas previstas na Constituição (art. 59 a 69),
espécies estas que estão aptas a criar, modif‌icar e extinguir o direito. Fiscalizar implica na
atividade de controlar, analisar e ratif‌icar, especialmente, as ações da Administração Pública,
evitando-se que os detentores do poder dele exorbitem ou abusem (art. 49, IX e X; art. 58,
§3º; art. 70 a 75, dentre outros).
Por outro lado, o poder legislativo, também, exerce funções atípicas, isto é, funções
que tipicamente são atribuídas a outros poderes. Assim, por exemplo, no exercício da função
jurisdicional, em sentido amplo, cabe ao Senado Federal julgar o Presidente da República
nos crimes de responsabilidade (art. 52, I), após autorização da Câmara dos Deputados (art.
51, I), já no exercício da função administrativa, compete às Casas Legislativas dar posse aos
seus servidores.6
6. BORGES, Cyonil; SÁ, Adriel. Manual de Direito Administrativo Facilitado. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
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2. ESTRUTURA DO PODER LEGISLATIVO
A Constituição de 1988, mantendo a tradição do constitucionalismo brasileiro, con-
sagrou, no âmbito federal, o bicameralismo federativo,7 prevendo que o Poder Legislativo
Federal é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal (art. 44).
no âmbito dos demais entes federados, a Constituição consagrou o unicameralismo,
de modo que cada ente possui uma única casa legislativa. Assim, nos Estados o poder legis-
lativo é exercido pelas Assembleis Legislativas, no Distrito Federal pela Câmara Legislativa
e nos Municípios pelas Câmaras Municipais.
3. COMPOSIÇÃO E ATRIBUIÇÕES
A Constituição de 1988 regulamenta a composição das casas legislativas, explicitando,
ainda, as atribuições do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do Senado Fe-
deral. No que concerne às atribuições do poder legislativo, a Constituição estabelece uma
complexa sistemática de competências típicas e atípicas, que podem ser divididas em: a)
atribuições dos órgãos do poder legislativo (arts. 48, 49, 50, 51 e 52 e outros); b) distribuição
de competências legislativas (arts. 22, 24 e outros); c) f‌iscalização e controle das atividades
dos entes federativos (art. 49, IX e X; art. 58, §3º; art. 70 a 75, dentre outros); e d) atribuições
relativas ao exercício do Poder Constituinte Derivado (arts. 25, 60 e outros).
3.1 Congresso Nacional
Nos termos do art. 44, da CF/88, o Congresso Nacional é composto pela Câmara dos
Deputados e pelo Senado Federal, vez que a estrutura do poder legislativo federal é bicameral.
Já em relação as suas atribuições, dispõe o art. 48, da CF/88, que cabe ao Congresso
Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre todas as matérias de com-
petência da União, especialmente sobre:
Sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas;
7. Além do bicameralismo federativo, a doutrina aponta a existência de, pelo menos, mais duas espécies de bicameralismo:
o bicameralismo aristocrático (adotado pela Inglaterra no séc. XIX) e o bicameralismo sistemático.
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