Precedentes administrativos no direito administrativo brasileiro

AutorGustavo Marinho De Carvalho
Páginas115-170
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO
DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
4.1 PRELIMINARMENTE: HETEROVINCULAÇÃO E
AUTOVINCULAÇÃO
Ao iniciarmos nossas pesquisas sobre os precedentes administrati-
vos, frequentemente nos deparamos com as expressões autovinculação e
heterovinculação da Administração Pública.236 A utilização de tais expressões
não é despropositada, pois de fato os precedentes administrativos inse-
rem-se na categoria autovinculação da administração pública.
Etimologicamente, heterovinculação é a somatória do prefixo grego
heter (o) com o substantivo vinculação. Tal prefixo significa outro, dife-
rente. Logo, heterovinculação significa estar vinculado a outro ou coisa
diferente daquela que é vinculada. É a não vinculação a si próprio.
236 PIELOW, Johann-Cristian. Integración del ordenamiento jurídico: autovinculaciones de la
Administración. In: MUNOZ, GUILHERMO; SALOMONI, Jorge. Problemática de la
Administración Contemporánea. Buenos Aires, Ad-Hoc, 1997, p. 47-83; MODESTO, Paulo.
Autovinculação da Administração Pública. Salvador: Revista Eletrônica de Direito do Estado,
n. 24, p. 1-18, 2010; ARAGÃO, Alexandre Santos. Teoria das Autolimitações Administrativas:
Atos Próprios, Confiança Legítima e Contradição entre órgãos administrativos. Salvador,
Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 14, p. 1-15, 2008.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Heterovinculação administrativa, portanto, é a submissão da Adminis-
tração Pública a pautas decisórias que não provêm dela, mas sim de fora.237
É o caso, por exemplo, da Constituição, das leis, das súmulas vinculantes,
das ações diretas de inconstitucionalidade. Todos estes instrumentos ex-
ternos vinculam a atuação da Administração.
Se heterovinculação significa estar vinculado a pessoa ou coisa
diferente daquela que é vinculada, autovinculação, que etimologicamente
é a junção do radical de origem grega auto com o substantivo vinculação,
significa estar vinculado a si mesmo.
Assim, autovinculação administrativa significa que a Administração
Pública está vinculada a pautas decisórias que provêm de seu próprio
âmbito de atuação.238 Tomando-se em conta a estrutura jurídica das diver-
sas hipóteses de autovinculação administrativa, podemos subdividi-la da
seguinte maneira: (i) autovinculação administrativa unilateral, individual e
concreta; (ii) autovinculação administrativa unilateral, geral e abstrata (iii) auto-
vinculação administrativa bilateral, individual e concreta.
Na autovinculação administrativa unilateral, individual e concreta inse-
rem-se os atos administrativos em sentido estrito,239 dos quais se extraem
os atos próprios e os precedentes administrativos – ambos decorrentes
de atuações administrativas concretas. Os precedentes administrativos,
alvo de nosso trabalho, serão explorados ao longo deste capítulo, enquan-
to os atos próprios serão tratados a propósito das figuras próximas aos
precedentes administrativos.240 Todavia, registre-se desde já que os atos
próprios diferenciam-se dos precedentes administrativos quanto a ex-
tensão de seus efeitos.
237 PIELOW, Johann-Cristian; op. cit., p. 57.
238 Ibidem, p. 57.
239 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, ato administrativo em sentido estrito é a “a
declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada median-
te comandos concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, da própria Consti-
tuição), expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de legitimidade por
órgão jurisdicional”; ibidem, p. 394.
240 Vide item 4.3.
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
A autovinculação administrativa unilateral, geral e abstrata decorre, por
exemplo, dos regulamentos e das súmulas.
Os regulamentos, como sabemos, são atos gerais e (via de regra)
abstratos expedidos pelo Chefe do Poder Executivo, que vinculam Ad-
ministração Pública241 e tem por objetivo produzir “disposições opera-
cionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação
demande a atuação da Administração Pública”.242 Estas disposições
operacionais uniformizadores, que oferecem maior previsibilidade às
ações administrativas e tratamento isonômico dos administrados, refe-
rem-se tanto ao estabelecimento de regramentos procedimentais243 (= uni-
formidade de procedimento), que restringe a discricionariedade admi-
nistrativa no que se refere ao modo de se aplicar a lei, quanto a dissipa-
ção de dúvidas oriundas dos termos utilizados pela lei, vez por outra
vagos e imprecisos – que também tem por consequência a restrição da
discricionariedade administrativa. Os regulamentos também facilitam a
interpretação da lei quando esta se vale de conceitos sintéticos (= fun-
ção interpretativa dos regulamentos).244
Como se vê, os regulamentos autovinculam a Administração
Publica, que só poderá deixar de observá-los após a sua revogação ou
invalidação,245 quer pela própria Administração (autotutela) ou pelo
241 Neste sentido, assim anota Celso Antônio Bandeira de Mello: “De outra parte, entretanto,
não há duvida que o regulamento vincula a Administração e firma para o administrado
exoneração de responsabilidade ante o Poder Público por comportamentos na conformidade
dele efetuados”; ibidem, p. 372. Paulo Modesto também é enfático ao falar dos regulamentos
como instrumento de autovinculação: “O regulamento, em especial, por sua expressão
eminente na hierarquia dos atos normativos de natureza administrativa, são de longa data
reconhecidos como veículos de autolimitação da Administração Pública”; MODESTO, Paulo.
Autovinculação da Administração Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE),
Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 24, p. 12, out./nov./dez. 2010. Disponível
em:
MODESTO.pdf>. Acesso em: 12 de abril de 2012.
242 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 351.
243 Ibidem, p. 360.
244 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 373.
245 Vide Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Poder Judiciário (invalidação). Dos regulamentos, registremos, podem
surgir precedentes administrativos, assim como podem ser superados
precedentes administrativos, quando de sua revogação ou invalidação –
total ou parcial.
As súmulas, como dissemos por ocasião da análise dos precedentes
judiciais no Direito brasileiro, nada mais são do que enunciados norma-
tivos dotados de generalidade e abstração emitidos pelo Estado, no caso a
Administração Pública, com o propósito de uniformizar a interpretação
sobre determinado assunto, a partir de uma decisão ou de reiteradas
decisões. Deveras, as súmulas administrativas nada mais são do que prece-
dentes administrativos materializados em um texto normativo dotado
de generalidade e abstração. É em função desta origem derivada de casos
concretos que para se aplicar uma súmula deve-se, além do seu texto,
analisar o contexto fático do ou dos precedentes dos quais ela foi extraí-
da. Caso isso não seja feito, corre-se o risco de se ter a mesma dificulda-
de quando da aplicação de uma lei – ou de qualquer outra regra jurídi-
ca dotada de generalidade e abstração –, qual seja: interpretações destoantes.
Assim, aquilo que foi cunhado para dirimir interpretações destoantes,
pode se tornar um novo obstáculo à pretendida uniformidade da apli-
cação do Direito.
Dois bons exemplos de súmulas no âmbito da Administração
Pública são as súmulas da Advocacia Geral da União, editadas com base
(art. 43),247 e as súmulas das Agências Regularas, como por exemplo a
ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações).
246Art. 2º Firmada jurispr udência pelos Tribunais Superiores, a Advocacia-Geral da União
expedirá súmula a respeito da matéria, cujo enunciado deve ser publicado no Diár io Oficial
da União, em conformidade com o disposto no art. 43 da Lei Complementar n. 73, de 10
normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública em razão de decisões
judiciais, regulamenta os dispositivos legais que menciona, e dá outras providências. Brasília,
Diário Oficial da União, 13 out. 1997).
247Art.43. A Súmula da Advocacia-Geral da União tem caráter obrigatório quanto a todos
os órgãos jurídicos enumerados nos arts. 2º e 17 desta lei complementar. § 1º O enunciado
da Súmula editado pelo Advogado-Geral da União há de ser publicado no Diário Oficial da
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Por fim, a autovinculação administrativa bilateral, individual e concreta é a
autovinculação da Administração Pública a partir de relações jurídicas for-
madas por um acordo de vontades, tal como os contratos administrativos.248
4.2 CONCEITO DE PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS
Da mesma maneira do que ocorre com os precedentes judiciais,
todos os cidadãos possuem, no âmbito administrativo, o direito funda-
mental à igualdade na aplicação da Lei – ou de qualquer ato normativo
dotado de generalidade e abstração –, assim como ao prévio conheci-
mento das soluções da Administração Pública em determinados casos
concretos. Esta afirmação nada mais significa de que os precedentes
administrativos devem ser observados pela Administração Pública, sob
pena de violação dos princípios da igualdade e da segurança jurídica.
O simples fato de se invocar os princípios da igualdade e da segu-
rança jurídica, além de outros pr incípios que veremos mais adiante,
seria motivo suficiente para a adoção dos precedentes administrativos com eficácia
vinculante em nossa ordem jurídica. Todavia, poderíamos acrescentar mais
um motivo, extrajurídico, mas de grande relevância prática, qual seja: a
judicialização extremada do Direito Administrativo249 e, por conseguinte,
a politização indesejada do Poder Judiciário.
União, por três dias consecutivos. § 2º No início de cada ano, os enunciados existentes devem
ser consolidados e publicados no Diário Oficial da União”. (BRASIL. Lei Complementar
outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, 11 fev. 1993).
248 A definição de contrato administrativo de André Luis Freire é bem apropriada para
visualizarmos este tipo de autovinculação: “[...] contrato administrativo é o ato administrativo
bilateral introdutor de normas jurídicas infralegais individuais, concretas, obrigatór ias para
as partes (sendo uma delas entidade da Administração Pública) e reguladoras de uma relação
jurídica obrigacional”; FREIRE, André Luis. Manutenção e Retirada dos Contratos Administrativos.
São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 54.
249 “[...] Direito Administrativo regressará em tais sectores, deste modo, à sua origem pretoriana
e a Administração Pública transformar-se-á aqui numa simples estrutura intermediária de
aplicação em primeira instância do Direito num caso concreto que, num momento imediatamente
subsequente, será objeto de impugnação judicial”; OTERO, Paulo; op. cit., p. 169.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Na medida em que observamos que perante a Administração
Pública a aplicação não isonômica das normas jurídicas também é uma
situação corriqueira, em função das razões já apontadas (princípios jurí-
dicos, técnica de elaboração das leis e, ainda, a discricionariedade admi-
nistrativa), fácil concluir que muitas demandas judiciais também se im-
pulsionam pelo inconformismo gerado pela aplicação desigual da lei e
pela incoerência administrativa.250
Não obstante estas considerações, fato é que a doutrina brasileira
pouco tem se dedicado ao tema dos precedentes administrativos. Em
verdade, não encontramos em nossa literatura jurídica obras monográficas
que tratem deste assunto, ao nosso ver de inquestionável relevância para a
defesa dos administrados.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, em sua obra clássica Princípios
Gerais de Direito Administrativo aborda rapidamente o tema dos precedentes
administrativos.251 Para o autor, precedente administrativo é a “atividade
interna da Administração Pública, reiterada e uniforme, formando a
250 Até pouco tempo atrás, um bom exemplo desta situação foi a discussão travada no âmbito
administrativo e judicial acerca da possibilidade dos professores dos Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia, progredirem na carreira em função de sua titulação e inde-
pendentemente do transcurso de qualquer lapso temporal. Todo o embate travado girava em
torno do art. 120, da Lei 11.784/2008. O § 1º deste artigo, passou a exigir para a progressão
por titulação interstício de 18 (dezoito) meses, requisito estranho ao regime jurídico anterior,
que não exigia o transcurso de qualquer lapso temporal, mas apenas a titulação do professor.
Ocorre, porém, que o § 5º do mesmo artigo 120 estabelecia que enquanto o Poder Executivo
não regulamentasse este artigo, continuaria eficaz os artigos 13 e 14 da Lei n. 1.344/2006, que,
como dito, não previam a necessidade de interstício para a progressão, apenas a titulação. Ape-
sar do assunto já estar superado, visto que o Decreto n. 7.806/2012, em seu artigo 11, reco-
nheceu a desnecessidade do interstício até então, inúmeras decisões administrativas conflitantes
foram dadas por todo o país. Ora, tal cenár io proporcionou uma série de problemas na con-
cessão de progressão por titulação aos professores, pois existiram Institutos Federais de Educa-
ção que concediam os pedidos de progressão com base apenas na titulação e outros que exigiam
o interstício. Não havia, portanto, uniformidade no tratamento do tema, o que acarretava na
aplicação não isonômica da Lei e, por consequência, na proliferação de demandas judiciais
(idênticas) pelo país. Obviamente que se se tivesse firmada a ideia de que os precedentes ad-
ministrativos vinculam a Administração Pública, possivelmente o número de pedidos adminis-
trativos e de demandas judiciais seriam reduzidos substancialmente.
251 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha; op. cit., p. 393.
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
jurisprudência administrativa, no decidir casos individuais, ao aplicar as
regras normativas e ao executar outros atos jurídico-administrativos”.
Poucas linhas adiante, Oswaldo Aranha registra que os preceden-
tes administrativos, assim como a praxe administrativa (= prática adminis-
trativa), não vinculam (obrigam) a Administração Pública, o que signi-
fica dizer que não gozam de relevância jurídica.252
Ousamos discordar do saudoso professor. Para nós, conforme ve-
remos a seguir, os precedentes administrativos gozam de eficácia jurídi-
ca em nosso ordenamento jurídico e possuem natureza vinculante.
Feitas estas breves considerações, foquemos nossas atenções ao
conceito de precedentes administrativos.253
Para nós, precedente administrativo é a norma jurídica extraída por in-
dução de um ato administrativo individual e concreto, do tipo decisório, amplia-
tivo ou restritivo da esfera jurídica dos administrados, e que vincula o comporta-
mento da Administração Pública para todos os casos posteriores e substancialmen-
te similares. Em outras palavras: casos substancialmente similares deverão ter a
mesma solução jurídica por parte da Administração Pública.
Deste conceito de precedente administrativo algumas observações
podem ser formuladas.
252 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha; op. cit., p. 393. Em sentido oposto: MOREIRA
NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Editora Forense,
16. ed., 2014, p. 72-73.
253 Para Parada Vázquez, constitui um precedente administrativo “la forma en que se resolvió
com anterioridad un único asunto, análogo a otro pendiente de resolución” (Derecho
administrativo I. Par te General. Decimo quinta edición. Marcial Pons, 2004, p. 74. Felipe
RotondoTornaría conceitua precedente administrativo da seguinte maneira: “El precedente
administrativo es, pues, una ‘conducta previa’ de la administración que contiene un acto
anterior que resuelve un caso similar a otro, actual, por lo cual aquel tiene efectos hacia el
futuro, momento en que se dirá que se actúa ‘como se hizo antes’ o incluso ‘como se ha
hecho siempre”; Conducta previa de la administración: Existe el precedente administrativo? Artigo
da obra coletiva: Seguridad Jurídica y Derecho Administrativo. Miguel Pezzutti (coordenador).
