Os modelos de compreensão da deficiência

AutorLuís Fernando Nigro Corrêa
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Integração Europeia pela - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Juiz de Direito no Estado de Minas Gerais
Páginas15-78
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OS MODELOS DE COMPREENSÃO
DA DEFICIÊNCIA
Em que pese as variantes no tratamento dispensado às pessoas com
deficiência no curso da história nas mais diversas sociedades permeadas
por valores os mais distintos, ressalta recorrente a consideração da pessoa
com deficiência com um estigma, situação precisamente definida por Er-
vin Goffman (1988, p. 4) como aquela do “indivíduo que está inabilitado
para a aceitação social plena”.
Para se apresentar modelos que norteiam a relação entre a sociedade
e as pessoas com deficiência, oportuna se faz a menção a algumas passagens
históricas que vêm exemplificar o estigma recorrente nas considerações sobre
tais indivíduos que, de certa forma, explicam tais modelos e revelam o estágio
atual em que nos encontramos. Observa-se, desde logo, que podemos, ainda
hoje, perceber a presença dos três modelos que serão abordados, quais sejam,
o de prescindibilidade, o médico e o social, já que a augurada implementação
plena deste último, afastando os demais, exige que se elimine o persistente
preconceito relacionado à incapacidade e/ou periculosidade das pessoas com
deficiência e a discriminação respectiva, elementos que alimentam o estigma.
Goffman (2008, p. 6) traça a característica do estigma ao mencionar
que: “enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de
que ele tem um atributo que o torna diferente de outros [...] Assim, deixa-
mos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa
estragada e diminuída”. O efeito de tal consideração da pessoa lastreada no
estigma a deprecia e a reduz a uma pessoa de menor valia no seu respectivo
meio social.
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A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Acrescenta Goffman que haveria três tipos diferentes de estigmas:
Em primeiro lugar, há abominações do corpo – as várias defor-
midades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, per-
cebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais,
crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a
partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental,
prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentati-
vas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há
os estigmas tribais de raça, nação e religião [...]. (2008, p. 7)
Da leitura das espécies de estigma mencionadas por Goffman, evi-
dencia-se que as pessoas com deficiência estão abarcadas, especialmente,
nos dois primeiros grupos aludidos pelo sociólogo canadense.
Pode-se buscar em relatos históricos exemplos indicativos do trata-
mento dispensado às pessoas com deficiência em diferentes momentos e
contextos sociais, observando-se que, embora a história não se desenvolva
de forma linear, tais exemplos podem auxiliar a revelar o recorrente signo
da segregação que insiste em macular as pessoas com deficiência.
Em Esparta, destaca Aranha (2001, p. 2) “[...] os imaturos, os fra-
cos e os defeituosos eram propositalmente eliminados. No mesmo sentido
aponta Pessotti (1984, p. 3), ao observar que:
De todo modo, é sabido que em Esparta crianças portadoras de
deficiências físicas ou mentais eram consideradas sub-humanas,
o que legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeita-
mente coerente com os ideais atléticos e clássicos, além de classis-
tas, que serviam de base à organização sócio-cultural de Esparta
e da Magna Grécia.
Os considerados “sub-humanos”,5 em tal contexto, eram submetidos
ao que se denominava de “exposição”, eufemismo empregado para o ato de
5 Na antiguidade, as pessoas que não integravam a nobreza ficavam alijadas do exer-
cício de poder político, social e econômico, sendo a elas conferida pouca impor-
tância no meio social. Assim, as pessoas com deficiência não eliminadas, provavel-
mente juntar-se-iam aos serviçais excluídos nas atividades de agricultura, pecuária
e artesanato; ou, ainda, no esdrúxulo papel de palhaços ou bobos da corte, consi-
derados neste cenário como objetos de curiosidade e zombaria.
OS MODELOS DE COMPREENSÃO DA DEFICIÊNCIA
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abandonar as crianças à própria sorte ao relento, levando-as, inevitavel-
mente, à morte. Tal prática, aliás, foi aceita por Platão e Aristóteles (PES-
SOTTI, 1984, p. 4).
Prática igualmente cruel verifica-se na Roma antiga como lembra
Aranha (2001, p. 2), “[...] os romanos descartavam-se de crianças deforma-
das e indesejadas… em esgotos localizados, ironicamente, no lado externo
do Templo da Piedade”.
Com o advento do Cristianismo, a prática da “exposição” tornou-se
inaceitável, na medida em que se considerava que as pessoas com deficiên-
cia também teriam alma e, eliminá-las seria atentar contra os desígnios de
Deus. Com lastro na doutrina cristã, as pessoas com deficiência deveriam
ser consideradas como les enfants du bon Dieu, o que exigia tolerância e
rogava por um tratamento pautado pela caridade visando apenas e tão so-
mente a sobrevivência delas.
Ocorre que, da mesma forma que o Cristianismo, pela caridade, re-
cebe as pessoas com deficiência, provendo-lhes o mínimo para a sobrevi-
vência, passa a exigir de tais pessoas agora consideradas como tal e, ainda,
pertencentes ao Cristianismo, um comportamento ético e religioso. De-
mais disso, as pessoas com deficiência, por vezes, passaram a ser conside-
radas culpadas por sua deficiência, que adviria de pecados6 anteriormente
cometidos por si ou seus antecedentes (PESSOTTI, 1984, p. 6).
Esta culpa, em alguns casos, passou a ensejar a consideração das
pessoas com deficiência como indivíduos possuídos pelo demônio, o que
levou a cruéis práticas de exorcismo, tudo a apontar uma característica
no tratamento da pessoa com deficiência pautada pela ambiguidade da
caridade/castigo.7
Nesse passo, interessante mencionar que no Novo Testamento
há diversas passagens que revelam que as pessoas com deficiência eram
6 Piccolo e Mendes (2012, p. 34) observam que “Em razão de os homens serem enca-
rados como filhos e semelhantes a Deus, cuja imagem porta a perfeição nos traços,
aqueles com corpos diferentes foram considerados como não semelhantes ao cria-
dor, portanto, obras do pecado”.
7 Entendem Piccolo e Mendes (2012, p. 35) que “[...] inexiste contradição entre a ma-
lignidade e proteção. Protegia-se também para afastar e evitar o contato, destarte, não
causa espanto que os leprosários se situassem nas zonas limítrofes de cada cidade”.

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