Para mulheres e pessoas LGBT+ o direito fundamental ao trabalho digno é uma disputa

AutorMarcelo Maciel Ramos e Pedro Augusto Gravatá Nicoli
Páginas194-209
CAPÍTULO 15
(1) Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor visitante do programa Gender, Sexuality and
Feminist Studies da Duke University, nos Estados Unidos (2019-2020). Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, tendo realizado parte
de suas pesquisas doutorais no Institut de la Pensée Contemporaine da Université Paris-Diderot. Coordenador do Grupo de Pesquisa Kritikos–
Teorias Críticas do Direito e do Programa de Extensão Diverso UFMG– Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero.
(2) Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor visitante do programa Gender, Sexuality and
Feminist Studies da Duke University, nos Estados Unidos (2019-2020). Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, tendo realizado parte
de suas pesquisas doutorais no Collège de France. Pesquisador integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania, da Facul-
dade de Direito da Universidade de Brasília (UnB/CNPq). Coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Resistências, da UFMG, e do Programa
de Extensão Diverso UFMG– Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero.
(3) CARVALHO, Lenira Maria de. Só a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica. Rio de Janeiro: Vozes/NOVA, 1982. p.43.
Para Mulheres e Pessoas LGBT+ o Direito
Fundamental ao Trabalho Digno é uma Disputa
MARCELO MACIEL RAMOS
(1)
PEDRO AUGUSTO GRAVA NICOLI
(2)
Resumo: Este ensaio retoma o debate do direito fundamental ao trabalho digno pelo seu avesso. Perguntamo-nos como, na ver-
dade, o Direito tem contribuído para a implantação sistemática da indignidade no trabalho de mulheres e pessoas LGBT+, a partir
das perspectivas teóricas dos estudos de gênero e sexualidade. Explora-se o papel da regulação trabalhista na reprodução dos pa-
drões sexistas e LGBTfóbicos que ainda regem o mundo em que vivemos. São propostos quatro eixos analíticos: divisão sexual do
trabalho; o cuidado como trabalho; corpos dissidentes no trabalho; práticas discriminatórias. A partir das interpelações crescentes
feministas e queers ao Direito do Trabalho revela-se como esse direito fundamental é, na verdade, uma disputa. Ao final, o direito
fundamental ao trabalho digno reemerge como conquista teórica dentro de uma perspectiva de gênero e sexualidade. Nas duras
disputas nos quadros da materialidade da opressão de gênero, sexualidade, classe, raça, coloca-se como um libelo teórico denso,
articulado e permanentemente referenciado. Uma trincheira antimachista, antirracista, queer e igualitária.
Palavras-chave: Direito fundamental ao trabalho digno. Gênero. Sexualidade. Pessoas LGBT+.
Abstract: This essay takes up the debate on the fundamental right to decent work from the inside out. We explore how law has
contributed to the systematic implementation of indignity at work for women and LGBT+ people, from the theoretical perspecti-
ves of gender and sexuality studies. The role of labor regulation in reproducing sexist and homophobic standards that still govern
the world in which we live is explored. Four analytical axes are proposed: sexual division of labor; care as work; dissident bodies at
work; discriminatory practices. From the rising feminist and queer critiques to labor law it is revealed how this fundamental right
is actually a dispute. In the end, the fundamental right to decent work re-emerges as a theoretical conquest from the perspective
of gender and sexuality. In the difficult disputes in the materiality of the oppression of gender, sexuality, class, race, it stands as a
dense, articulated and permanently referenced theoretical libel. An antisexist, anti-racist, queer and egalitarian trench.
Keywords: Fundamental right to decent work. Gender. Sexuality. LGBT+ people.
Quando eu cozinho para esses caras que estão discutindo, para esses médicos, para esses
engenheiros, para tudo eu estou dando uma contribuição. (...) Mesmo que a doméstica não
esteja considerada assim na faixa de produção, como dizem, a gente faz parte de um mundo
de trabalho. Só que a gente trabalha em lugares diferentes. E atua diferente.
(Lenira Maria de Carvalho)(3)
Para Mulheres e Pessoas LGBT+ o Direito Fundamental ao Trabalho Digno é uma Disputa
Capítulo 15
195
1. INTRODUÇÃO: A INTERPELAÇÃO DO
HUMANISMO JURÍDICO-TRABALHISTA
ABSTRATO A PARTIR DO LUGAR CONCRETO
DO GÊNERO E SEXUALIDADE
Trabalhar pode ser e tem sido uma experiência par-
ticularmente indigna para mulheres e pessoas LGBT+.