Montevideo: Fundación de Cultura Universitária, 2011, p. 172. Domingo Juan Sesin: “El
precedente administrativo es una actuación cumplida com anterioriedad que por su fuerza
vinculante, a tenor de los princípios referidos, obliga al órgano competente a mantener la
uniformidade y coherencia para los casos similares posteriores”; Administración Pública.
Actividad Reglada, Discrecional y Técnica. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2004, p. 359.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
NATUREZA JURÍDICA DOS PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS
A primeira refere-se à natureza jurídica dos precedentes adminis-
trativos. Como destacado em nosso conceito, entendemos que se trata
de uma norma jurídica – o que lhe confere status de fonte do direito.254
Para Kelsen, norma significa que “algo deve ser ou acontecer” e
norma jurídica nada mais seria do que um tipo de norma, que também
estabelece que algo deve ser, e cuja inobservância gera uma consequên-
cia, coercitivamente exigível pelo Estado.255
Ora, os precedentes administrativos estabelecem também um
dever ser, cuja peculiaridade dá-se pelo fato deste “dever ser” ser obtido a
partir de casos concretos (indução), e a sua inobservância acarreta con-
sequências jurídicas, a serem impostas coercitivamente pelo Estado –
conforme veremos adiante. São, portanto, normas jurídicas.
Considerando-se que os precedentes administrativos são normas
jurídicas, é possível alocá-los na pirâmide kelseniana. A nosso ver, os
precedentes administrativos estão localizados acima dos atos administra-
tivos individuais e concretos (atos administrativos em sentido estrito), e
abaixo da Constituição, leis e regulamentos.
EFICÁCIA VINCULANTE DOS PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS
A segunda consideração a ser feita refere-se à eficácia vinculante
dos precedentes administrativos (= obrigatoriedade), que ao lado das
consequências da inobservância dos precedentes administrativos, confe-
rem a estes o status de norma jurídica.
254 MARTÍNEZ, Augusto Durán. El Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-
-Arana; GARCÍA, Miguel Ángel Sendín (coord.). Fuentes del Derecho Administrativo.
Buenos Aires, Ediciones Rap, 2010, p. 697.
255 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 5 e s. Miguel Reale possuí um conceito muito
interessante de norma jurídica: “O que efetivamente caracteriza uma nor ma jurídica, de qual-
quer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de orga-
nização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória; REALE,
Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo, Editora Saraiva, 25. ed., 2001, p. 95.
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
A eficácia vinculante é fundamental para sustentar o conceito
apresentado de precedentes administrativos.256 Isto porque, à semelhança
dos precedentes judiciais, os precedentes administrativos sempre puderam
ser invocados pelo administrado para sustentar sua pretensão perante a
Administração Pública, que por sua vez também poderia invocar soluções
anteriores para sustentar suas decisões. Contudo, a invocação do prece-
dente administrativo servia apenas como instrumento de persuasão, ou seja,
o precedente era despido de qualquer relevância jurídica, pois a Admi-
nistração Pública, tal como infelizmente o faz o Poder Judiciário, pode-
ria simplesmente desconsiderá-lo, por inexistir qualquer ônus argumen-
tativo ou consequência jurídica. Em suma, não se considerava os prece-
dentes administrativos como normas jurídicas.
Desta forma, se quisermos dotar de relevância jurídica os prece-
dentes administrativos, será preciso nos debruçarmos sobre o tema da
eficácia vinculante, especialmente quanto aos seguintes pontos: (i) quais
são fundamentos jurídicos para a eficácia jurídica vinculante dos precedentes ad-
ministrativos; (ii) quais são as consequências jurídicas da inobservância dos pre-
cedentes administrativos.
Estes pontos, registre-se, serão desenvolvidos em itens específicos
ao logo deste trabalho.
OBTENÇÃO DO PRECEDENTE PELO MÉTODO INDUTIVO
A terceira observação refere-se ao fato dos precedentes adminis-
trativos serem extraídos por indução de atos administrativos individuais
e concretos.257
Como dissemos anteriormente, o método indutivo é o proce-
dimento em que se parte de uma premissa particular (caso concreto)
para se obter uma conclusão geral. Assim, no caso dos precedentes
256 Neste mesmo sentido, DÍEZ-PICAZO, Luis M. La doctrina del precedente administrativo.
Revista de Administración Pública, Madrid, n. 98, 1982, p. 7-46.
257 DÍAZ, José Ortiz. El Precedente Administrativo. Madrid, Revista de Administración Pú-
blica, n. 24, 1957, p. 102-103.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
administrativos, a premissa particular é o ato administrativo individual e
concreto e a conclusão geral é o próprio precedente administrativo.
Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello,258 entendemos
que ato administrativo individual e concreto, também denominado ato
administrativo em sentido estrito, é “a declaração unilateral do Estado
no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante comandos
concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, da própria
Constituição), expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a
controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.
Mas quais elementos e pressupostos do ato administrativo indivi-
dual e concreto são mais relevantes para a obtenção de um precedente
administrativo? Partindo da classificação de Celso Antônio Bandeira de
Mello, entendemos que os precedentes administrativos relacionam-se
com o conteúdo do ato administrativo (elemento) e o motivo do ato (pressu-
posto de validade).
O conteúdo é aquilo que o ato dispõe, aquilo que o ato prescreve,
decide; é a modificação que o ato administrativo ocasiona na ordem
jurídica. O precedente administrativo estabelece justamente que esta
disposição, prescrição, modificação, deva ser observada pela Administra-
ção Pública em casos posteriores e substancialmente similares.
Ora, se é preciso que haja situações substancialmente similares para
que o precedente administrativo possa ser utilizado, o motivo do ato
passa a ser de extrema valia, pois é a partir da análise deste pressupos-
to de validade que se poderá afirmar que determinado precedente
pode ser aplicado a determinada situação. E por motivo do ato enten-
demos ser a “situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para
a prática do ato”.259
Feitas estas considerações, passemos a aprofundar a análise dos
precedentes administrativos.
258 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo, p. 394.
259 Ibidem, p. 405.
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
4.3 FIGURAS PRÓXIMAS AOS PRECEDENTES ADMI-
NISTRATIVOS: COSTUME, PRÁTICA ADMINISTRA-
TIVA, ATOS PRÓPRIOS E ANALOGIA
Os precedentes administrativos possuem características próprias,
que os apartam de outros institutos de Direito, vez por outra invo-
cados pelos estudiosos da matéria: costume, prática administrativa, atos
próprios e analogia.
Vejamos brevemente cada um deles.
4.3.1 Costume
O primeiro instituto que poderia ser confundido com os prece-
dentes administrativo é o costume. Tal como será reiterado mais a frente,
os precedentes administrativos (assim como os precedentes judiciais) não
se confundem, em hipótese alguma, com os costumes.
A razão para a distinção entre estes dois institutos funda-se na
origem de cada um: os costumes nascem das práticas reiteradas de determinada
população em determinado território e em determinada época, enquanto os pre-
cedentes administrativos formam-se a partir de atos administrativos (unilateral,
individual e concreto) emitidos pela Administração Pública. Os precedentes, por-
tanto, são normas jurídicas de origem estatal, enquanto os costumes são normas
jurídicas de origem não-estatal.260
Outra razão que pode ser invocada para se apartar os precedentes
administrativos dos costumes é a reiteração. Ao nosso ver, para que se
forme um precedente administrativo não é necessário que a Adminis-
tração Pública tenha prolatado dois ou mais atos com o mesmo conteú-
do e diante situações fáticas substancialmente semelhantes. Para se invo-
car um precedente administrativo basta existir um único ato sobre de-
terminado suporte fático.
260 LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos. São Paulo, Martins Fontes, 2007,
p. 318.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Esta mesma situação não ocorre com os costumes. Ao contrário
dos precedentes administrativos, os costumes pressupõem a reiteração de
determinada conduta. Não se pode dizer que certo comportamento
converge com os costumes de determinado povo se este comportamen-
to não tenha se sedimentado ao longo de determinado período de
tempo. Os costumes vivem na consciência do povo, o que exige a reite-
ração e o transcurso de determinado lapso temporal.261
Augusto Durán Martínez,262 eminente professor uruguaio que
se dedicou ao estudo dos precedentes administrativos, é enfático ao
registrar a diferença entre estas duas figuras: “O precedente adminis-
trativo se diferencia do costume por sua origem: provém da Adminis-
tração, não da sociedade, segundo a concepção tradicional, e a condu-
ta pode não ser reiterada.
Neste mesmo sentido, assim assinalam Jaime Rodríguez-Arana
Muñoz e Miguel Ángel Sedín García:263
Pois bem, não é muito complicado negar o caráter de costume
do precedente. Por um lado, diferentemente desta, não se exige
um determinado nível de reiteração, pois ele existe com um mero
261 Como bem registrou Mario G. Losano, os costumes possuem um elemento objetivo e
um elemento subjetivo. O objetivo refere-se à reiteração: é preciso haver a repetição de
certo comportamento. O subjetivo nada mais é do que a convicção de que este comporta-
mento reiterado é correto; ibidem, p. 319.
262 MARTÍNEZ, Augusto Durán. El Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodrí-
guez-Arana; GARCÍA, Miguel Ángel Sendín (coord.). Fuentes del Derecho Administrativo.
Buenos Aires: Ediciones Rap, 2010, p. 679.
263 No original: “Pues bien, no es muy complicado negar el carácter de costumbre del pre-
cedente. Por un lado, a diferencia de ésta, no exige un determinado nivel de reiteración, sino
que existe con un mero acto aislado. Por otro, porque el precedente administrativo es fruto
de la simple acción de la Administración, sin par ticipación de la comunidad, faltando, en
consecuencia, la aceptación de esa conducta como norma por la conciencia colectiva opinio
iuris”. ¿Es el lacto administrativo fuente del derecho en el ordenamento jurídico español? El Acto
Adminitrativo a la luz de las Fuentes de Derecho y como sustento fundamental de la legalid adadmi-
nitrativa. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana; PINILLA, Victor Leonel Benavides (coord.).
2009, p. 40. El Acto Admistrativo Como Fuente del Derecho Administrativo en IberoAmé-
rica. Panamá. Disponível em: .organojudicial.gob.pa
127
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
ato isolado. Por outro, porque o precedente administrativo é fru-
to da simples ação da Administração, sem a participação da co-
munidade, faltando, por consequência, a aceitação desta conduta
como norma por consciência coletiva opinio iuris.
Notamos, portanto, que os precedentes administrativos não se
confundem com os costumes, pois, reforcemos, além de não carecerem
de reiteração, os precedentes não nascem do comportamento popular,
mas sim do comportamento da Administração Pública.
4.3.2 Práticas administrativas
Os precedentes administrativos também não se confundem com
aquilo que se conhece por práticas administrativas.
As práticas administrativas são apontadas pela doutrina ora como
normas rotineiras que não atingem a esfera jurídica dos administrados,
ora como reiteração de precedentes administrativos.
Para primeira acepção da expressão, capitaneada por José Ortiz
Díaz,264 práticas administrativas são normas usuais de caráter e efi-
ciência puramente interna para a Administração Pública. Não atingem,
portanto, a esfera jurídica dos administrados, pois a eles não se dirigem.
Em verdade, as práticas administrativas nada mais seriam do que ro-
tinas administrativas.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,265 ao tratar das práticas admi-
nistrativas, segue a mesma linha, pois para ele prática administrativa é a
“atividade interna da Administração, reiterada e uniforme, formando um
uso, na aplicação de regras jurídicas nor mativas e outros atos jurídico-
-administrativos, criando rotina administrativa”.
264 DÍAZ, José Ortiz. El Precedente Administrativo. Madrid, Revista de Administración Pública,
1957, n. 24, p. 79.
265 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo.
3.ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2007, V. I, p. 393.
128
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Ora, nesta primeira acepção notamos claramente a diferença entre
prática administrativa e precedentes administrativos, na medida em que
estes atingem a esfera jurídica dos administrados, e aqueles não.
A segunda acepção dada à expressão prática administrativa está
relacionada com a reiteração dos precedentes administrativos.266 Ou seja,
representariam o conjunto de decisões sobre determinadas situações.
Nesta acepção, por óbvio, prática administrativa e precedentes adminis-
trativos não se confundem, já que a prática administrativa nada mais seria
do que o substantivo coletivo de precedente administrativo.
4.3.3 Atos próprios
No item em que tratamos da autovinculação administrativa e da he-
terovinculação administrativa, adiantamos que apesar de pertencerem à
mesma categoria (autovinculação unilateral, individual e concreta), os
precedentes administrativos e os atos próprios não se confundem.
O ponto que aproxima a teoria dos atos próprios, usualmente
relacionados com os brocardos venire contra acto proprium non valet e
nemo pro iure contra factum propium, e os precedentes administrativos
relaciona-se com o propósito comum de ambos, qual seja: impedir a
contradição da Administração Pública entre a conduta atual e uma conduta
anterior. É dizer: ambos objetivam a manutenção da coerência da Ad-
ministração Pública.267
De acordo com Alejandro Borda,268 a teoria dos atos próprios é
uma regra de direito “derivada do princípio geral da boa-fé, que sanciona
266 DÍEZ-PICAZO, Luís; op. cit., p. 44. Vide também: MARTÍNEZ, Augusto Durán. El
Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana; GARCÍA, Miguel Ángel
Sendín (coord.). Fuentes del Derecho Administrativo. Buenos Aires, Ediciones Rap, 2010,
p. 680.
267 MARIAL, Hector. La doctrina de los proprios actos y la Administración Pública. Buenos Aires,
Depalma, 1988.
268 BORDA, Alejandro. La Teoria de Los Actos Propios. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 2005,
p. 56.
129
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
como inadmissível toda pretensão lícita mas objetivamente contraditória
com relação ao comportamento anterior de um mesmo sujeito”.
Imagine-se, por exemplo, que a Administração Pública, para reno-
var determinada autorização de exploração de jazida mineral exigisse
que o administrado implementasse uma série de modificações e melho-
rias no local. Realizadas as medidas exigidas pela Administração Pública
para a renovação da autorização, esta, por razões de conveniência e
oportunidade, resolve não renová-la. Neste caso, notamos uma inequí-
voca contradição entre a conduta inicial da Administração Pública e a
decisão de não renovar a autorização. Para a teoria dos atos próprios,
mesmo sabendo que a autorização é um ato unilateral e dotado de dis-
cricionariedade administrativa, a conduta da Administração é ilícita,
podendo ser invalidada ou, pelo menos, ocasionará a reparação dos danos
suportados pelo administrado.269
A diferença substancial entre precedentes administrativos e os atos
próprios, portanto, reside no fato de que nestes os sujeitos envolvidos
devem ser os mesmos,270 formando uma mesma relação jurídica.271 No
exemplo acima, Administração e administrado eram os mesmos e a con-
tradição ocorrida deu-se no bojo de uma mesma relação jurídica.
As mesmas exigências não existem quando tratamos dos prece-
dentes administrativos. Isto porque, os precedentes não exigem a iden-
tidade de partes, pelo menos no que se refere ao administrado. Apenas a
269 MARTÍNEZ, Augusto Durán. El Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-
-Arana; GARCÍA, Miguel Ángel Sendín (coord.). Fuentes del Derecho Administrativo. Buenos
Aires, Ediciones Rap, 2010, p. 687.
270 Em obra dedicada ao estudo dos atos próprios, Alejandro Borda anota o seguinte: “El tecer
elemento necesario para que pueda aplicarse esta teoria de los própr ios actos es, como ya ló
adelantáramos (punto 76), la necesidad de que los sujetos que intervienen en ambas
conductas – como emisor o como receptor – Sean lós mismos. El sujeto activo, esto es la
persona que há observado determinada conduta – com fundamento em uma faculdad o um
derecho subjetivo –, debe ser El mismo que pretende luego contra decir esa pr imera conducta.
El sujeto pasivo, es decir, la persona que há sido receptor o destinatario de ambas conductas,
también debe ser El mismo. Si falta tal identidad, no puede aplicar-se la teoría en estúdio”;
BORDA, Alejandro. La teoria de losactosproprios; op. cit., p. 85-86.
271 DÍEZ-PICAZO, Luis; op. cit., p. 16.
130
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Administração Pública deve ser a mesma, pois é ela que está vinculada
aos seus atos anteriores. Se as partes não são rigorosamente as mesmas,
conclui-se que os precedentes administrativos não se operam em uma
mesma relação jurídica, mas sim irradiam seus efeitos para outras relações.
4.3.4 Analogia
Os precedentes administrativos também não se confundem com
a analogia.
A analogia,272 como sabemos, é um instrumento jurídico destina-
do à integração do Direito (autointegração),273 à colmatação de lacunas.
Consiste na utilização de uma regra jurídica cuja hipótese se assemelha
a um caso não contemplado direta ou especificamente por uma regra
jurídica.274 Em outras palavras, na ausência de regulamentação de deter-
minado fato do mundo fenomênico, utiliza-se os preceitos de uma regra
jurídica cuja hipótese de incidência se assemelha ao caso não regulado.
A analogia, como se nota, pressupõe a ausência de uma regra
jurídica.
Ao revés, os precedentes administrativos (e os judiciais também)
pressupõem a existência de regra jurídica, ou seja, sua utilização não está
atrelada à inexistência de uma norma jurídica275. Os precedentes não
atuam no vácuo normativo.
É bem verdade que em matéria de lacunas, os precedentes admi-
nistrativos, assim como os judiciais, podem ser úteis. A partir do momento
272 Ubie adem est ratio, ibi eadem dispositio juris esse debet.
273 Segundo Maria Helena Diniz, autointegração é o “método pelo qual o ordenamento jurí-
dico se completa, recorrendo à fonte dominante do direito: a lei.”. Ela se diferencia da he-
terointegração, que é a comaltação de lacunas através de “fontes diversas da norma legal”,
tais como o costume e a equidade; DINIZ, Mar ia Helena. As lacunas no direito. São Paulo,
Saraiva, 2007, p. 139.
274 Ibidem, p. 139-140.
275 DIEZ-PICAZO, Luis; op. cit., p. 17.
131
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
que uma lacuna é colmatada por um dos mecanismos previstos em
nosso ordenamento jurídico (analogia, costumes e princípios gerais de
direito – art. 4º da Lei de Introdução às Nor mas do Direito Brasileiro),
fixa-se determinada solução, que por exigência dos princípios da igualdade,
segurança jurídica, boa-fé e eficiência deverá ser utilizada em casos subs-
tancialmente similares.
A analogia, portanto, é anterior ao precedente administrativo, dada
a sua função integrativa, e com ele não se confunde.
4.4 OS FUNDAMENTOS PARA A EFICÁCIA VINCULANTE
DOS PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO
ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
Como dissemos anteriormente, uma rápida pesquisa pela doutri-
na brasileira, nos revela que o tema dos precedentes administrativos não
é dos mais estudados. Daí decorre o fato de não possuirmos em nosso
país regras jurídicas voltadas especificamente a estabelecer os contornos
dos precedentes administrativos, a exigir, nessa medida, maior esforço argu-
mentativo para justificar a eficácia vinculante dos precedentes.
Afigura-se-nos que a eficácia vinculante dos precedentes administrativos
pode ser extraída a partir dos princípios da igualdade, segurança jurídica, boa-fé
e da eficiência, dotados de eficácia normativa, assim como pela interpretação dos
arts., parágrafo único, XIII, e art. 50, VII, ambos da Lei de Processo Admi-
nistrativo Federal.
Nos itens seguintes analisaremos cada um dos princípios mencio-
nados, bem como os dispositivos legais mencionados.
Antes, porém, é interessante anotarmos que os dois dispositivos
legais que serão utilizados para fundamentarmos a eficácia vinculante
dos precedentes administrativos versam justamente sobre o que deno-
minamos de superação dos precedentes administrativos. Outrossim, partiremos
do momento em que a Administração Pública deixará de observar um
precedente administrativo em determinado caso, para justificarmos que
132
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
estes devem ser obrigatoriamente observados caso não se esteja diante
de uma hipótese de superação do precedente administrativo.
Vejamos, portanto, os princípios jurídicos que servem de funda-
mento para a eficácia vinculante dos precedentes administrativos, para
depois nos determos às regras jurídicas que também contribuem para
fundamentar os precedentes.
4.4.1 Os princípios jurídicos que fundamentam o efeito
vinculante dos precedentes administrativos
A invocação de certos princípios jurídicos é suficiente para fun-
damentar a eficácia vinculante dos precedentes administrativos no Di-
reito Administrativo brasileiro. Isto porque, como vimos anter iormente,
os princípios jurídicos são normas jurídicas, tal como as regras, dotadas
de elevada normatividade. Esta invulgar força jurídica permite que os
princípios jurídicos sirvam de fundamento para um instituto jurídico,
ainda que não regulado pela legislação.
Ademais, em nossas pesquisas observamos que em todos os países
em que se estuda o tema dos precedentes administrativos, não se tem
legislação específica sobre o assunto, o que faz com que os autores que
se debruçam sobre o tema busquem nos princípios jurídicos a funda-
mentação dos precedentes administrativos com força vinculante.
Vejamos, portanto, os princípios jurídicos que servem de amparo
aos precedentes administrativos.
4.4.1.1 Princípio da igualdade
Entre todos os princípios que conferem força normativa aos precedentes
administrativos, sem dúvida alguma é o princípio da igualdade o mais relevante.
E esta afirmação não é novidade, pois, ao longo deste trabalho, registra-
mos a relevância do princípio da igualdade para os precedentes, sejam
eles judiciais ou administrativos.
133
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Como sabemos, atribuem-se a Aristóteles os louros da máxima
amplamente disseminada que preconiza o tratamento igual aos iguais e
desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade.276 É dizer: inexistindo
qualquer razão para que se estabeleça tratamento jurídico diferente en-
tre as pessoas, deve-se tratá-las da mesma maneira.
No Brasil, o princípio da igualdade, tido como o mais vasto dos
princípios constitucionais277 e inerente à ideia de República278 – com o
que concordamos inteiramente –, sempre mereceu previsão expressa em
nossos textos constitucionais.
Ocorre que a análise jurídica do princípio da igualdade sempre
teve em mira o momento da elaboração da lei. Expressões frequente-
mente utilizadas como igualdade perante a lei (igualdade formal)279 ou
igualdade na lei (igualdade material),280 revelam que é no plano abstrato
da norma jurídica que sempre se analisou o princípio da igualdade (o
276 NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de direito consti-
tucional. 5.ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 90.
277 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 14.ed., São Paulo. Saraiva, 1991, p. 170.
278 Vejamos o destaque de Geraldo Ataliba, em sua monumental obra “República e Consti-
tuição”: “Não ter ia sentido que os cidadãos se reunissem em república, erig issem um Estado,
outorgassem a si mesmos uma Constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições
que tolerassem ou permitissem – seja de modo direto, seja indireto – a violação da igualdade
fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime”; ATALIBA,
Geraldo. República e Constituição. 2. ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 160.
279 Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, Hans Kelsen assinala que esta expressão
não possui qualquer significação, já que a igualdade perante a lei significa apenas que os
órgãos que aplicam o direito devem aplicar a lei conforme elas estabelecem. Diz o mestre
de Viena: “Colocar, o problema, da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os
órgãos de aplicação do direito não tem o direito de tomar considerações senão as distinções
feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da
regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem
jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis –
em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas”;
HANS, Kelsen. Teoria Pura do Direito. 2.ed., Paris, Dalloz, 1962, p. 190, apud BANDEIRA
DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed., São Paulo,
Malheiros Editores, 2001, p. 10.
280 Igualdade na lei, segundo Kelsen, seria a igualdade como limite para a elaboração da lei;
ibidem, p. 10.
134
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
tratamento conferido pela lei é ou não isonômico?), o que significa dizer
que o principal destinatário do princípio sempre foi o legislador.
Contudo, percebemos ao longo deste trabalho que a observân-
cia do princípio da igualdade quando da elaboração de uma lei (ou
de qualquer outra norma jurídica dotada de generalidade e abstração)
não é suficiente para que o princípio em cotejo seja internamente
observado. Para que o princípio da igualdade seja plenamente respeitado é
preciso, também, que a lei seja aplicada de maneira isonômica. Do contrário,
de que valeria o princípio da igualdade se no momento de sua aplicação ele
fosse amesquinhado?281
Como se nota, o destinatário do princípio da igualdade é o
legislador, que deve observá-la quando da elaboração de uma lei, mas
também o aplicador do Direito, que não pode aplicar a mesma lei – ou
qualquer outra norma jurídica dotada de generalidade e abstração –
de modo diferente quando se depara com situações substancialmente
similares.282 Daí a importância e a obrigatoriedade dos precedentes
administrativos.
Diez-Picazo, renomado autor espanhol e que também sustenta a
força vinculante dos precedentes administrativos, grafou com pena de
ouro a necessidade de observância do princípio da igualdade no mo-
mento em que se aplica a lei (ou qualquer outra norma jurídica):
281 Anota Juan Carlos Cabanas Garcia: “Siendo ello así, parece evidente que el principio de
igualdad que se conoce como ante la ley o en la ley (no cabe ocultar cierto debate termino-
lógico tras estas expresiones) presenta una faceta de aplicación judicial, similar a como puede
predicarse de la Administración; la exigência siempre también de un tertium comparationis,
aunque divergen e los fines y el tipo de resolución”; GARCÍA, Juan Carlos Cabanas. El
Derecho a la Igualdad en la aplicación judicial de la ley. Madrid, Editorial Aranzadi, 2010,
p. 51-52.
282 Anota Juan Carlos Cabanas Garcia: “[...] cabe distinguir [...] entre un derecho a la igualdad
en la ley, como derecho frente al legislador, o más generalmente, frente al poder del que
emana la norma, y un derecho a la igualdad ante la ley o en la aplicación (administrativa o
judicial) de esta [...]”; ibidem, p. 52. Celso Antônio Bandeira de Mello é categórico ao afirmar
que o “preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para
o aplicador da lei quer para o próprio legislador”; BANDEIRA DE MELLO, Celso. Conteúdo
jurídico do princípio da igualdade; op. cit., p. 9.
135
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Agora bem, para que exista igualdade jurídica não basta que a lei seja
igual para todos, é inescusável que ela seja a todos aplicada do mesmo
modo. O pr incípio da igualdade ante a lei tem que operar quanto
na fase de criação da norma como no momento de sua aplicação.
Este princípio, que em virtude dos artigos 9º e 53 da Constituição
Federal, vincula todos os poderes públicos na fase de aplicação do
Direito, e vincula muito especialmente a Administração Pública.283
A partir do que foi dito até o momento, é-nos lícito afirmar que
se o princípio da igualdade perante a lei é um direito fundamental (art.
, II, CF), também deve receber a mesma qualificação jurídica a verten-
te do princípio da igualdade destinada à aplicação isonômica da lei (ou
de qualquer outra regra ou princípio jurídico). Trocando em miúdos: o
que se convencionou chamar de direito à igualdade na aplicação do Direito,
é também um direito fundamental.284
E se é um direito fundamental, dúvida não há acerca da eficácia
vinculante dos precedentes, inclusive o administrativo.
4.4.1.2 Princípio da Segurança Jurídica
Outro princípio de suma importância para a eficácia vinculante
dos precedentes administrativos, assim como para os judiciais, é o prin-
cípio da segurança jurídica, que nas precisas palavras de Celso Antônio
Bandeira de Mello, se não é o pr incípio mais importante do ordenamen-
to jurídico, certamente é um dos mais importantes.285
283 “Ahora bien, para que exista la igualdad jurídica no basta con que la ley sea igual para
todos, sindo que es inexcusable que a todos les sea aplicada del mismo modo. El princípio
de igualdad ante la ley tiene que operar tanto en la fase de creación de la norma como en
la de su aplicación. Este princípio, que en virtude de los ar tículos 9º y 53 de la Constitución,
vincula a todos los poderes públicos, en la fase de aplicación del Derecho vincula muy
especialmente a la Administración pública”; DIEZ-PICAZO, Luis; op. cit., p. 11.
284 GARCIA, Juan Carlos Cabanas. El derecho a la igualdad en la aplicación judicial de la ley; o p.
cit., p. 17.
285 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de direito administrativo; op. cit., p. 128.
136
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
A invulgar relevância do princípio da segurança jurídica é imanente
ao Estado Democrático de Direito286 – daí a desnecessidade de sua pre-
visão expressa no texto constitucional287-288 –, criação formidável do
intelecto humano que tem por objetivo majorar a estabilidade e a previ-
sibilidade das relações entre particulares e o Estado, por meio de um
quadro normativo prévio e estável. Esta é a essência do Estado Democrá-
tico de Direito; esta é a função do princípio da segurança jurídica: pro-
piciar previsibilidade e estabilidade às pessoas.289
É sabido por todos aqueles que se ocupam em buscar as razões
maiores do Direito, que o homem, ao fugir de seu estado natural (onde
preponderava a lei do mais forte), sempre teve em mira uma vida em
que surpresas e instabilidades sociais fossem minoradas ao máximo. O
homem busca estabilidade – o que inclui previsibilidade – e segurança.
Como bem acentua Rafael Valim,290 o princípio da segurança
jurídica pode ser analisado sob dupla perspectiva, mencionadas no pará-
grafo anterior, quais sejam: a certeza e a estabilidade. A certeza jurídica,
286 Diz Celso Antônio Bandeira de Mello: “Este princípio não pode ser radicado em qualquer
dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamen-
te de um Estado Democrático de Direito, de tal sor te que faz parte do sistema constitucio-
nal como um todo”; ibidem, p. 127.
287 Anote-se que a Constituição de alguns países faz expressa referência a este verdadeiro
sobreprincípio, tal como a Espanhola, em seu ar t. 9.3: “La Constitución garantiza el principio
de legalidad, la jerarquía normativa, la publicidad de las normas, la irretroactividad de las
disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales, la seguridad
jurídica, la responsabilidad y la interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos.”
288 Apesar de se tratar de um princípio constitucional implícito, cer to é que em nível infra-
constitucional o princípio da segurança jurídica possui previsão expressa. Referimo-nos ao
caput do art. 2º da Lei Federal n.9.784/99: “Art. 2o A Administração Pública obedecerá,
dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcio-
nalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e
eficiência.”
289 Anota Celso Antônio Bandeira de Mello: “O Direito propõe-se a ensejar uma certa es-
tabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social”; BANDEIRA DE MELLO,
Celso. Curso de direito administrativo; op. cit., p. 128.
290 VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo,
Malheiros Editores, 2010, p. 46.
137
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
anota o preclaro autor, “significa o seguro conhecimento das normas
jurídicas, condição indispensável para que o homem tenha previsibilida-
de, podendo projetar a sua vida e, assim, realizar plenamente seus desíg-
nios pessoais”.291 Nesta perspectiva, são analisadas questões relativas à
vigência das normas jurídicas, sua projeção eficacial e o seu conteúdo. A estabi-
lidade jurídica, aglutina os institutos jurídicos dedicados à conservação
dos “direitos subjetivos e as expectativas que os indivíduos de boa-fé
depositam na ação do Estado”.292 Dentre estes institutos destacam-se o
direito adquirido, o ato jurídico e a coisa julgada, assim como a prescrição e
a decadência.293
Para o nosso estudo, interessa-nos especialmente a perspectiva da
certeza jurídica, já que é dentro dela que se pode inserir os precedentes
administrativos, assim como os judiciais.294
Como dito, o homem anseia por um mínimo de estabilidade e
de previsibilidade. Sobre isto ninguém diverge. Ocorre, contudo, que
tal como registramos ao longo deste trabalho, as modificações intro-
duzidas pela mudança das técnicas legislativas e o crescimento da rele-
vância dos princípios jurídicos,295 e, ainda, o crescimento do número e
291 VALIM, Raf ael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro. São Paulo,
Malheiros Editores, 2010, p. 91.
292 Ibidem, p. 47.
293 Anota o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello: “Os institutos da prescrição, da
decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do
direito adquirido, são expressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à esta-
bilidade, à segurança, conatural ao Direito”; BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de
Direito Administrativo; op. cit., p. 128.
294 MARTÍNEZ, Augusto Durán. El Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-
Arana; GARCÍA, Miguel Ángel Sendín (coord.). Fuentes del Derecho Administrativo. Buenos
Aires, Ediciones Rap, 2010, p. 693.
295 Neste sentido, Paulo Otero: “A debilitação da densidade ordenadora e das vinculações
positivas da lei para a Administração, ampliando a função constituinte desta na realização do
Direito, coloca em causa os valores da segurança e da certeza jurídicas da legalidade
administrativa: a segurança jurídica da previsibilidade aplicativa das normas, permitindo
almejar como ideal de sistema administrativo uma postura decisória silogístico-subsuntiva
das normas, encontra-se hoje completamente ultrapassada pela flexibilidade do conteúdo da
legalidade”; OTERO, Paulo; op. cit., p. 162.
138
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
da complexidade das normas jurídicas, fez com que esta previsibilidade
diminuísse. Deveras, é cada vez mais difícil saber-se de antemão como
se decidirá determinado caso. Há, portanto, uma “insegurança decorren-
te da imprevisibilidade aplicativa do Direito”.296
Reforcemos que o princípio da segurança jurídica não se destina
apenas a proteger os cidadãos contra enunciados normativos abstratos,
através da obrigação de serem claros e compreensíveis, mas esta proteção
se dá também contra mudanças de interpretação sobre determinada
norma jurídica, pois, como vimos, “lei que vige em determinado mo-
mento, é a lei segundo uma de suas interpretações possíveis”.
É diante deste cenário, cada vez mais perceptível a todos nós, que
os precedentes administrativos (e judiciais) ganham relevância jurídica.
Ao se exigir que a Administração Pública dê a mesma solução jurídica
para casos substancialmente similares, e que eventuais mudanças só pas-
sem a vigorar para casos futuros e após ampla publicidade – conforme
veremos a seguir –, resgata-se a segurança jurídica perdida.
4.4.1.3 Princípio da boa-fé
É fora de dúvida que o princípio da boa-fé se insere nos quadran-
tes do Direito Administrativo297 e que, por isso, deve per mear as relações
entre a Administração Pública e os administrados.
De princípio de natureza moral, que condiciona todas as relações
pessoais, o princípio da boa-fé foi institucionalizado pelo Direito,298 de
modo que, tal como qualquer pr incípio jurídico, é de observância
296 OT ERO, Paulo., p. 163.
297 Vide Sainz Moreno. La buena fe en las relaciones de la administración con los administrados.
Revista de Derecho Administrativo, Madr id, n. 89, p. 293-314, 1979; PÉREZ, Jesús Gonzáles.
El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 5. ed., Madrid, Thomson Reuters,
2009, p. 50.
298 No Brasil, podemos citar o art., parágrafo único, IV, da Lei de Processo Administrativo
Federal.
139
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
obrigatória299 – tanto pela Administração Pública, quanto pelo adminis-
trado. Para fins deste trabalho, interessa-nos particularmente a boa-fé
proveniente da Administração Pública.
O princípio da boa-fé valoriza o comportamento ético entre
sujeitos, ou seja, na relação entre ambos deve reinar comportamentos
marcados pela sinceridade, lealdade, coerência, respeito ao próximo e,
especialmente, pela confiança.300 Todos os atos eivados de malícia, surpre-
sas, obscuridade, desonestidade, devem ser, à luz deste princípio, energi-
camente repudiados.301
Ora, se se deve esperar toda esta franqueza da Administração Pú-
blica em todos os seus atos, é inegável que tal exigência cria para o ad-
ministrado um estado de confiança legítima com relação às decisões da-
quela, a significar que surge para a Administração Pública um dever de
observar no futuro a conduta que seus atos anteriores faziam prever.302 A Admi-
nistração Pública, portanto, não deve frustrar a justa expectativa que
tenha criado no administrado através de suas decisões anteriores.
Assim, se diante de determinada situação fática a Administração
Pública portou-se de determinada maneira, decidiu de certo modo, deve
ela, sob pena de romper a lealdade e a confiança que por seus atos gerou
ao administrado, manter o mesmo comportamento, se entre os casos
houver similitude substancial e incidirem as mesmas normas jurídicas.303
299 CLEVES, Maria José Viana. El principio de confianza legítima en el derecho administrativo
colombiano. Bogotá: Universidad Extrenado de Colombia, 2007, p. 39.
300 Muitos autores inserem o princípio da confiança legítima como subprincípio do princí-
pio da boa-fé.
301 Vide BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de direito administrativo; op. cit., p. 123-124.
302 Assim anota Jesús Gonzáles Pérez: “La buena fe implica un deber de comportamento, que
consite en la necesidad de observar en el futuro la conducta que los actos anteriores hacían
prever; PÉREZ, Jesús Gonzáles; op. cit., p. 238.
303 Neste sentido, assim grafou Miriam M. Ivanega: “La buena fe significa que el hombre cree
y confia en que una determinada declaración de voluntad surtirá, en un caso concreto, sus
efectos usuales; los mismos efectos que ordinária y normalmente produjoen casos iguales”;
Los Precedentes administrativos en el derecho argentino. In Fuentes del Derecho Administrativo. Buenos
Aires, Ediciones RAP, 2010, p. 73. Trata-se de uma obra coletiva coordenado por Jaime
Rodríguez-Arana Muños e Miguel Ángel Sendín García.
140
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Em suma, quando a Administração Pública não observa seus precedentes,
viola, também, o princípio da boa-fé.
O princípio da boa-fé, como se nota, robustece a necessidade de a
Administração Pública manter a coerência entre as suas próprias decisões, de
não decidir de maneira diferente casos substancialmente semelhantes, haja
vista a legítima expectativa dos administrados.304 Daí por que o princípio da
boa-fé também respalda a eficácia vinculante dos precedentes administrativos.
Além de corroborar com a eficácia vinculante dos precedentes
administrativos, o princípio da boa-fé também contribui para a deter-
minação da eficácia da superação de precedentes (= projeção eficacial).
Conforme reforçaremos mais à frente, os precedentes administra-
tivos também podem ser superados, ou seja, sucedidos por outro prece-
dente. Todavia, dúvidas poderão existir quanto ao aspecto temporal dos
efeitos do novo precedente (serão retroativos ou prospectivos?). A nosso
ver, o princípio da boa-fé exige que os efeitos da superação de um pre-
cedente sejam prospectivos, ou seja, valem apenas para casos futuros e
desde que tenha sido dada ampla publicidade. Apenas quando o novo
precedente for benéfico aos administrados é que se poderia admitir a
retroação de seus efeitos.305
4.4.1.4 Princípio da eficiência
Introduzido no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988
pela Emenda Constitucional n. 19/98 e também expressamente previs-
to no art. 2º da Lei n.9.784/1999,306 o princípio da eficiência, conhecido
304 Anota Diez-Picazo: “En definitiva, el principio de buena fe se basa en la legitima expectativa
de que deben producirse en cada caso las consecuencias usuales, las que se han producido
en casos similares. Esta legítima expectativa es defraudada cuando la Administración, sin
motivo, se aparta de sus precedentes”; DIEZ-PICAZO, Luis; op. cit., p. 14.
305 CASSAGNE, Juan Carlos. Curso de Derecho Administrativo. 10. ed., Buenos Aires, La Ley,
2011, t. I, p. 171.
306Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório,
141
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
na doutrina italiana como princípio da boa administração,307 é o outro
princípio que pode ser invocado para sustentar a foça vinculante dos
precedentes administrativos.
Como bem salienta Diogenes Gasparini,308 o princípio da eficiên-
cia impõe a toda a Administração Pública o dever de realizar todas as
suas atribuições com rapidez, perfeição e rendimento. Ou seja, ser eficiente
para o Direito Administrativo significa que o administrador público deve
alcançar o melhor rendimento possível, com os menores índices de erros
e dispêndio de recursos, no menor tempo possível, e sem transbordar os
limites da legalidade.309
A rapidez está intimamente relacionada com o dever de se dar
respostas às demandas que se apresentam no menor espaço de tempo
possível, pois tão perversa quanto o erro ou a injustiça de uma decisão
é a morosidade em sua prolação.
Não é demais lembrarmos, que foi desta necessidade ululante de
que as decisões estatais se deem de maneira célere, típica do mundo
em que vivemos, que se inseriu no art. 5º da Constituição Federal
(Emenda Constitucional n. 45/2004), o inciso LXXVIII.310 que alçou
segurança jurídica, interesse público e eficiência”, BRASIL, Lei n. 9.784, de 29 de janeiro
de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.
Brasília, Diário Oficial da União, fev. 1999.
307 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 14. ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 22;
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 126;
FERREIRA DA ROCHA, Sílvio Luís. Manual de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros
Editores, 2013, p. 81.
308 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo; op. cit., p. 22.
309 Sobre a relação de subserviência do princípio da eficiência em relação ao princípio da
legalidade, assim anota Celso Antônio Bandeira de Mello: “A Constituição se refere, no art.
37, ao princípio da eficiência. Advirta-se que tal princípio não pode ser concebido (entre
nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade,
pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever
administrativo por excelência”; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo; op. cit., p. 125.
310Art. 5º [...] LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
(BRASIL. Constituição Federal. Brasília, Senado Federal, 1988).
142
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
ao status de direito fundamental, a duração razoável do processo, seja ele
judicial ou administrativo.
Mas não basta ser rápido para ser eficiente. É preciso que ao lado da
agilidade, as ações da Administração atinjam um patamar significativo de
qualidade. Isto porque, de nada vale ter-se respostas estatais rápidas, mas de
baixa qualidade, na medida em que a insatisfação quanto ao conteúdo das
decisões terá como consequência a busca por socorro no Poder Judiciário.
Em verdade, a qualidade insatisfatória das decisões transfere ao Poder Judiciário a
ineficiência da Administração Pública. E isto não é uma situação desejada, pois
o Judiciário abarrotado é um Judiciário menos eficiente.
Uma das maneiras de a Administração Pública tornar-se mais
eficiente na realização de suas atribuições, dá-se também pela adoção dos
precedentes administrativos. Ao se estabelecer que diante de situações
similares deve-se adotar a mesma decisão, é inegável que a Administração
se torna mais eficiente, pois minimizam-se as oscilações e contradições
no momento de aplicar determinada norma jurídica, sem contar que o
tempo despendido diminui consideravelmente.
4.4.2 As regras que servem de fundamento aos precedentes
administrativos
4.4.2.1 O artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, da Lei de Processo
Administrativo Federal
Como dissemos anteriormente, a juridicidade dos precedentes
administrativos também pode ser extraída a partir de dois dispositivos
legais que versam justamente sobre a sua superação.311 O pr imeiro deles
é o art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei de Processo Administrativo Fe-
deral, que estabelece o seguinte:
Art. 2º […]
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados,
entre outros, os cr itérios de:
311 Vide item 5.2.
143
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
[...]
XIII – interpretação da norma administrativa da forma que me-
lhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, veda-
da aplicação retroativa de nova interpretação.
Como se pode perceber, o art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei de
Processo Administrativo Federal possui em seu texto duas regras jurídi-
cas. A primeira estabelece que a inter pretação de uma “norma adminis-
trativa” (= norma jurídica que versa sobre a atuação da Administração
Pública), deve ser a mais favorável ao interesse público, ou seja, dentre as
interpretações possíveis de uma norma, deve o administrador utilizar a
que estiver maior sintonizada com o interesse público.
A obviedade desta determinação legal dispensa-nos de maiores
considerações, já que é induvidoso que a Administração Pública deve
sempre escolher a melhor interpretação de uma norma jurídica – a mais
afeta ao interesse público primário.
O que mais nos interessa no dispositivo em comento é a sua últi-
ma parte. Ela estabelece que fixada a interpretação de determinada
norma jurídica, o que se dá, também,312 através de sua aplicação em um
caso concreto, eventual mudança de entendimento não poderá produzir
efeitos retroativos, ou seja, vale apenas para as situações jurídicas forma-
das após a mudança de interpretação. Isto porque, reforce-se, a nova in-
terpretação equivale à edição de uma nova norma jurídica.
A nosso ver, quando o inciso XIII veda a possibilidade da eficácia
retroativa da mudança de interpretação, está ele a estabelecer que a su-
peração de um determinado precedente terá eficácia prospectiva pura, à qual
nos referimos ao tratarmos dos precedentes judiciais na common law.313
A eficácia prospectiva pura, recordemos, é extremamente protetiva ao ad-
ministrado e estabelece que os efeitos da nova decisão (= nova interpre-
tação de uma mesma norma jurídica) valem apenas para casos futuros, ou
312 É possível fixar-se a interpretação de determinada norma jurídica através de normas
infralegais. Os regulamentos, como se sabe, podem possuir esta função de fixar a interpretação.
313 Vide item 1.3.2.
144
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
seja, não atinge a parte envolvida, tampouco os fatos ocorridos antes da
decisão e que ainda serão regidos pela interpretação anterior.
A mudança de interpretação, portanto, valerá apenas para os casos
futuros (= efeitos prospetivos) e desde que se dê ampla publicidade a esta
mudança.
Assim, caso a Administração Pública possua o entendimento de
que determinada situação não seja passível de sanção administrativa, caso
ela reveja a interpretação da hipótese de incidência da norma jurídica,
de modo a compreender que a situação que julgava infensa à sanção
administrativa passe a ser ilícita e, portanto, passível de penalidade, esta
nova interpretação somente poderá incidir sobre casos novos (nula poena
sine lege) e não atingem, como dito, as partes envolvidas.
Ora, se as mudanças interpretativas produzem efeitos jurídicos
apenas para as situações posteriores a elas, por conta da vedação da re-
troatividade, é possível afirmarmos que enquanto vigorar determinada in-
terpretação, deve ser ela obrigatoriamente observada pela Administração Pública.
Em outras palavras: até que haja a mudança de uma inter pretação – que
nada mais seria do que a superação de um precedente –, o precedente
administrativo deve ser observado pela Administração, visto que está a
ele vinculada.
Caso a Administração Pública não estivesse vinculada aos seus
precedentes, poderia alterá-los sem qualquer obstáculo, porquanto ine-
xistiria consequência jurídica, salvo o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF).314
Karl Larenz, ao se dedicar à análise dos precedentes judiciais, registrou
que o Supremo e o Tribunal Constitucional alemães consideram que a
vedação da retroatividade das leis não poderia ser extensivamente aplicada
314 É esta a interpretação corrente que se faz sobre este dispositivo legal; FERRAZ, Luciano.
Segurança jurídica positivada na Lei Federal n.9.784/99. In: NOHARA, Irene Patrícia; MORAES
FILHO, Marco Antonio Praxedes de (orgs). Processo administrativo: temas polêmicos da Lei
n. 9.784/99. São Paulo, Atlas, p. 123 e s., e DI PIETRO, M ar ia Sylvia. Os princípios da proteção
à confiança, da segurança jurídica e da boa-fé na anulação do ato administrativo. Fórum Administrativo.
Belo Horizonte, n. 100, v. 9, jun. 2009.
145
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
às resoluções dos Tribunais, ou seja, aos seus precedentes. O argumento utilizado
por estes dois Tribunais e subscrito pelo autor foi, justamente, o de que a irretroativi-
dade dos precedentes culminaria na vinculação aos precedentes.315
Como se pode perceber, o fato de uma interpretação não poder retroagir,
significa que o precedente então vigorante vinculava os comportamentos da
Administração Pública. A vedação da retroatividade de uma nova inter-
pretação, que pode iniciar-se a partir da solução de um caso concreto,
tem a consequência jurídica de atribuir efeito vinculante aos prece-
dentes administrativos.
Sem prejuízo da análise da conclusão apresentada, devemos refor-
çar que caso a mudança interpretativa seja favorável ao administrado, o
efeito desta mudança deverá ser retroativa. Ou seja, os efeitos benéficos
decorrentes da mudança de precedente não atingem apenas os casos
futuros (= efeitos prospectivos), mas também aqueles casos formados
anteriormente ao novo precedente.316
4.4.2.2 O artigo 50, inciso VII, da Lei de Processo Administrativo
Federal
Outro dispositivo da Lei de Processo Administrativo Federal que
pode ser invocado para fundamentar juridicamente o efeito vinculante
dos precedentes administrativos no Direito Administrativo brasileiro é o
art. 50, inciso VII. Dispõe o referido dispositivo legal:
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com in-
dicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
315 “Também o Tribunal Constitucional Federal considera que os princípios da proibição
da retroatividade das leis não poderiam estender-se, sem mais, às resoluções dos tribunais.
‘Isto conduziria a que os tribunais houvessem de estar vinculados a uma jurisprudência
outrora consolidada, mesmo quando esta se revela insustentável à luz do conhecimento
apurado ou em vista da mudança das relações sociais, políticas ou econômicas”; LARENZ,
Karl. Metodologia da ciência do direito. 6. ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
2012, p. 617-618.
316 Sobre este ponto, ver as considerações de VALIM, Rafael; op. cit., p. 97.
146
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
[...]
VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão
ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
[...]
Como se pode perceber, o dispositivo legal transcrito versa sobre
o dever do administrador público de motivar (justificar) os atos admi-
nistrativos cujo conteúdo discrepe de jurisprudência sobre determinado
assunto e de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais. Evidente-
mente que este rol é meramente exemplificativo, podendo abarcar os
precedentes administrativos. Neste caso a inobservância de um prece-
dente administrativo, por conta do uso da técnica da superação ou das
distinções, também precisa ser amplamente motivada.
Ora, se é possível concluir que a Lei de Processo Administrativo
exige a motivação de atos administrativos que também divirjam de pre-
cedentes administrativos, tal como ocorre nos precedentes judiciais,
pode-se concluir que eles possuem efeito vinculante até o momento em
que são superados. É dizer: a específica exigência de motivação de atos que
destoem dos precedentes administrativos significa que estes possuem relevância
jurídica e que a falta de motivação, ou a motivação insuficiente, do ato que inob-
serva o precedente administrativo, acarreta uma consequência jurídica, qual seja,
a invalidade do ato administrativo.317
No Direito espanhol, os defensores dos precedentes administrati-
vos, extraem do art. 54.1, “c”, da Lei de Regime Jurídico das Adminis-
trações Públicas e de Processo Administrativo Comum (n. 30/1992),
parcela da fundamentação do instituto (a outra parte estriba-se em
princípios jurídicos). Este dispositivo legal, anotemos, possui conteúdo
é similar ao art. 50, VII, da Lei de Processo Administrativo Federal.318
317 Trataremos melhor este assunto quando discorremos sobre consequências da inobservância
dos precedentes administrativos.
318 “Artículo 54. Motivación. 1. Serán motivados, con sucinta referencia de hechos y fundamentos
de derecho: [...] c) Los que se separen del criterio seguido en actuaciones precedentes o del
dictamen de órganos consultivos”.
147
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Desta forma, é válido o registro do entendimento de Ramón Parada para
fundamentar os precedentes administrativos:
Estas notas diferenciadoras são as que justificam as duvidas sobre a
semelhança das práticas e precedentes com o costume, problema
nada trivial, porquanto as práticas e precedentes tem uma impor-
tância real na vida administrativa e ao precedente se reconhece um
certo grau de obrigator iedade no art. 54.1.c) da Lei de Regime
Jurídico das Administrações Públicas e de Procedimento Adminis-
trativo Comum, ao obrigar a Administração a motivar aquelas re-
soluções ‘que se separe do critério seguido em atuações precedentes’.
Deste preceito se deduz que a Administração pode desvincular-se
de sua prática anterior ou precedente ao resolver um novo e
análogo caso desde que cumpra a carga de motivação, carga que
não simplesmente formal, se não que implica a exposição de
razões objetivas que expliquem e justifiquem a mudança de con-
duta; do contrário, a Administração estará vinculada por seu
comportamento anterior, sob pena de incorrer em discriminação
atentatória da segurança jurídica e ao princípio da igualdade dos
administrados, fundamento último do que de obrigatório e vin-
culante pode haver nos precedentes e nas práticas administrativas.319
Assim, até que se supere um determinado precedente administra-
tivo, que requererá por parte da Administração Pública uma alta carga
319 “Estas notas diferenciales son las que justifican las dudas sobre la asimilación de las prácticas y
precedentes con la costumbre, problema nada baladí, por cuanto las prácticas y precedentes tienen
una importancia real en la vida administrativa y al precedente se le reconoce un cierto grado de
obligatoriedad en el artículo 54.1.c) de la Ley de Régimen Jurídico de las Administraciones
Públicas y del Procedimiento Administrativo Común, al obligar a la Administración a motivar
aquellas resoluciones “que se separe del criterio seguido en actuaciones precedentes”. De dicho precepto
se deduce que la Administración puede desvincularse de su prática anterior o precedente a resolver
un nuevo y análogo asunto con sólo cumplir la carga de motivación, carga que no es simplemente
formal, sino que implica la exposición de razones objetivas que expliquen y justifiquen el cambio
de conducta; de lo contrario, la Administración estará vinculada por su anterior comportamento
so pena de incurrir en una discriminación atentatoria a la seguridad jurídica y al principio de
igualdad de los administrados, fundamento último de lo que obligatorio y vinculante puede haber
en los precedentes y prácticas administrativas”; Derecho Administrativo I, Parte General. Madrid,
Marcial Pons, 15. ed., 2004, p. 74.
148
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
de motivação (art. 50,VII) e cujos efeitos, via de regra, operar-se-ão
apenas para o futuro (art. 2º, parágrafo único, XIII), os precedentes até
então vigentes deverão ser observados obrigatoriamente, sob pena de
invalidade do ato administrativo.
Como se vê, pelo fato de a Lei de Processo Administrativo Federal
regular os dois pontos cardeais da superação de precedentes, quais sejam,
a motivação e os efeitos da nova solução jurídica, pode-se concluir que os
precedentes administrativos encontram guarida em nossa legislação.
4.4.3 O aparente embate entre o princípio da legalidade
e os precedentes administrativos
Em nosso juízo, o maior temor que se poderia ter acerca da ideia
de que os precedentes administrativos possuem efeito vinculante, refe-
re-se à possibilidade deste instituto amesquinhar a importância do
princípio da legalidade no Direito Administrativo, o que o tornaria,
inclusive, inconstitucional.
Sucede, porém, que os precedentes administrativos não diminuem a
relevância jurídica do princípio da legalidade. Pelo contrário. Os preceden-
tes administrativos, na medida em que não têm o condão de inovar originaria-
mente o ordenamento jurídico, prestigiam o princípio da legalidade. Isto porque
os precedentes administrativos somente podem ser utilizados se estiverem
em consonância com a Lei. Não pode haver precedente fora da legalidade.
Jaime Orlando Santofimio Gamboa, eminente administrativista
colombiano que se deteve sobre o assunto, assinala o seguinte:
Consequentemente, a invocação do precedente administrativo só
é legítima dentro da legalidade ou, dito de outro modo, sua invo-
cação só é possível se o mesmo está conforme o Direito. Sua força
vinculante está sujeita e condicionada à sua adequação à legalidade.320
320 “En consecuencia, la invocación del precedente administrativo solo es legítima dentro de
la legalidad o, dicho de otro modo, su invocación tan solo es posible si el mismo está conforme
149
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Como se nota, o princípio da legalidade, mesmo quando se está a
falar de precedentes administrativos, continua a ser a estrela guia321 do
Direito Administrativo.
Além disso, registre-se que, tal como veremos a seguir, um dos
pressupostos para a aplicação dos precedentes administrativos é justa-
mente a sua não-contrariedade com a Lei. Não há, portanto, qualquer
embate entre os precedentes administrativos e o princípio da legalidade.
4.5 PRESSUPOSTOS PARA A APLICAÇÃO DOS
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS
Para que um precedente administrativo possa ser aplicado, alguns
pressupostos devem ser obrigatoriamente preenchidos.
Ao analisarmos a doutrina nacional e estrangeira acerca dos pre-
cedentes administrativos, extraímos a existência de cinco pressupostos
para a aplicação dos precedentes administrativos, quais sejam: (i) identi-
dade subjetiva da Administração Pública, (ii) identidade objetiva funda-
mental entre as situações fáticas de cada caso, (iii) identidade das normas
jurídicas superiores incidentes, (iv) legalidade do ato administrativo do
qual se extraiu o precedente.
Vejamos cada um deles.
4.5.1 Identidade subjetiva da Administração Pública
O primeiro pressuposto para a configuração de um precedente
administrativo está ligado à Administração Pública que o exarou, ou seja,
a Derecho. Sufuerza vinculante está sujeta y condicionada por su adecuación a la legalidad”;
GAMBOA, Jaime Orlando Santofimio Gamboa; op. cit., p. 29.
321 A expressão é de COVIELLO, Pedro José Jorge. El Acto Administrativo a la luz de las
Fuentes de Derecho y como sustento fundamental de la legalid administrativa. In: MUÑOZ, Jaime
Rodríguez-Arana; PINILLA, Victor Leonel Benavides (coord.). El Acto Administrativo Como
Fuente del Derecho Administrativo en Ibero América. Panamá. 2009, p. 25. Disponível em:
150
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
o precedente a ser invocado pelo administrado deve provir da mesma
Administração Pública, seja ela direta ou indireta.322 Em outras palavras:
deve haver correspondência entre o emissor do ato administrativo do qual se extraiu
um precedente administrativo e aquele que emitirá a nova decisão à pretensão do
administrado.323 A mesma exigência, como se nota, não é feita quanto ao
administrado.
Assim, por exemplo, não produz qualquer efeito jurídico vinculante
a invocação de um precedente administrativo oriundo do Estado de São
Paulo em pretensão administrativa formulada perante o Estado de Minas
Gerais, haja vista que não se trata da mesma Administração Pública di-
reta. Em função da autonomia administrativa de cada ente federativo (art.
18, caput, CF), é possível que sobre um mesmo assunto existam prece-
dentes administrativos com conteúdos distintos.
Mas se por um lado a autonomia administrativa deva ser respeitada
e, por tanto, precedentes administrativos antagônicos possam existir entre
entes federativos distintos (= inexistência de identidade subjetiva), certo
é que no âmbito de atuação de um mesmo ente federativo (Administra-
ção Pública direta) isto não pode ocorrer, pois a identidade subjetiva está
ligada ao ente federativo e não a um órgão específico de seu organogra-
ma administrativo. Isso significa dizer que deve haver entre os diversos
órgãos da Administração Pública direta, coerência na aplicação do Direito.
Não é raro encontrarmos situações em que órgãos de uma mesma
Administração Pública possuam entendimentos antagônicos sobre os
mesmos temas de Direito. Nestes casos, jamais se poderá aceitar o argu-
mento de que o precedente administrativo invocado não possa ser uti-
lizado por não preencher o requisito da identidade subjetiva, na medida
em que provém de órgão diverso daquele para o qual se dirigiu a pre-
tensão do administrado. Como se afirmou nos parágrafos anteriores, para a
identidade subjetiva o importante é que o precedente administrativo provenha da
mesma Administração Pública e não do mesmo órgão, sob pena de se reduzir
323 DÍEZ-PICAZO, Luiz Maria. La doctrina del precedente administrativo. Revista de Adminis-
tración Pública, Madrid, v. 98, 1982, p. 7-46.
151
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
significativamente a eficácia jurídica dos precedentes administrativos, que estaria
pulverizada por todos os órgãos da Administração Pública direta.324
Díez-Picazo, ao versar sobre o pressuposto da identidade subjeti-
va do precedente administrativo, registrou que os órgãos da Administra-
ção Pública devem atuar de maneira coordenada, de modo que os pre-
cedentes administrativos de um órgão vinculam outro órgão da mesma
Administração. Eis as palavras do autor:
Convém recordar neste ponto que a Administração do Estado tem
personalidade jurídica única. Por isso, todos os seus órgãos devem
atuar coordenadamente e não poderá se invocar a falta de identi-
dade subjetiva, quando um órgão alega que o precedente provém
de outro órgão, que também pertence à Administração do Estado.325
No mesmo sentido, assim anotou Heleno Taveira Torres.326
Para a aplicação da autovinculação, basta que os emissores dos atos
sejam órgãos da mesma Administração Pública para que impliquem
o dever de afastamento da contrariedade decisória entre eles
sobre uma mesma ou semelhante situação fática. Portanto, o dever
de coerência impõe-se à pessoa de direito público interno, não
ao órgão. Ainda que órgãos dotados de competências distintas a
integrem, a Administração Pública é sempre una e indivisível
quanto aos atos que emite, o que vale igualmente para afastar
contradições entre atos de órgãos administrativos, em cumpri-
mento às autolimitações administrativas.
324 Esta situação é muito comum, por exemplo, no Município de São Paulo, que é dividido
em subprefeituras, sendo certo que determinado administrado pode encontrar soluções
diversas para a mesma situação fática.
325 “Conviene recordar en este punto que la Administración del Estado tiene personalidad
jurídica única. Por ello, todos sus órganos deben actuar coordinadamente y no podrá aducirse
que falta identidad subjetiva, cuando a un órgano se le alega como precedente una actuación
de outro órgano que también pertenece a la Administración del Estado”; DÍEZ-PICAZO,
Luiz Maria. La doctrina del precedente administrativo; op.cit., p. 19.
326 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. 2.ed., São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 239.
152
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Outro ponto que merece ser tratado na análise deste pressuposto,
refere-se à extensão dos efeitos vinculantes dos precedentes administra-
tivos. A extensão dos efeitos, tal como ocorre com os precedentes judi-
ciais, é horizontal e vertical.
A eficácia vinculante horizontal significa que o precedente adminis-
trativo deve ser observado pelo órgão cuja decisão desencadeou o pre-
cedente. É o mesmo que ocor re com os precedentes judiciais, quando,
por exemplo, o Supremo Tribunal Federal declara a inconstitucionalida-
de de uma lei ou de ato normativo. Neste caso, o próprio Supremo
Tribunal Federal está vinculado à sua decisão.
A eficácia vinculante vertical está relacionada com a estrutura hierár-
quica da Administração Pública e opera-se da mesma maneira do que
ocorre com os precedentes judiciais (art. 927,inciso I a V, Código de
Processo Civil de 2015). Os precedentes administrativos originários de
órgãos superiores vinculam os órgãos hierarquicamente inferiores, de
modo que estes últimos deverão deixar de aplicar os precedentes até
então incidentes no caso concreto (proferidos por eles ou pelo órgão
hierarquicamente superior), sob pena de nulidade.
4.5.2 Identidade objetiva essencial
O segundo pressuposto dos precedentes administrativos refere-se
à sua identidade objetiva essencial, que nada mais é do que a análise da si-
militude substancial entre o suporte fático do precedente e o suporte
fático do caso em análise.
Como vimos até o momento, a teoria dos precedentes (adminis-
trativos ou judiciais) prega que casos similares devem ser solucionados
da mesma maneira. Isto significa dizer que havendo identidade entre o
caso que deu origem ao precedente e o caso presente, deve-se aplicar a
este último a mesma ratio decidendi, sob pena de nulidade.
Naturalmente que as semelhanças a que nos referimos não podem
ser consideradas de maneira absoluta, pois sabemos que não existem no
mundo fenomênico dois eventos rigorosamente idênticos. É por isso,
portanto, que não se exige a identidade absoluta entre os casos, mas
apenas o que denominamos de similitude substancial do suporte fático, ou
153
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
seja, o caso presente precisa ser semelhante àquele que deu origem ao
precedente apenas em seus aspectos mais relevantes (substanciais).
Díez-Picazo, ao versar sobre o requisito da identidade objetiva,
assinalou o seguinte:
O que me parece que realmente é estritamente exigível é que
exista similitude entre as circunstâncias que deram lugar a ambas
situações. Se as circunstâncias ou pressupostos de fato são similares,
e no segundo caso a Administração atua de modo diferente, é que
não está cumprindo os fins que o ordenamento objetiva alcançar
com os poderes utilizados.327
Conclui-se, desta for ma, que havendo similitude substancial do
suporte fático entre o caso em análise e o caso que deu origem ao pre-
cedente, deve-se aplicar a mesma ratio decidendi. Ao revés, quando não
houver congruência entre o caso em análise e o caso que deu origem
ao precedente, não se deve aplicar o precedente, mas sim outro prece-
dente eventualmente existente ou na hipótese de inexistir precedente
sobre o tema, criar-se-á um novo precedente administrativo.
Esta última afirmação remete-nos à técnica das distinções, sobre o
qual discorremos ao tratarmos da common law e que também é plena-
mente aplicável aos precedentes administrativos.
Como vimos, aplica-se a técnica das distinções, justamente quando
o suporte fático do precedente invocado não possui similitude substancial
com o caso em análise, mas sim uma diferença substancial, importante, a
exigir, como dissemos, a aplicação de um outro precedente (caso exista e
se adeque ao caso concreto) ou na elaboração de um novo precedente.
Obviamente que a possibilidade de se utilizar a técnica das dis-
tinções não significa que o administrador possua um cheque em branco
327 “Lo que me parece que sí es estrictamente exigible es que exista similitudes entre las
circunstancias que dieron lugar a ambas actuaciones. Si las circunstancias o presupuestos de
hecho son similares, y en el segundo caso la Administración actua de un modo diferente, es
que no está cumpliendo los fines que el ordenamiento senala a la potestad utilizada”; DÍEZ-
PICAZO, Luiz Maria; op. cit., p. 21.
154
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
para se afastar dos precedentes. Deveras, da mesma for ma que ocorre com
a superação de um precedente administrativo, conforme veremos mais à
frente, o emprego da técnica das distinções exige do aplicador uma alta
carga argumentativa (motivação).328 Isto porque deve o administrador de-
monstrar que as peculiaridades do caso em exame são relevantes, a ponto
de justificar a não aplicação de determinado precedente administrativo.
4.5.3. Identidade das normas jurídicas super iores incidentes
Assim como registramos ao tratarmos da superação de preceden-
tes judiciais na common law, o Poder Legislativo pode sim extirpar do
mundo jurídico precedentes administrativos (e judiciais também). Basta
apenas que o(s) dispositivo(s) legais ou constitucionais que serviram de
supedâneo para a formação de determinado precedente, sejam modifi-
cados ou revogados.
Isto significa dizer que na hipótese do legislador infraconstitucional ou o
legislador constituinte derivado alterar o estabelecido em determinada lei ou na
Constituição Federal, os precedentes fundados no texto anterior, não poderão mais
ser invocados, na medida em que se tornarão incompatíveis com as novas normas
jurídicas superiores que lhe conferem validade.
Desta forma, para que um precedente administrativo possa ser
aplicado, é fundamental que as nor mas jurídicas superiores a ele continuem
sendo as mesmas.329 Não pode ter ocorrido qualquer mudança signifi-
cativa no sistema normativo aplicável à hipótese.
4.5.4 Legalidade do ato administrativo originário
Ao tratarmos dos princípios que fundamentam os precedentes
administrativos, vimos que não há colisão entre estes e o princípio da
328 O art. 489, § 1º, VI, do Código de Processo Civil de 2015 é peremptório ao estabelecer
que o emprego da técnica das distinções exige de ampla fundamentação, tal como ocor re
com a superação de um precedente, sob pena de nulidade da decisão judicial.
329 SASTRE, Silvia Díez. El precedente administrativo. Madrid, Marcial Pons, 2008, p. 248.
155
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
legalidade. Desta conclusão extrai-se que no Direito brasileiro os
precedentes administrativos, cuja função principal é unifor mizar a
aplicação do Direito (=aplicação isonômica das normas jurídicas), não
são fonte originária de direitos, tal como ocorre nos países do sistema
da common law.
Não obstante a convivência harmônica entre os precedentes ad-
ministrativos e o princípio da legalidade, certo é que não se pode invocar um
precedente administrativo construído a margem das normas jurídicas vigentes. A
razão para esta vedação ao uso dos precedentes administrativos estriba-se
no fato de que não se deve tolerar a aplicação isonômica de uma ilega-
lidade ou inconstitucionalidade.
Acerca deste ponto, assim grafou Díez-Picazo:
Uma ilegalidade não justifica uma cadeia de ilegalidades, nem o
ordenamento pode amparar que se perpetuem situações antijurí-
dicas. O fundamento do caráter vinculante dos precedentes é a
igualdade ante a lei e a segurança jurídica, em nenhum caso, a igual-
dade e a segurança antijurídicas.330
Paulo Modesto,331 em seu artigo dedicado à autovinculação da
Administração Pública, menciona um interessante julgado em que se
firma o entendimento de que os precedentes administrativos não podem
ser proliferadores de ilegalidades:
Administrativo – Constitucional – Ação Civil Pública – Interrup-
ção de Construção – Área de Preservação Ambiental – Existência
330 “Una ilegalidad no justifica una cadena de ilegalidades, niel ordenamento puede amparar
que se perpetúen situaciones antijurídicas. El fundamento del carácter vinculante del
precedente es la igualdad ante la ley y la seguridad jurídica; en ningún caso, la igualdad y la
seguridad antijurídicas”; DIEZ-PICAZO, Luís; op. cit., p. 25.
331 MODESTO, Paulo. Autovinculação da Administração Pública. Revista Eletrônica de Direito
do Estado – REDE –, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 24, p. 4, out./nov.
2010. Disponível em: .direitodoestado.com/revista/REDE-24-OUTUBRO-
2010-PAULO-MODESTO.pdf>. Acesso em: 12 de abril de 2013.
156
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
de Ter mo de Compromisso com o Ibama – Questionamento
da Atuação Administrativa da Autarquia – Potencial de Degra-
dação Ambiental – Dilação Probatória Incompatível com o
Recurso de Agravo de Instrumento (...). O simples fato de
próximo ao local da construção já existirem empreendimentos
potencialmente poluidores, que eventualmente tenham deixa-
do de observar a legislação ambiental, não exime outros inte-
ressados de se submeterem ao procedimento adequado, vez
que, por óbvio, não se admitem precedentes administrativos
legitimadores da extensão de ilegalidades. (TRF da 2ª Região
| AGV 200402010126870 | Desembargador Federal Sergio
Schwaitzer | Julgado em 30-5-2007).
Podemos perceber, portanto, que por maior relevância jurídica que
a teoria do precedente administrativo possa ter, esta nunca poderá ultra-
passar os limites da legalidade. Assim, para que se forme um precedente
administrativo, é preciso que o ato administrativo originário, aquele do
qual se extraiu por indução o precedente, seja válido.332
Uma vez que a Administração Pública ou até mesmo o Poder
Judiciário constate a ilegalidade ou a inconstitucionalidade de um pre-
cedente administrativo, este deverá ser retirado do mundo jurídico. Os
efeitos desta invalidação deverão ser retroativos, mas é plenamente pos-
sível a utilização da técnica da modulação dos efeitos.
Advirta-se, todavia, que poderão existir casos em que mesmo si-
tuações ilegais ou inconstitucionais podem, excepcionalmente, ser pro-
tegidas, conquanto favoráveis ao administrado. É o que a doutrina de-
nomina de estabilização de atos ampliativos inválidos.333
332 “Desde otra perpectiva, cesa la obligación de la Administración de respectar el precedente
que alega el administrado cuando se advierte su antijuridicidade. Una atuación irregular
jamás puede convertise em la fuente autoritativa de um acto posterior porque ambos
contrarían el ordenamento”; SESIN, Domingo Juan. Administración Pública. Actividad Reglada,
Discrecional y Técnica. Buenos Aires, Lexis Nexis, 2004, p. 360.
333 VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo,
Malheiros Editores, 2010, p. 121 e s. Neste mesmo sentido; MARTÍNEZ, Augusto Durán.
El Precedente Administrativo. In: MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana; GARCÍA, Miguel Ángel
Sendín (coord.), Fuentes del Derecho Administrativo. Buenos Aires, Ediciones Rap, 2010, p. 698.
157
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
4.5.5 A reiteração como pressuposto para a aplicação
precedente administrativo
Alguns estudiosos334 do tema e alguns julgados de países que re-
conhecem a importância da teoria dos precedentes administrativo335
afirmam que os precedentes administrativos para serem válidos e terem
força vinculante, precisam ter se consolidado ao longo do tempo. Em
outras palavras: um precedente administrativo para ser aplicado, demandaria,
supostamente, o preenchimento do pressuposto da reiteração.
Como bem anota Silvia Díez Sastre,336 a reiteração é requisito para
a consolidação do costume, que não pode ser confundido com os prece-
dentes, em razão de sua origem peculiar.337 O costume, como vimos ante-
riormente, provém da sociedade e por esta razão precisa da reiteração e do
transcurso de certo lapso temporal para se sedimentar e, por conseguinte,
ser observado pelas pessoas. Já os precedentes administrativos, assim como
os judiciais, tem origem em decisões do Estado, sendo que a sua autorida-
de não depende de reiteração ou do transcurso de qualquer lapso temporal.
O que é realmente importante para a validade dos precedentes
administrativos, tal como ocorre com os precedentes judiciais, é a ratio
decidendi e não a reiteração.
Temos que lembrar, também, que uma das finalidades dos prece-
dentes administrativos, quiçá a mais importante, é a manutenção da
coerência na Administração Pública e o tratamento igualitário de pessoas que
se encontrem na mesma situação.
Ora, para que se aplique adequadamente o princípio da igualdade
não é necessário aguardar a reiteração de um determinado precedente
administrativo. É justamente o oposto: permitir que até a suposta consolidação
334 CASSAGNE, Juan Carlos. Curso de Derecho Administrativo, 10. ed., Buenos Aires, La Ley,
2011. t. I, p. 170. IVANEGA, Mirian. Los precedentes administrativos en el derecho argentino. In:
MUNOS, Rodríguez-Arana. (coord.). Fuentes del derecho, Buenos Aires, Rap, 2010, p. 80.
335 SASTRE, Silvia Díez. El precedente administrativo. Madrid, Marcial Pons, 2008, p. 91-92.
336 Ibidem, p. 92.
337 CAETANO, Marcelo. Tratado elementar de direito administrativo. Coimbra, Editora Coimbra,
1944, p. 44.
158
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
do precedente a Administração Pública possa tratar de maneira diversa situações
que guardam similitudes entre si é violar grosseiramente o princípio da igualdade.
A reiteração, em suma, é contrária ao princípio da igualdade.
Sobre este ponto, são lúcidas as palavras de José Ortiz Díaz:
O precedente não se baseia na maior ou menor reiteração idên-
tica ou análoga das resoluções da Administração. Supõe, como
dito, uma aplicação concreta do princípio da igualdade ante a
Administração, donde se deduz que bastar ia apenas um preceden-
te, para que se possa invocar a autoridade do mesmo, já que a
aplicação da igualdade não depende de um critério quantitativo,
mas sim qualitativo.338
Em verdade, para os precedentes administrativos (e judiciais) a
reiteração serve apenas para robustecer a sua força persuasiva339 (= efi-
cácia social), e jamais poderá ser considerada como requisito para sua
eficácia vinculante, sob pena de se amesquinhar o direito fundamental
dos cidadãos à aplicação isonômica da norma jurídica.
4.6 PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS E DISCRICIO-
NARIEDADE E VINCULAÇÃO ADMINISTRATIVA
Discricionariedade administrativa, é uma característica da compe-
tência administrativa340 estabelecida por regra jurídica superior ao ato
338 “El precedente no se basa en la mayor o menor reiteracíon idéntica o análoga de las
resoluciones de la Administracíon. Supone, como queda dicho, una aplicacíon concreta del
princípio de igualdad ante la Administración, de donde se deduce que bastaria un solo precedente,
para que pueda invocarse la autoridad del mismo, ya que la aplicación de la igualdad no depende
de un critério cuantitativo, sin, por el contrário, cualitativo”; ORTIZ DÍAS, José. El Precedente
Administrativo. Revista de Administración Pública, n. 24, p. 102-103. Augusto Durán Martínez
também entende ser desnecessária a reiteração; El Precedente Administrativo. In Fuentes del
Derecho Administrativo. Buenos Aires, Ediciones RAP, 2010, p. 697.
339 “En qualquier caso, la reiteración sera un dato fáctico a tener en cuenta, con fuerza
persuasiva, pero no condicio sine qua non para que el precedente pueda desplegar sus efectos,
ta y como sucede con la costumbre”; SASTRE, Silvia Díez. El precedente administrativo:
Fundamentos y eficacia vinculante. Madrid, Marcial Pons, 2008, p. 93.
340 A vinculação e a discricionariedade são competências administrativas estatuídas por normas
159
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
administrativo editado, que confere certa margem de apreciação subje-
tiva ao administrador para que este escolha, dentre duas ou mais soluções
válidas perante o Direito, a que melhor se adequar à finalidade legal e ao
caso concreto. As circunstâncias em que a discricionariedade adminis-
trativa poderá se revelar serão descr itas a seguir.
A discricionariedade, como se nota, está contida na regra jurídica
superior, mas isto não é suficiente para que o administrador público
possua liberdade diante do caso concreto. A discricionariedade contida
na regra jurídica superior é condição necessária, mas não suficiente para o
exercício da competência discricionária, como bem anota Celso Antônio
Bandeira de Mello.341
Em primeiro lugar porque a discricionariedade constitui a etapa
seguinte à interpretação da norma jurídica a ser aplicada,342 ou seja, “o
domínio do poder discricionário começa onde termina o da interpre-
tação”343 – especialmente a sistemática. Esgotadas as vias interpretativas,
é necessário para que haja discricionariedade, que a análise do caso
concreto permita certa margem de liberdade de apreciação subjetiva.344
Na hipótese do caso concreto não der margens a dúvidas quanto a ade-
quação ou inadequação de determinado comportamento da Adminis-
tração Pública, não se estará diante do exercício de competência discri-
cionária e o controle jurisdicional será possível.
jurídicas superiores ao ato administrativo editado. Por esta razão, não é tecnicamente correto,
muito embora seja a maneira usual de referir-se a esta importante classificação dos atos
administrativos, utilizar-se os signos atos vinculados e atos discricionários. É que a vinculação e
a discricionariedade situam-se, como dito, no plano da nor ma jurídica superior, não no plano
do próprio ato administrativo. Não é o ato administrativo vinculado ou discricionár io, mas
sim a competência conferida pela norma jurídica superior ao administrador. Neste sentido:
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 7.ed., Rio
de Janeiro, Forense, 2006, p. 91-93.
341 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 991.
342 COSTA, Reg ina Helena. Conceitos Jurídicos indeter minados e discricionariedade administrativa.
São Paulo: Justitia, 1989, p. 47.
343 STASSINOPOULOS, Michael. Traite des act et administratifs. Paris, Librairie Generale de
Droit et de Jurisprudence, 1973, p. 151.
344 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed.,
São Paulo, Malheiros Editores, 2003, p. 37.
160
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Esta liberdade de apreciação conferida ao agente público pode ser
observada quando a norma superior se vale de: a) conceitos jurídicos
indeterminados; b) quando não descreve a situação fática que dá ensejo
à atuação do administrador; c) quando confere ao agente público a pos-
sibilidade de agir ou não agir; d) quando dá ao agente público a possi-
bilidade de eleger uma solução dentre pelo menos duas diferentes
providências objetivamente estabelecidas; e) quando permite ao agente
público escolher do momento de praticar o ato; f) quando autoriza o
agente público a escolher a forma pela qual este irá praticar o ato; g)
quando confere ao administrador a escolha da solução mais adequada à
finalidade legal.345
Em lado oposto à discricionariedade administrativa e em número
bem menor, encontra-se a vinculação administrativa. Esta, ao contrário
daquela, não confere qualquer margem de apreciação subjetiva ao admi-
nistrador, que se vê amarrado por comandos dotados de objetividade ab-
soluta. O comportamento da Administração Pública, portanto, está
completa e objetivamente traçada pela norma jurídica superior.346
É importante registrarmos, na esteira do Professor Celso Antônio
Bandeira de Mello,347 que discricionariedade e vinculação podem coe-
xistir em um mesmo dispositivo legal. É perfeitamente possível, por
exemplo, que a hipótese de incidência de determinado dispositivo dê
certa margem de apreciação ao administrador, mas o seu comando não.
Se pudéssemos escolher entre uma norma que atribuísse compe-
tência discricionária ao administrador e outra que lhe outorgasse com-
petência vinculante, certamente escolheríamos a segunda opção, já que
confere maior proteção ao administrado contra os abusos da Adminis-
tração Pública no momento da aplicação da norma.
345 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed.,
São Paulo, Malheiros Editores, 2003, p. 19-21.
346 Mesmo que dotados de objetividade absoluta, os atos derivados do exercício da competência
vinculada devem ser interpretados. E pelo fato de poder existir divergências interpretativas,
é que podemos afirmar que os precedentes administrativos também podem ser utilizados
quando estamos diante dos chamados de uma vinculação administrativa.
347 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p.1013,
161
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Ora, perguntaríamos, se muitos dos abusos e arbitrariedades su-
portados pela sociedade ao longo dos tempos estão intimamente rela-
cionados à liberdade conferida aos administradores (=discricionariedade
administrativa), por que as sociedades modernas não eliminam de vez
qualquer margem de apreciação subjetiva do administrador? Por que não
esgotar definitivamente esta fonte de grandes abusos?
Por mais que concordemos que a discricionariedade administra-
tiva é uma fonte inesgotável de ilegalidades, abusos, perseguições e
privilégios, fato é que nem mesmo o mais arguto dos legisladores
conseguiria extirpá-la de vez dos quadrantes do Estado de Direito.348
O legislador, em suma, jamais conseguira encontrar soluções abstratas
para todas as situações, pois é imprescindível, em inúmeros casos, a
análise do caso concreto.349
Desta forma, não é possível, tampouco desejável, mecanizar-se
integralmente a Administração Pública através de normas jurídicas que
vinculem toda a sua atuação.
Mas haveria alguma maneira de se controlar a discricionarie-
dade administrativa, quando ela verdadeiramente se apresentasse?
Apesar de não termos dúvidas de que o mérito350 da decisão adminis-
trativa é inatacável, acreditamos que é possível controlar-se a discri-
cionariedade administrativa, de modo a proteger o administrado dos
348 Sobre este ponto, confer ir as valiosas lições de DI PIETRO, Ma r i a Sylvia Zanella.
Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 67-71;
FIORINI, Bartolome A. La Discrecionalidad en la Administracion Pública. Buenos Aires, Editorial
Alfa, 1948, p. 35-41; GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón.
Curso de derecho administrativo. 13. ed., Navarra, Thomson Civitas, 2006, v. I e II, p. 437-439
e TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público. Rio de Janeiro, Renovar, 1997, v. I, p. 92-93.
349 O Direito sempre quer a solução ótima, mas nem sempre é possível fixa-la no plano
abstrato da norma. Daí a existência da discricionariedade.
350 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, mérito ser ia “o campo de liberdade suposto
na lei e que afetivamente venha remanescer no caso concreto, para que o administrador,
segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções
admissíveis perante a situação vertente, tendo em vista o exato atendimento da finalidade
legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual delas seria a única ade-
quada”; BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 993.
162
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
humores e da falta de coerência do administrador, através dos prece-
dentes administrativos.351
Ora, se a lei conferiu competência discricionária ao administrador,
e se esta discricionariedade se manteve após a interpretação da norma
jurídica a ser aplicada, e o caso concreto realmente permita a escolha
entre duas ou mais soluções igualmente válidas, a partir do momento em
que o administrador escolhe a melhor solução para o caso, esta mesma
solução deverá ser utilizada para casos posteriores, substancialmente semelhan-
tes e submetidos às mesmas normas jurídicas.352
Percebemos, portanto, que a utilização dos precedentes administra-
tivos não ataca o “mérito” do ato administrativo decorrente do exercício
de competência discricionária, mas apenas fixa a sua ratio decidendi, que
deverá ser observada em situações futuras, dada a sua força vinculante.
351 Sobre os precedentes e a discricionariedade administrativa, assim anotaram Jose Luis Villar
Palasi e Jose Luis Villar Ezcurra: “[...] Es justamente en aquellos ámbitos jurídicos en los que
existe una autonomía de voluntad donde existe también una posibilidad de autonormación.
En aquellas parcelas del Derecho administrativo en que existe discrecionalidad, autonomía
a favor de la Administración, debe existir también la posibilidad de que la Administración se
autovincule mediante el precedente”; Principios de derecho administrativo. Madrid: Universidad
de Madrid, 1982, t. I, p. 328-329. Neste mesmo sentido: “Luego, el precedente administrativo
tiende a acogerse como elemento en el que pueda fundarse el sistema jurídico, entendido
como instrumento material y sustancial del Estado de Derecho, de manera que opere, a su
vez, como una suerte de control de la discrecionalidad administrativa, reforzando las garantías
de los asociados y permitiendo el desdoblamiento de la tutela efectiva de los derechos en el
marco del ejercicio de las actividades administrativas”; GAMBOA, Jaime Orlando Santofino;
op. cit., p. 72. Neste mesmo sentido: “Y no cabe duda que la obligatoriedad de que la
Administración, mediante el ‘precedente’, trate igualmente a las situaciones iguales puede
constituir un eficaz remédio preventivo para evitar el con razón tan temido abuso arbitrário
de la discreción”; DÍAZ, José Ortiz. El Precedente Administrativo. Madrid, Revista de
Administración Pública, n. 24, 1957, p. 105. “La técnica del precedente es útil para controlar
em determinados supuestos el ejercicio de la discricionalidad y evitar la arbitrariedade”;
SESIN, Domingo Juan. Administración Pública. Actividad Reglada, Discrecional y Técnica. Buenos
Aires, LexisNexis, 2004, p. 358.
352 Curioso anotar que Stassinopoulos já dizia que a discricionariedade “possui um limite
que é a igualdade. Há igualdade quando se toma as mesmas medidas em condições similares
ou análogas; não há, por outro lado, igualdade, se, diante das mesmas condições, se nega a um
o que se concedeu a outro”; Traite des act et administratifs. Paris, Librair ie Generale de Droit
et de Jurisprudence, 1973, p. 212.
163
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Se por um lado o campo de atuação dos precedentes administra-
tivos está intimamente ligado com o exercício da discricionariedade
administrativa, por outro não se pode refutar a sua importância quando
estamos diante da vinculação administrativa.
Deveras, é possível utilizarmos os precedentes administrativos no
exercício da competência vinculada. Isto porque, não vigora na herme-
nêutica contemporânea o brocardo in claris cessat interpretatio, que pro-
pugna a desnecessidade de se interpretar regras jurídicas claras.353 Ora, se
toda e qualquer regra jurídica é passível de ser interpretada antes de sua
aplicação, é lícito concluir que mesmo as regras jurídicas que possuam
comandos dotados de objetividade absoluta, podem dar ensejo a soluções
dispares, pois interpretações diversas podem ser adotadas. Daí conclui-se,
portanto, que os precedentes administrativos também possuem utilidade
no campo da vinculação administrativa.354
4.7 PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS, PROCESSO
ADMINISTRATIVO E ATOS AMPLIATIVOS E
RESTRITIVOS DE DIREITOS
Apesar da Constituição Federal de 1988 fazer referência expressa
ao processo administrativo (v.g. , art., LV), até pouco tempo atrás pou-
ca relevância se dava ao tema. Foi apenas a partir da promulgação da Lei
n. 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Admi-
nistração Pública Federal, que de fato se intensificaram os estudos do
processo administrativo, muito embora a doutrina estrangeira já ressal-
tasse a importância do processo administrativo.
Adolfo Merkl,355 em 1927 destacava a relevância do processo ad-
ministrativo ao afirmar que além do processo não ser um monopólio da
353 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed., Rio de Janeiro, Forense,
2003, p. 27 e s.
354 DÍEZ-PICAZO, Luis; op. cit., p. 28-29.
355 MERKEL, Adolfo. Teoría General del Derecho Administrativo. Granada, Editorial Comares,
2004, p. 272.
164
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
função jurisdicional, “no fundo, toda administração é procedimento
administrativo, e os atos administrativos se apresentam como meros pro-
dutos do procedimento administrativo”.356
Deveras, como bem assinala Adolfo Merkl,357 Celso Antônio
Bandeira de Mello358 e Carlos Ari Sundfeld,359 entre o estabelecido na
lei e o ato administrativo que acaba por materializá-la (v.g. regulamentos,
atos administrativos em sentido estrito, contratos administrativos) existe
um caminho a ser perseguido.360 Isto porque, salvo raras exceções, o ato
administrativo “não surge como um passe de mágica”,361 pois, reforce-se,
entre a lei – ou qualquer outra norma jurídica – e o ato deve existir um
processo.
Carlos Ari Sundfeld ressalta com muita propriedade a importância
do processo administrativo para a formação das decisões administrativas:
Uma lei geral de processo administrativo não regula apenas os
chamados processos administrativos em sentido estrito, mas
toda a atividade decisória da Administração, sem exceções,
356 Muito já se discutiu acerca da diferença entre processo e procedimento. A nosso ver,
processo é, nas palavras de Sílvio Luís Ferreira da Rocha, “uma relação jurídica formada por
uma sucessão de atos voltados a um resultado final e conclusivo”; Manual de Direito
Administrativo. São Paulo, Malheiros Editores, 2013, p. 276. Enquanto procedimento é “a
vestimenta do processo, a forma pela qual ele é exter iorizado. Procedimento é rito, que será
mais ou menos formal, com maior ou menor lapso temporal para a sua conclusão, [...] que
variará com a espécie de processo em causa e com a respectiva disciplina legal”; PETIAN,
Angélica. Regime Jurídico dos Processos Administrativos Ampliativos e Restritivos de Direito. São
Paulo, Malheiros Editores, 2011, p. 85. No âmbito da função administrativa, a licitação é um
processo administrativo, do tipo concorrencial, que possui diversos procedimentos chamados
modalidades licitatórias (v. g. , concorrência, tomada de preço, convite, pregão).
357 Ibidem.
358 BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 500.
359 SUNDFELD, Carlos Ari. A importância do procedimento administrativo. Revista de Direito
Público – RDP. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 84, p. 65.
360 Anota Adolfo Merkel: “[...] o processo, é o caminho [...] através do qual uma manifestação
jurídica de um plano superior, produz uma manifestação jurídica de um plano inferior”;
MERKEL, Adolfo; op. cit., p. 274.
361 BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 500.
165
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
independentemente do modo como ela se expressa. Na visão
brasileira mais comum, processo administrativo é um conjunto
de trâmites exigidos em certas situações especiais, especialmen-
te na demissão de servidor (processo disciplinar), no lançamen-
to ou autuação tributária, bem como em sua impugnação
(processo fiscal ou tributário). Quando pensamos na ação ad-
ministrativa como um todo, normalmente não vinculamos a ela
a ideia de processo. É justamente a essa visão que uma lei geral
de processo (ou procedimento) administrativo se opõe radical-
mente. O pressuposto lógico de uma lei assim é o de que, na
Administração Pública, decidir é fazer processos – isto é, toda a
atividade decisória é condicionada por princípios e regras de
índole processual.362
Uma das consequências imediatas desta invulgar, mas fundamen-
tada, valoração do processo administrativo, está também relacionada com
a uniformização da atuação administrativa. É evidente que ao se estabe-
lecer processos e procedimentos para a tomada de decisões, para se
chegar a um ato final e conclusivo, minimiza-se, mas não se elimina por
completo, as chances de decisões dispares sobre uma mesma situação
fática. O processo administrativo, portanto, é o primeiro passo na busca
da coerência das atuações da Administração Pública.
Pelo que foi exposto, percebe-se que o processo administrativo é
um instrumento de legitimação da atuação administrativa (= legitimação
do poder),363 garantidor dos direitos dos administrados364 (art. 5º, LIV,
Constituição Federal, e art. 1º da Lei n. 9.784/97) e que tem por obje-
tivo a produção de um ato final e conclusivo365 – que poderá ser amplia-
tivo ou restritivo da esfera jurídica dos administrados.
362 SUNDFELD, Carlos Ari. As leis de processo administrativo. Lei federal n.9.784/99 e Lei
paulista n. 10.177/98. São Paulo, Malheiros Editores, 2000, p.19.
363 Vide os comentários de MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo.
2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 70.
364 SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O Processo Administrativo e a Invalidação de Atos Viciados.
São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 55-59.
365 PETIAN, Angélica; op. cit., p. 94-95.
166
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
É justamente o produto do processo administrativo, a decisão, ou seja, o ato
final e conclusivo, ampliativo ou restritivo da esfera jurídica dos administrados, que
mais nos interessa quando estudamos os precedentes administrativos.
Os precedentes administrativos buscam a uniformização das deci-
sões administrativas após o percurso legitimatório chamado processo ad-
ministrativo. Seu alvo, portanto, não é o processo em si, mas o seu produto,
do qual se extrai, por indução, uma norma jurídica dotada de eficácia
vinculante – por óbvio – a ser observada em todos os casos posteriores
e substancialmente similares.
Os precedentes administrativos podem ser extraídos de qualquer
ato administrativo individual e concerto, provenha ele dos chamados
processos administrativos ampliativos de direitos,366 em qualquer uma de
suas subdivisões (concorrenciais; não concorrenciais)367 ou dos chamados
processos administrativos restritivos de direito,368 também em qualquer
uma de suas subdivisões (meramente ablativos; sancionadores).369
Como o propósito de ilustramos a possibilidade de um preceden-
te administrativo ser extraído de um ato administrativo ampliativo da
esfera jurídica do administrado, e obtido ao cabo de um processo admi-
nistrativo de igual natureza, tomemos o caso da concessão do benefício
do auxílio-transporte aos servidores públicos federal.
366 É digna de nota a definição de Angélica Petian: “Os processos ampliativos de direito são
aqueles que alargam a esfera jurídica do destinatário, causando-lhe um efeito favorável, seja
porque autorizam o exercício de um novo direito, seja porque ampliam direito já existentes,
ou ainda, restringem ou extinguem limitações a direitos dos destinatários”; ibidem, p. 104.
367 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 512.
368 Para Angélica Petian, processos restritivos de direito “são aqueles que diminuem a esfera
jurídica do destinatário, causando-lhe gravame, seja porque impõem um novo dever ou
restrição, seja porque estendem dever já existente, ou, ainda, suprimem direito existente.
Em qualquer hipótese haverá um efeito negativo para o administrado”; PETIAN, Angélica;
op. cit., p. 107.
369 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 512. Sobre os
precedentes e as sanções administrativas, vide as considerações de Raf ael Munhoz de Mello
(Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo, Malheiros Editores,
2007, p. 203.
167
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Estabelece o art. 1º, caput, da Medida Provisória n. 2.165/01, que
o auxílio-transporte somente poderá ser concedido ao servidor público
que no trajeto residência-trabalho-residência, utilize transpor te coletivo.370
Imagine-se que um servidor público, que não possua transporte
público perto de sua residência ou que este seja insuficiente para realizar
o trajeto mencionado, e, portanto, tenha que utilizar seu carro particular
para o seu deslocamento diário, requeira a concessão do auxílio-trans-
porte para o custeio de seus gastos com combustível, por considerar que
o auxílio-transporte possui natureza indenizatória e que, portanto, não
existe razão para a desiquiparação promovida pela Medida Provisór ia n.
2.165/01. Além da natureza indenizatória, acrescenta o servidor público
que os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e vedação de en-
riquecimento ilícito da Administração Pública, possibilitar iam a amplia-
ção da hipótese de incidência do dispositivo legal.371
Imagine-se, ainda, que a Administração Pública Federal ao apre-
ciar o pedido formulado por seu servidor se convença de seus argu-
mentos – que, aliás, encontram guarida na jurisprudência do Superior
370 “Art. 1o Fica instituído o Auxílio-Transporte em pecúnia, pago pela União, de natureza
jurídica indenizatória, destinado ao custeio parcial das despesas realizadas com transporte
coletivo municipal, inter municipal ou interestadual pelos militares, servidores e empregados
públicos da Administração Federal direta, autárquica e fundacional da União, nos deslocamentos
de suas residências para os locais de trabalho e vice-versa, excetuadas aquelas realizadas nos
deslocamentos em intervalos para repouso ou alimentação, durante a jor nada de trabalho, e
aquelas efetuadas com transportes seletivos ou especiais”. (BRASIL. Medida Provisória
n. 2.165-36, de 23 de agosto de 2001. Institui o auxílio-transporte, dispõe sobre o pagamento
dos militares e dos servidores do Poder Executivo Federal, inclusive de suas autarquias,
fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, e dá outras providências.
Brasília, Diário Oficial da União, 24 ago. 2001).
371 Sobre este função extensora dos princípios, assim grafou Rafael Valim: “Imperioso notar,
ainda, que diante do caso concreto, mais de um sentido do texto pode estar em consonância
com o princípio que lhe serve de suporte, como também pode ocorrer, em situações
excepcionais, ora de nenhum sentido ser admissível, obrigando ao afastamento da subsunção
do caso concreto à norma, ora de os significados possíveis comportados pelo texto normativo
serem insuficientes ao atendimento do princípio, obrigando à extensão do alcance da hipótese
normativa ou até mesmo ao aproveitamento do mandamento da regra em desconsideração
à sua hipótese normativa”; VALIM, Raf ael. O Princípio da Segurança Jurídica no Direito
Administrativo Brasileiro. São Paulo, Malheiros Editores, 2010, p. 39.
168
GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
Tribunal de Justiça (REsp n. 980.692, REsp n. 576.442) – e defira o
pagamento do auxílio-transporte, dentro dos limites fixados pelo diplo-
ma legal em comento.
Esta decisão da Administração Pública, consubstanciada em um
ato administrativo ampliativo de direitos, que reconheceu o direito do
servidor à percepção do auxílio transporte para o custeio de suas despe-
sas com seu carro no trajeto residência – trabalho – residência, deu
origem a um precedente administrativo sobre a matéria, a ser obrigato-
riamente observado em casos substancialmente similares. Caso a Admi-
nistração Pública não expeça um ato normativo geral e abstrato (v.g .
regulamento) para reconhecer o direito de todos os servidores que es-
tejam em situação semelhante, estes poderão invocar o precedente ad-
ministrativo mencionado.
Outro exemplo que poderia ser mencionado é o do porte de arma
de fogo para defesa pessoal. Este tipo de porte de arma possui a natureza
jurídica de autorização, ou seja, é discricionário, e dentre as diversas
exigências prevista no art.10 da Lei n. 10.826/2003 (Estatuto do De-
sarmamento), está a necessidade de se demonstrar a ameaça à integrida-
de física do administrado. É dizer a Administração Pública avaliará se o
administrado, diante das informações prestadas, tem a sua integridade
física ameaçada.
Imagine-se que um administrado dirigiu-se à Polícia Federal e fez
a solicitação do porte de arma para defesa pessoal. Após confirmar o
preenchimento dos demais requisitos legais e atestar que o administrado
vive em região na qual os índices de segurança atingiram patamares
alarmantes, resolve autorizar o porte de arma.
Imagine-se agora um outro administrado, que também preencheu
todos os requisitos exigidos pela Lei e que vivia na mesma região do
primeiro administrado. Neste caso, poderia a Administração Pública
negar o porte de arma a este administrado? Obviamente que não, pois
firmou-se o entendimento (= precedente administrativo) de que todos
os cidadãos que morassem naquela região e preenchessem os demais requi-
sitos legais, teriam direito ao porte de arma.
169
PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
Mas não é apenas diante de processos e atos ampliativos de direi-
tos que os precedentes administrativos podem se formar. Como dissemos
anteriormente, os precedentes administrativos também podem ser ex-
traídos de atos administrativos restritivos da esfera jurídica do adminis-
trado, e obtido ao cabo de um processo administrativo de igual natureza.
Vejamos um exemplo.
O caso que ilustrará a possibilidade de se extrair precedentes ad-
ministrativos a partir de atos restritivos é bastante conhecido.
O Código de Defesa do Consumidor, ao tratar das sanções admi-
nistrativas às infrações das normas de defesa do consumidor, estabelece
em seu art. 57 que a multa a ser aplicada – sempre ao cabo de um pro-
cesso administrativo restritivo de direitos –, varia de duzentas a três
milhões de vezes o valor da Unidade Fiscal de Referência (Ufir), tendo-
se como parâmetro a gravidade da infração, a vantagem auferida e a
condição econômica do infrator.
Não obstante a induvidosa invalidade do referido dispositivo legal,
por afrontar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade e con-
ferir grande poder ao agente público, o que desvirtua a máxima do rule
of law, not of men,372 certo é que ao fixar a multa aplicada a determinado
fornecedor e diante de determinada situação, deste ato restritivo extrai-
se um precedente administrativo a ser aplicado a todos os casos poste-
riores similares.
Os precedentes administrativos, nesta situação, são uma forma para
minimizar os efeitos nocivos de uma multa fixada cuja extensão possi-
bilita o cometimento de arbitrariedades.
Em suma, o que realmente importa é que o ato administrativo
individual e concreto expedido, seja ele ampliativo ou restritivo da esfe-
ra jurídica do administrativo, tenha fixado o entendimento da Adminis-
tração Pública sobre determinada norma jurídica e diante de determi-
nada situação fática. Assim, ao eleger, a partir da inter pretação das normas
372 BANDEIRA DE MELLO, Celso. Curso de Direito Administrativo; op. cit., p. 878.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
jurídicas incidentes, a solução a determinado caso, esta mesma solução
deve ser obrigatoriamente observada em situações substancialmente si-
milares e posteriores, dada a sua eficácia vinculante. Apenas o uso da
técnica da superação poderá impedir a utilização de determinado pre-
cedente em situações substancialmente similares.

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