Multiparentalidade

AutorCatarina Oliveira e Patrícia Ferreira Rocha
Ocupação do AutorDoutora e Mestra pela UFPE. Professora de Direito Civil na UNICAP/PE. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE) e do Grupo de Pesquisa Direito Civil e Ação (UNICAP). Advogada e ex-vice-presidente da OAB/Pernambuco. / Doutoranda na Universidade do Minho, Portugal. Mestra pela UFPE. Professora de ...
Páginas383-404
MULTIPARENTALIDADE
Catarina Oliveira
Doutora e Mestra pela UFPE. Professora de Direito Civil na UNICAP/PE. Pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (CONREP/UFPE) e
do Grupo de Pesquisa Direito Civil e Ação (UNICAP). Advogada e ex-vice-presidente
da OAB/Pernambuco. E-mail: cataoliveira71@gmail.com.
Patrícia Ferreira Rocha
Doutoranda na Universidade do Minho, Portugal. Mestra pela UFPE. Professora de Di-
reito das Famílias e Sucessões. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Constitucionalização
das Relações Privadas (CONREP/UFPE). Vice-Presidente do IBDFAM/AL. Advogada
e conselheira seccional da OAB/Alagoas. E-mail: patriciarochamcz@hotmail.com
Sumário: 1. Novas estruturas parentais: do biologismo presumido à socioafetividade – 2. O RE
898.060/SC e a quebra do modelo biparental na liação – 3. A necessária delimitação da congu-
ração da multiparentalidade – 4. Efeitos da multiparentalidade; 4.1 Alteração do registro. Nome e
campo de liação; 4.2 Efeitos quanto ao parentesco; 4.3 Efeitos quanto aos alimentos; 4.4 Exercício
do poder familiar e direito de convivência – 5. Referências.
1. NOVAS ESTRUTURAS PARENTAIS: DO BIOLOGISMO PRESUMIDO À
SOCIOAFETIVIDADE
De acordo com o texto constitucional, a família é considerada base da sociedade
e merece proteção especial do Estado (art. 226, caput, CF), porquanto é o primeiro
núcleo social onde o ser humano é inserido e a partir do qual ele forma e desenvolve
sua personalidade. Seu conceito e organização se veem constantemente alterados,
sofrendo inf‌luências do momento histórico, cultural e social de determinada época.
Neste contexto, as estruturas parentais e conjugais vão sendo reiteradamente re-
construídas, exigindo-se uma nova delimitação dos seus institutos, como ocorreu
com a f‌iliação.
A f‌iliação pode ser compreendida como o liame jurídico decorrente do parentes-
co, estabelecida especif‌icamente entre o ascendente e seu descendente imediato, do
qual resulta a atribuição de direitos e deveres recíprocos, além de um status familiar.
O instituto é caracterizado, assim, pela sua natureza relacional, pois, através dele, o
f‌ilho passa a ser titular do estado de f‌iliação, ao tempo que o pai e a mãe são titula-
res dos estados de paternidade e maternidade, respectivamente, em relação àquele
(LÔBO, 2004, p. 325).
Sob a égide do Código Civil de 1916, a noção de família foi alicerçada exclusivamente
a partir do casamento, considerado como fonte da legitimação das relações sexuais entre
os cônjuges e dos f‌ilhos que desta união viessem a nascer. Era a situação conjugal dos pais,
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portanto, que promovia o seu reconhecimento ou a sua invisibilidade jurídica, fazendo
com que, por uma f‌icção legal, toda criança nascida de uma relação matrimonial fosse
considerada como sendo f‌ilha do marido da mãe, até prova em contrário.
Explicando a dinâmica da parentalidade por presunção, Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald (2018, p. 601) ensinam que
É um verdadeiro exercício de lógica aplicada: considerando que as pessoas casadas mantêm re-
lações sexuais entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente da delidade existente
entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se que o lho nascido de uma mulher
casada, na constância das núpcias, por presunção, é do seu marido.
Esta parentalidade decorrente da mera demonstração do estado de casado foi
perdendo sua relevância com as descobertas médico-científ‌icas relacionadas ao se-
quenciamento do código genético, através do exame de DNA, o que veio a permitir
o estabelecimento da certeza da relação parental. De acordo com o critério biológico,
pois, a parentalidade é constituída pela transmissão da carga genética dos genitores
ao fruto da concepção, fazendo com que a relação familiar fosse determinada também
pelo exercício da sexualidade.
Acontece que, com o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida,
operou-se uma nova mudança de paradigma nas relações parentais, já que a procria-
ção se desvencilhou da sexualidade, permitindo que um f‌ilho venha a ser gerado a
partir de um procedimento médico-laboratorial, com uso do material genético do
próprio casal ou de um terceiro, inclusive dissociando a maternidade da gestação
com o instituto da cessão temporária de útero.
O vínculo de f‌iliação, então, deixou de ser decorrente tão somente de um ato
físico, por presunção ou cientif‌icamente comprovado, para se tornar igualmente um
ato de vontade, em que uma pessoa pode se tornar pai e/ou mãe simplesmente por
assumir esse papel, exercendo uma função parental perante o f‌ilho, independente-
mente da existência de vínculos consanguíneos entre eles. Neste sentido, João Baptista
Villela (1979, p. 415) publicou artigo precursor, cuja abordagem tratava justamente
da desbiologização da paternidade a partir do reconhecimento da afetividade, o que
acarretou a dissociação das f‌iguras do pai e do genitor.
Este critério de estabelecimento da f‌iliação, denominado socioafetivo, compre-
ende a apreensão pelo Direito do exercício fático da parentalidade, o qual as pessoas
vivenciam em suas relações familiares privadas e se apresentam socialmente como se
pai e/ou mãe e f‌ilho fossem, a despeito de qualquer vínculo biológico ou presuntivo
(ROCHA, 2019, p. 216).
Como explica Maria Celina Bodin (2016),
o que realmente cria o liame civil entre pais e lhos é o exercício da autoridade parental, ou seja,
a real e efetiva prática das condutas necessárias para criar, sustentar e educar os lhos menores,
nos exatos termos do art. 229, primeira parte, da CF, com o escopo de edicar sua personalidade,
independentemente de vínculos consanguíneos que geram essa obrigação.

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