Interesse público e a dogmática do direito administrativo brasileiro: a construção de um conceito

AutorLuasses Gonçalves dos Santos
Páginas33-107
33
Capítulo I
INTERESSE PÚBLICO E A DOGMÁTICA
DO DIREITO ADMINISTRATIVO
BRASILEIRO: A CONSTRUÇÃO DE UM
CONCEITO
1.1 AS BASES IDEOLÓGICAS DO DIREITO
ADMINISTRATIVO E A INTRODUÇÃO DA IDEIA
DE INTERESSE PÚBLICO NO BRASIL
A perspectiva teórica que domina o cenário brasileiro do Direito
Administrativo acerca da conceituação e função do interesse público
pertence à escola encabeçada por Celso Antônio Bandeira de Mello, sua
principal referência teórica e figurativa, o qual encara esse ramo do Direito
como um local de batalhas em favor do Estado democrático e de uma
sociedade com mais igualdade. Não há como negar que a orientação dos
estudos e ensinamentos desse notório jurista brasileiro foram (e ainda são)
essenciais à inclinação da doutrina administrativista brasileira (ainda que
não seja em sua totalidade) em se preocupar com um processo social mais
justo, em que o Direito adquire papel fundamental, especialmente a partir
da promulgação da Constituição Federal de 1988.9
9 Vale destacar que Celso Antônio Bandeira de Mello não figurava sozinho nesse embate,
34
LUASSES GONÇALVES DOS SANTOS
O protagonismo de Celso Antônio Bandeira de Mello é
reconhecido por outros renomados administrativistas brasileiros, que
festejam e exaltam a sua edificação teórica, o que decorre do aspecto
inaugural da sua (agora clássica) teoria sobre o conceito de interesse
público, bem como sobre a função estruturante desse conceito em relação
aos princípios que sustentariam a própria atuação do Poder Público. É
dizer, reconhecem em Celso Antônio o precursor de um redesenho do
próprio Direito Público brasileiro, cujos traços autoritários e conservadores
foram, a partir da sua doutrina, redefinidos, “voltando-se à valorização da
cidadania e dos direitos humanos, e homenageando o conteúdo axiológico
das disposições constitucionais”.10
A ideia de submissão da Administração Pública à legalidade já
havia se difundido na doutrina do Direito Administrativo brasileira
desde a segunda metade do século XIX, com forte inspiração na dou-
trina estrangeira.11 Porém, coube a Celso Antônio introduzir a perspec-
tiva teórica de submissão da Administração Pública às normas jurídicas
que lhe afetam a partir da incidência dos princípios da supremacia do in-
teresse público e da indisponibilidade do interesse público, cujo objetivo seria
justamente de satisfazer o interesse público, “em detrimento de interesses
egoísticos dos particulares ou exclusivamente pessoais do administrador
principalmente em relação à edificação de um processo de construção de teses jurídicas
que se adequassem aos anseios de revitalização da democracia. Nesse sentido, juristas
como Geraldo Ataliba dividiam a mesma trincheira.
10 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Apresentação. In:
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Direito Administrativo
e Interesse Público: estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de
Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 15.
11 Nesse sentido, Walter Guandalini Jr. demonstra que o Direito Administrativo
no Brasil da segunda metade do século XIX, nas obras de Furtado de Mendonça
e José Rubino de Oliveira, visava delimitar e regulamentar os atos praticados pela
Administração, no sentido de organizar o poder político. Ao Direito Administrativo
cabia, finalmente, regular os atos praticados pela Administração na sua relação com
os administrados, protegendo o bem público, superando distinções e privilégios, para
atingir uma concepção uniforme e igualitária de direitos e deveres. A lei era fonte
central do Direito Administrativo e, consequentemente, da Administração Pública.
GUANDALINI JÚNIOR, Walter. História do direito administrativo brasileiro: formação
(1821-1895). Curitiba: Juruá, 2016, pp. 233-239.
35
CAPÍTULO I - INTERESSE PÚBLICO E A DOGMÁTICA DO DIREITO...
público”, como bem resumem Romeu Felipe Bacellar Filho e Daniel
Wunder Hachem.12
Em seu Curso de Direito Administrativo,13 Celso Antônio dedica
algumas páginas para definir as “bases ideológicas do Direito Administrativo”,
revelando, de alguma medida, a preocupação em não desvincular essa
vertente da dogmática do Direito diante da sua inevitável faceta política.
Daquele trecho é possível extrair a concepção desse jusadministrativista
em relação ao papel do Direito e do Direito Administrativo na estruturação
da sociedade e do Estado capitalistas.
De plano, Celso Antônio refuta o que chama de impressão difusa ou
fluida de que o Direito Administrativo se constitui como o ramo criado
“em favor do poder, a fim de que ele possa vergar os administrados”,
definindo que tal concepção é equivocada e antitética. Defende que o Direito
Administrativo deva ser considerado “como efetivamente é”,14 ou seja,
um conjunto de limitações e de deveres às atividades desenvolvidas pelo
Poder Público e não como mera aglutinação dos poderes estatais.15
Nessa análise específica sobre os pilares ideológicos do Direito
Administrativo, Celso Antônio afirma que as teorias que enaltecem a
ideia de poder no âmbito da atuação do Estado são supreendentemente
falsas, bem como destoantes da História e da razão de ser do Direito
Administrativo.16 Refere à concepção de que o Direito Administrativo
12 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Apresentação. In:
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder. Direito Administrativo
e Interesse Público: estudos em homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de
Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 16.
13 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2013.
14 Nota-se, desde já, que Celso Antônio possui uma ideia apriorística “do que é”, ou seja, sua
concepção acerca desse ramo do Direito envolve claramente uma perspectiva de verdade,
levando-nos a questionar, de antemão, se essa base ideológica é, na verdade, a fundamentação
ideológica do Direito que o próprio Celso Antônio admite, e não a sustentação ideológica
desse ramo dogmático-jurídico em termos sistêmicos sociológicos e políticos.
15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2013, pp. 43/44.
16 “Assim, esta impressão generalizada que enaltece a ideia de Poder, entretanto, e

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT