Inelegibilidades na Lei Complementar

AutorAri Ferreira de Queiroz
Ocupação do AutorDoutor em Direito Constitucional
Páginas159-199

Page 159

1 Noções

Em rol não exaustivo, o art. 14, §§ 5º a 8º, da Constituição Federal, dispõe sobre causas de inelegibilidades, cabendo à lei complementar (§ 9º) criar outras hipóteses para proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, levando em conta a vida pregressa do candidato.

Regulamentando o dispositivo, coube à Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, disciplinar os vários casos de inelegibilidades, praticamente todos em razão de incompatibilidade com outros cargos, funções ou empregos. Posteriormente, atendendo a apelo popular sobreveio a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010 – lei da ficha limpa –, que acrescentou à lei de 1990 outros casos de inelegibilidades.

O rol completo das inelegibilidades, segundo a lei de 1990 com a atualização de 2010, contempla situações bastante variadas que desafiam qualquer tentativa de forjar alguma classificação sensata. Apenas no inciso I do art. 1º, que trata das causas de inelegibilidades para quaisquer cargos, são relacionadas, em dezessete alíneas, algumas por si comportando outras divisões em hipóteses diversas sem vínculos ou semelhanças, por vezes claramente retiradas de casos concretos pontuais e assim desprovidas da necessária generalidade e abstração esperadas das leis.

Particularmente quanto à inelegibilidade por condenação criminal, o legislador reuniu, no mesmo dispositivo (art. 1º, I, “e”), crimes tão distintos entre si, do Código Penal ou de leis extravagantes, alguns sem nenhuma expressão e outros muito graves, realmente não aconselhando tentativas classificatórias. Seria bem melhor se, em vez de optar pela inelegibilidade por tipo de crime, fizesse-o com base na dimensão da pena aplicada ou pelo menos cominada legalmente.

Mesmo assim, o ministro Luiz Fux, relator da ADC 29/DF, esbouçou pequena classificação das causas de inelegibilidades ao distribuí-las por cinco grupos, conforme consta do voto161:

(i) condenações judiciais (eleitorais, criminais ou por improbidade administrativa) proferidas por órgão colegiado; (ii) rejeição de contas relativas ao exercício de cargo ou função pública (necessariamente colegiadas, porquanto prolatadas pelo Legislativo ou por Tribunal de

Page 160

Contas, conforme o caso); (iii) perda de cargo (eletivo ou de provimento efetivo), incluindo-se as aposentadorias compulsórias de magistrados e membros do Ministério Público e, para os militares, a indignidade ou incompatibilidade para o oficialato; (iv) renúncia a cargo público eletivo diante da iminência da instauração de processo capaz de ocasionar a perda do cargo; e (v) exclusão do exercício de profissão regulamentada, por decisão do órgão profissional respectivo, por violação de dever ético-profissional.

Realmente, mesmo não contemplando todas as situações, como a de condenação judicial de primeira instância, coberta pelo manto da coisa julgada, o esboço permite concluir ter o legislador tentado alcançar toda a sorte de mazelas que maculam candidatos a cargos eletivos. Cometeu exageros e foi redundante em alguns aspectos, como se verá neste Capítulo que complementa o anterior abordando aspectos infraconstitucionais dos direitos políticos negativos, especialmente em relação ao sujeito passivo do processo eleitoral.

2 Algumas polêmicas da “lei da ficha limpa”
2. 1 Noções

Entre outros pontos polêmicos, a “lei da ficha limpa” suscitou de imediato pelo menos duas questões de ampla relevância acerca de sua aplicabilidade: primeiramente, quanto a aplicá-la nas eleições de 2010, tendo em vista o disposto no art. 16 da Constituição Federal, que veda alterações no processo eleitoral a menos de um ano da data do pleito; em segundo lugar, quanto aos fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor. Em momento posterior, outras polêmicas afloraram e, certamente, ainda haverá mais, algumas já completamente resolvidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade, não estando mais sujeitas a interpretações diferentes pelas instâncias inferiores da Justiça. Neste ponto, serão examinados os seguintes aspectos polêmicos da “lei da ficha limpa”: a) princípio da anualidade eleitoral; b) as novas causas de inelegibilidades frente ao princípio da irretroatividade; c) efeitos da extinção da punibilidade sem cumprimento da pena frente à inelegibilidade por condenação criminal; d) forma de contagem do prazo de inelegibilidade por condenação criminal; e) inelegibilidade por condenação criminal antes do trânsito em julgado; f) conceito da expressão “órgão colegiado” utilizada pela “lei da ficha limpa”; g) contagem do prazo de inelegibilidade por condenação criminal.

2. 2 Princípio da anualidade da lei processual eleitoral

Inequivocamente, a “lei da ficha limpa” contém regras de direito material eleitoral e de direito processual eleitoral. Segundo o art. 16 da Constituição Federal, “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Diante dessa norma, parece não haver dúvida sobre a inaplicabilidade da “lei da ficha limpa” nas eleições de 2010, por ter sido aprovada em junho daquele ano. Mas, não foi o que decidiu o Tribunal Superior Eleitoral em 10 de junho de 2010, vencido apenas o ministro Marco Aurélio, ao responder a consulta n° 1120-26.2010.6.00.0000 formulada pelo senador Arthur Virgílio, quando assim concluiu:

CONSULTA. ALTERAÇÃO. NORMA ELEITORAL. LEI COMPLEMENTAR N° 135/2010. APLICABILIDADE. ELEIÇÕES 2010. AUSÊNCIA DE ALTERAÇÃO NO PROCESSO ELEITORAL. OBSERVÂNCIA DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. Consulta conhecida e respondida afirmativamente (Rel. Min. Hamilton Carvalhido).

Page 161

Essa tese não prevaleceu, vindo a ser derrubada em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal que, alterando seu próprio entendimento manifestado em dois julgados anteriores (Jader Barbalho e Joaquim Roriz), nos quais admitira, mediante empate de seus ministros, a aplicação da lei nas eleições de 2010, retroagiu e a considerou inaplicável, assim constando da ementa do RE 633.703162:

EMENTA: (...) O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso.
(...)

IV RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. Recurso extraordinário conhecido para: a) reconhecer a repercussão geral da questão constitucional atinente à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos Tribunais e Turmas Recursais do País a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. b) dar provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT