Posse e bens digitais: transmissibilidade e usucapião

AutorDaniela de Carvalho Mucilo
Páginas131-147
POSSE E BENS DIGITAIS:
TRANSMISSIBILIDADE E USUCAPIÃO
Daniela de Carvalho Mucilo
Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi
di Camerino, Itália. Professora e Coordenadora de Cursos de Pós Graduação em
Direito de Família e Sucessões. 1ª Secretária da Comissão Especial de Direito de
Família e das Sucessões da OAB/SP. Advogada.
Sumário: 1. Notas introdutórias – 2. Necessária conceituação da posse dentro de sua concepção
autônoma – 3. A posse dos bens digitais – 4. A transmissibilidade da posse como materializa-
ção de seus efeitos: o alcance da usucapião; 4.1 A transmissão da posse dos bens digitais – 5.
Considerações nais – 6. Referências.
“De que serve ter o mapa, se o m está traçado? De que serve a terra à vista, se o barco está
parado? De que serve ter a chave, se a porta está aberta? De que servem as palavras, se a casa
está deserta?1
1. NOTAS INTRODUTÓRIAS
A matéria possessória é rica e intrigante. Trilhou um caminho de coadjuvante
da propriedade até encontrar seu próprio lugar de onde, não sairá, como Direito,
consagradamente, autônomo que é.
Todo este caminho não pode ter sido em vão. Seria, de fato, um desperdício
fechar as matrizes possessórias para o novo Direito Digital que já mostra seus
efeitos e faz pensar-se sobre a possiblidade de clássicos conceitos jurídicos se
organizarem para dar respaldo a novas guras jurídicas.
O desao de escrever sobre posse sempre é grande. Tema antigo e tanto
falado, ainda causa desconforto e, porque não se dizer, certa hesitação, quando
comparado ao direito de propriedade, naquela binária – e superada, anote-se –
ideia de que sobre os bens só pode haver um direito entrelaçando-o ao seu titular
na gura de “dono, de “proprietário”, ainda que muito desta nomenclatura padeça
de tantos equívocos.
Mas, talvez, muita desta propositada – e porque não se dizer – feliz e apa-
rente negação da posse, como instituto de menor valor quando comparado à
1. Trecho do poema “Quem me leva meus fantasmas, de Pedro Machado Abrunhosa.
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propriedade, ou algo que, denitivamente, não seja propriedade, esta confusão
que coloca a posse numa posição inferiorizada à propriedade, seja, justamente, o
brilho de sua grandeza, o mistério que faz muitos até desistirem de estudá-la e o
motivo pelo qual, passam-se os tempos e o desao de sua teoria, de depurar dela
o que remanesce de seu exato signicado e sua tão presente representatividade
fática, acompanhando a evolução da matéria proprietária, como um espelhamento
desta, mas, acima de tudo, mantendo sua autonomia.
E, dentro da certeza desta independência da posse frente à propriedade, vem
o desao de não deixar o instituto possessório perdido no tempo, como um vetusto
arcabouço de antigas noções indissociáveis e imbricadas à materialização de bens
imobilizados (e também em bens móveis, claro), mas impossível de ser projetado
em outras classes de bens como agora se propõe trazer ao desao contemporâneo
do direito civil que é o tratamento dos bens digitais.
Das várias tentativas de sua denição até a forma de sua estruturação –
dentro da expectativa dicotômica de um viés patrimonial e outro, antagônico,
existencial – a realidade inarredável de uma vida digital bate à porta do Direito
e exige respostas.
Muitas delas ainda certamente estão no porvir desta pungente revolução
digital que desenfreadamente cria realidades virtuais, deixando ao usuário (que
parece substituir o termo pessoa) o dever de tentar enquadrar-se nesta nova titu-
laridade digital que lhe é apresentada.
Este artigo não foge desta tônica; procura aplicar a teoria da posse na tentativa
de explicar e aplicar sua extensão também nos bens digitais e, com isso, alcançar
sua titularidade, pela via da usucapião.
O desao está lançado na certeza de que o caminho é desaador e que as
respostas estão longe de se ndar nestas arriscadas linhas.
2. NECESSÁRIA CONCEITUAÇÃO DA POSSE DENTRO DE SUA
CONCEPÇÃO AUTÔNOMA
Nunca será demasiado conceituar um instituto como premissa metodológica
para colocá-lo em xeque, à prova, a julgamento, especialmente, quando o desao
é saber de sua aplicação e confrontação dentro de novas expectativas, mais ainda,
quando estas estão tão distantes dos primórdios de sua aplicação.
Não é, denitivamente, perda de tempo, desdobrar-se para saber que ao
conceituar a posse o legislador preferiu fazê-lo de forma subjetiva: deniu-a pela
gura do seu titular, a partir da pessoa do possuidor (tal como fez também com
a propriedade, ao deni-la pelo aspecto subjetivo do proprietário).
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