No quadro geral das desumanizações promovidas ao
redor da exploração do trabalho, o gênero e a sexuali-
dade têm servido como potencializadores de experiên-
cias de sofrimento, de negação, de precariedade na ma-
terialidade das existências. Isso porque são marcadores
que aportam nos mundos do trabalho, e recebem tam-
bém deles, elementos fortes na definição de posições
de poder e subalternidade social. O gênero feminino,
as identidades não cis e as sexualidades não hegemô-
nicas encontram nos ambientes de trabalho um espa-
ço de rechaço, de rejeição, de estigma, de segregação,
de invisibilização, de convicções e práticas discrimina-
tórias de grande vigor. A força das normatividades es-
pecíficas das esferas laborais e o peso do trabalho nas
vidas vividas no capitalismo do presente potencializam
essa experiência de indignidade. Ao mesmo tempo,
o reconhecimento e afirmação de si, nas formas con-
temporâneas da sociabilidade, passam também forte-
mente pelo trabalho. Para mulheres e pessoas LGBT+,
o que vem do trabalho é também fundamental para
tornar suas vidas mais vivíveis(4), dignas de reconheci-
mento social e de proteções jurídicas. Autonomia ou
melhora material, reconhecimento profissional, senso
de pertencimento, processos de identificação e auto-
-organização, são grandezas que podem repercutir de
maneira especialmente forte quando se fala de vidas
socialmente subalternizadas.
O presente ensaio parte deste paradoxo. De como,
por um lado, o trabalho se revela um instrumento
sistematicamente desumanizador e de como ele se
utiliza das subalternidades gendradas e sexualizadas
para estruturar juridicamente as hierarquias sociais. Ao
mesmo tempo, por outro lado, de como o trabalho é
ainda central para permitir nas trajetórias individuais e
coletivas uma afirmação sobre o mundo para aquelas
e aqueles que são negados por muitas esferas desse
mesmo mundo. Assim, a proposta central do texto é
ler, a partir de elementos teóricos dos campos dos es-
tudos de gênero e sexualidade, a ideia de um direito
(4) BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Trad. Fernanda Siqueira Miguens.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. p.31, 76, 231.
(5) Muito do que se considera conceitualmente aqui a respeito desse direito vem de DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho
digno. São Paulo: LTr, 2006.
fundamental ao trabalho digno(5) inserida com radica-
lidade nesse paradoxo.
Não pretendemos lê-la, contudo, sob a perspec-
tiva tradicional dos direitos humanos, como formula-
ções normativas fortes, que devem “simplesmente” ser
cumpridas. Mas para entender esse direito como uma
disputa. Uma disputa referenciada à ambiguidade e
limites da formulação de um direito fundamental em
um mundo que define o trabalho em suas inteligibili-
dades sociais e jurídicas a partir de arranjos marcados
pelo gênero e pela sexualidade. E que entenda que a
realização deste direito está distante de ser um silogis-
mo, um processo de aplicação normativa comum. Ela
envolve, necessariamente, a abertura dos sentidos so-
cio-político-econômicos desse direito, num campo de
forças que dessacraliza o jurídico para tomá-lo como a
construção que ele é.
Pensamos o Direito como esse locus ambíguo que,
ao mesmo tempo que se estrutura a partir do reconhe-
cimento abstrato de sujeitos igualmente dignos, repro-
duz sistematicamente as desigualdades materiais, as
hierarquias sociais da atribuição de indignidades e as
demarcações espaciais e corporais da subalternidade.
Pergunte a qualquer bom jurista humanista sobre a
dignidade de mulheres e pessoas LGBT+ e a resposta
será uma eloquente explicação do fato de o Direito não
fazer qualquer distinção de gênero e/ou sexualidade
na atribuição de proteções e prerrogativas; do fato do
reconhecimento de alguém como sujeito de direito
(incluindo-se aí evidentemente o sujeito de Direito do
Trabalho) não depender de qualquer condição ou cir-
cunstância material como o gênero e a sexualidade; do
dever dos aparatos jurídicos de reconhecer e promover
universalmente a dignidade, a igualdade e a liberdade
de cada indivíduo. Nada obstante, uma rápida análise
das histórias de mulheres e pessoas LGBT+, bem como
do tratamento que a legislação, a institucionalidade em
geral e a atividade jurisprudencial reservam a esse gru-
po, dá provas do contrário: mulheres e pessoas LGBT+
ocupam posições menos dignas de trabalho ou estão
mais sujeitas a um tratamento desigual ou indigno em
razão do gênero e/ou sexualidade. Quando menos,
estarão submetidas a abusos, pressões e medos que
marcam desigualmente suas experiências enquanto
trabalhadoras e trabalhadores, que as colocam em uma
posição de vulnerabilidade induzida pela cumplicidade

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