A natureza jurídica do 'contato herdeiro'

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Páginas149-178
A NATUREZA JURÍDICA
DO “CONTATO HERDEIRO”
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP/Largo de
São Francisco. Doutorando em Direito, na área de estudo ‘Direito, Tecnologia e
Inovação’, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre e Bacharel
em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em
Direito Digital. Especialista em Direito Civil e Empresarial. Associado do Instituto
Avançado de Proteção de Dados – IAPD. Membro do Instituto Brasileiro de
Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Advogado e Professor.
Sumário: 1. Introdução – 2. Um “contato herdeiro” para a gestão póstuma de bens digitais?; 2.1
Facebook (e Instagram); 2.2 Apple; 2.3 Google/YouTube e as peculiaridades do AdSense – 3.
Qual é a natureza do conteúdo disponibilizado ao “contato herdeiro”? – 4. Conança, contem-
platio domini e representações como signos essenciais da designação do “contato herdeiro” – 5.
Considerações nais – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Diversos provedores de aplicação passaram a adotar a prática de franquear
a seus usuários a indicação de um (ou mais de um) “contato herdeiro” (legacy
contact, na expressão original em inglês). Outras nomenclaturas, como “contato
de legado” e “contato de conança” também se popularizaram mais recentemente
a nível global. Todavia, trata-se de medida obscura e não necessariamente compa-
tível com a ordenação jurídica brasileira, haja vista suas inúmeras idiossincrasias.
O grande dilema dessa prática envolve a identicação do enquadramento da
peculiar relação jurídica que se forma entre o usuário da rede social e o “contato”,
em arquétipo triangular, mediado pelo provedor de aplicação. Leitura rasa da
dinâmica fática parece sinalizar o estabelecimento de contrato de mandato ou
alguma espécie sui generis de representação para atuação post mortem em nome
(mas, não necessariamente, “no interesse”) do usuário da plataforma, o que, por
si só, abre margem a complexas discussões sobre a autonomia da representação
voluntária (arts. 115 a 120, CC) em relação ao próprio mandato (arts. 653 a 666,
CC). Também é motivo de dubiedade em relação à coexistência da gura do
“contato herdeiro” com a do inventariante, especialmente para a gestão de bens
digitais patrimoniais.
De fato, o que não se pode negar é que óbitos de grande repercussão midi-
ática – especialmente de pessoas famosas com expressivo número de seguidores
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virtuais – têm causado nebulosa percepção acerca da natureza patrimonial de
seus pers, ainda que estes não lhes gerem receitas diretamente, com pagamentos
feitos pelo provedor de aplicação.
À exceção de estruturas verdadeiramente contratuais, como o YouTube
Partner Program (e seu corolário AdSense) ou o Twitch Aliate Agreement – que
serão elucidados adiante para ns de diferenciação comparativa –, pers pessoais
no Facebook e no Instagram, contas de armazenamento em nuvem (como Google
Drive e iCloud), ou mesmo pers prossionais no LinkedIn, não geram renda
direta a seus usuários.
Noutros dizeres, a fama granjeada em redes sociais diversas das que osten-
tam características contratuais, embora seja, indiscutivelmente, um importante
elemento para propulsionar carreiras e viabilizar parcerias comerciais rentáveis
de exploração da imagem e do “potencial de engajamento” de celebridades da
internet, não lhes gera pagamentos diretos, provenientes dos próprios provedores
de aplicação. Por esse motivo, a gura sui generis do “contato herdeiro” merece ser
analisada com maior atenção, uma vez que sua característica principal remete à
contemplatio domini, mas afasta contornos típicos do mandato (enquanto espécie
contratual), não o legitimando para a administração desses famigerados pers
com suposta valoração econômica.
Visando delinear as questões mais importantes dessa complexa discussão, o
presente trabalho apresentará as principais características da dinâmica de indica-
ção do “contato herdeiro” nos sistemas das empresas Meta, Apple e Google para
deixar claro que as funções assumidas por tal pessoa não envolvem a gestão direta
de acervo patrimonial do falecido, não se confundindo e tampouco tangenciando
as obrigações do inventariante. Ao contrário, o que se demonstrará, ao nal, é
que a natureza personalíssima de tal múnus demanda certo esforço interpretativo
para a adequada compatibilização dos termos de uso dessas três plataformas com
a ordenação jurídica brasileira.
Ainda, relembrando a dinâmica aplicável à gestão do espólio e sinalizando
brevemente a distinção entre os conteúdos patrimonial e existencial do falecido,
será destacada a importância da gura do inventariante – quando já estiver rmado
o respectivo compromisso – e do administrador provisório (art. 1.797, CC) para a
deliberação sobre a gestão das contas do de cujus nas plataformas mantidas pelos
citados provedores de aplicação.
Ao nal, em conclusão, destacar-se-á a invalidade da formalização da in-
dicação do “contato herdeiro” pela via contratual, ressaltando-se a atuação do
inventariante como gura preferencial para a concretização de tal gestão. Por outro
lado, conrmando a hipótese narrada, serão apresentadas algumas considerações
em prol da consideração do “contato herdeiro” como um representante atípico,
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