Transmissão causa mortis de bens digitais: desafios processuais e possíveis soluções

AutorJaylton Lopes Jr.
Páginas229-249
TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS DE BENS
DIGITAIS: DESAFIOS PROCESSUAIS E
POSSÍVEIS SOLUÇÕES
Jaylton Lopes Jr.
Juiz de Direito Substituto da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Mes-
trando em ciências jurídicas. Membro da Associação Brasiliense de Direito
Processual Civil – ABPC e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Sumário: 1. Introdução – 2. Breves apontamentos sobre o fenômeno sucessório na perspectiva
dos bens digitais – 3. Inventário judicial: solução velha para problemas novos?; 3.1. Inventário
judicial no modelo cooperativo de processo; 3.2 Adequação do procedimento na sucessão
de bens digitais; 3.3 Testamento digital e seus possíveis reexos materiais e processuais – 4.
Desaos processuais na sucessão de criptoativos; 4.1 Breve noção sobre criptoativos; 4.2
Inventário judicial e possível forma de acesso a criptoativos – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Um dos temas mais instigantes do direito sucessório na atualidade é, sem
dúvida, a transmissão causa mortis dos bens digitais. Há um amplíssimo leque
de situações e discussões jurídicas que desaguarão, com muita força, no Poder
Judiciário. A falta de regramento legal, contudo, gera um estado de incerteza e
insegurança, cabendo ao aplicador do direito, à luz do sistema jurídico vigente,
encontrar soluções viáveis e inteligentes, a m de garantir o direito fundamental
à herança (art. 5º, XXX, da CF).
Além dos aspectos materiais que circundam o fenômeno da sucessão dos bens
digitais — como o próprio conceito de bem digital, reexos no direito à intimida-
de, conteúdo dos bens digitais, vocação hereditária, testamento etc. —, há, ainda,
questões processuais relevantes que devem ser objeto de reexão, a m de que a
transmissão do patrimônio digital possa se concretizar no mundo fenomênico.
O presente estudo tem por objetivo identicar alguns desaos a serem
enfrentados no inventário judicial de bens digitais e apontar possíveis soluções
processuais, à luz do atual modelo cooperativo de processo.
2. BREVES APONTAMENTOS SOBRE O FENÔMENO SUCESSÓRIO NA
PERSPECTIVA DOS BENS DIGITAIS
Falar sobre morte não é tarefa das mais fáceis, até mesmo porque, pelo menos
nessa vida terrena, somente a conhecemos como meros espectadores. Para o direito
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interessam os efeitos jurídicos que deuem do fenômeno morte. Nessa perspectiva,
o direito sucessório tem íntima ligação com o direito de propriedade, pois busca
regular a forma como as relações jurídicas patrimoniais ativas e passivas do de
cujus são transmitidas aos seus sucessores. Conforme adverte Pontes de Miranda,
citando as lições de Vittorio Polacco, “a sucessão a causa de morte nada tem com a
personalidade do morto. Herdeiros sucedem nos bens, não na pessoa do de cujo1.
Com efeito, no momento da morte ocorre, de forma automática, a transmissão
das relações patrimoniais do extinto aos seus sucessores, conforme previsão contida
no art. 1.784 do CC (“Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos her-
deiros legítimos e testamentários”). O Código Civil brasileiro adotou o sistema da
transmissão direta e imediata da herança, com fundamento no droit de saisine francês2.
Não há dúvida de que as regras de sucessão causa mortis foram pensadas para
as relações patrimoniais tangíveis. Ocorre que, atualmente, a vida, em todos os seus
aspectos, existenciais e patrimoniais, também tem se projetado para ambientes
virtuais. O mundo assiste a um fenômeno de digitalização da vida.
Tal fenômeno decorre de tecnologias capazes de digitalizar informações,
tais como textos, sons e imagens, transformando em digitais informações arma-
zenadas, originalmente, em meios físicos3. Há, ainda, bens desenvolvidos exclu-
sivamente para ambientes e relações jurídicas virtuais, como os criptoativos, os
jogos virtuais e as milhas de companhias aéreas.
Nesse contexto, um dos primeiros desaos do direito sucessório é identicar
os bens digitais que devem ser objeto de transmissão e, consequentemente, leva-
dos ao inventário. De uma forma geral, é possível catalogar três grandes tipos de
bens digitais: a) bens digitais com nítido caráter patrimonial, como criptoativos,
títulos de crédito eletrônicos, milhas de companhias aéreas etc.; b) bens digitais
com nítido caráter existencial, como contas em redes sociais, correios eletrônicos,
grupos de WhatsApp etc.; e c) bens digitais existenciais-patrimoniais (ou com
função dúplice), como rede social de um digital inuencer ou youtuber, na qual
a própria exploração dos direitos da personalidade do titular é usada como um
meio de aferição de renda4.
1. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 2ª edição. Tomo LV. Rio de
Janeiro: Editor Borsoi, 1973, p. 6.
2. Cf. BUCAR, Daniel. Existe o droit de saisine no sistema sucessório brasileiro?. In: TEIXEIRA, Ana Carolina
Brochado; NEVARES, Ana Luiza (coord.). Direito das sucessões: problemas e tendências. Indaiatuba:
Editora Foco, 2022, p. 8.
3. Cf. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. O enquadramento dos bens digitais
sob o perl funcional das situações jurídicas. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia
Teixeira (coord.). Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p.27.
4. Sobre a distinção (ou funções) dos bens digitais: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER,
Carlos Nelson. O enquadramento dos bens digitais sob o perl funcional das situações jurídicas. In:
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia Teixeira (coord.). Herança digital: controvérsias e
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