Princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador

AutorCléber Nilson Amorim Junior
Ocupação do AutorAuditor-Fiscal do Trabalho do Núcleo de Segurança e Saúde do Trabalhador
Páginas34-91
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CAPÍTULO 2
PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DA SAÚDE
DO TRABALHADOR
“Eis aqui o que eu vi, uma boa e bela coisa: comer e beber, e
gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, em que trabalhou
debaixo do sol, todos os dias de vida que Deus lhe deu, porque
esta é a sua porção.” Eclesiastes, 5:18.
Este capítulo apresenta a evolução do direito à saúde do trabalhador e con-
textualiza, no sistema constitucional brasileiro, a proteção ao meio ambiente do
trabalho. Depois, demonstra que a saúde do trabalhador é um direito indisponível,
e, como tal, impõe limites à vontade das partes no contrato de trabalho, notada-
mente, limitando a negociação coletiva e o exercício do direito de propriedade do
empregador.
2.1. Evolução do direito à saúde do trabalhador
A noção de que saúde constitui um direito humano e fundamental, passível
de proteção e tutela pelo Estado, de modo geral, e, pelo empregador, no caso do
meio ambiente do trabalho no Brasil, é resultado de uma longa evolução na acep-
ção não apenas do direito, mas da própria ideia do que seja saúde considerada
em si mesma.
Apesar de o objetivo do presente trabalho não ser a análise cronológica des-
ses conceitos, convém se realizar um breve histórico do assunto, a fim de permitir
uma compreensão mais abrangente do que hoje se define como direito à saúde e,
sobretudo, do conteúdo desse direito.
Nesses termos, a literatura especializada indica que a primeira acepção de
saúde apareceu estritamente ligada a uma explicação mágica da realidade, em
que os povos primitivos viam o doente como vítima de demônios e espíritos malig-
nos, mobilizados talvez por um inimigo.(30)
Essa concepção foi questionada na antiguidade grega, sobretudo por es-
tudos de Hipócrates, cujas observações empíricas não se limitaram ao paciente,
estendendo-se ao ambiente onde vivia. A partir disso ele passou a discutir os
(30) SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L & PM, 1987.
p. 10.
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fatores ambientais ligados à doença, defendendo existir uma multicausalidade
na gênese das doenças.(31)
Posteriormente, os rituais deram lugar ao uso de ervas e métodos naturais.
Platão ainda defendeu a noção de equilíbrio interno entre alma e corpo, depois
ampliada para afirmar o equilíbrio do homem com a organização social e com a
natureza, compreendendo-se aí a concepção da saúde.(32)
A passagem para a Idade Média, todavia, consolidou um sério retrocesso
na área sanitária. A doença voltou a ser vista como castigo divino, resumindo-
-se os cuidados sanitários à preocupação de afastar o doente do convívio social
para evitar o contágio e a visão da própria doença.(33) O único contraponto se deu
pelo fortalecimento da caridade, com o surgimento dos primeiros hospitais, mais
apropriadamente hospícios, ou asilos, nos quais os pacientes recebiam, se não o
tratamento adequado, pelo menos conforto espiritual.(34)
O Renascimento recrudescendo o conhecimento clássico greco-romano é, na
área da saúde, um período polarizado entre as duas tradições anteriores, opondo-
-se o misticismo medieval e as práticas exotéricas reminiscentes ao progresso das
ciências, às descobertas sobre o corpo humano, ao pensamento e aos métodos
científicos.(35)
No século XVI as ideias de Hipócrates são recuperadas pelos estudos de Pa-
racelso, médico e alquimista suíço-alemão, que mostrou a importância do mundo
exterior, leis da física, da natureza e dos fenômenos biológicos na compreensão do
organismo humano, demonstrando a interferência do ambiente de trabalho dos
mineiros no desenvolvimento de certas doenças.(36)
Bernardino Ramazzini, em 1700, na Itália, efetuou a primeira sistematiza-
ção de doenças do trabalho, em sua obra De Morbis Artificum Diatriba, marco
histórico no estudo dessas enfermidades. Essa obra relacionava os riscos à saúde
ocasionados por produtos químicos, poeira, metais e outros agentes encontrados
por trabalhadores em 52 ocupações. Esse foi um dos trabalhos pioneiros e a base
da medicina ocupacional, que desempenhou um papel fundamental em seu desen-
volvimento.(37)
(31) SCLIAR, 1987, p. 17.
(32) DALLARI, Suelli Gandolfi; VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Reflexões sobre a saúde pública na
era do livre comércio. In: SCHWARZT, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo
Fundo: UPF, 2003. p. 29.
(33) DALLARI, Suelli Gandolfi. Uma nova disciplina: o direito sanitário. Revista de Saúde Pública, São
Paulo, v. 22, n. 4, p. 327-334, ago. 1988. Disponível em: <http://www.scielosp.org >. Acesso em:
10 maio 2011.
(34) SCLIAR, 1987, p. 23-24.
(35) Ibid., p. 29.
(36) DALLARI, Suelli Gandolfi. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 1,
p. 57-63, fev. 1988. Disponível em: <http://www.scielosp.org>. Acesso em: 20 jun. 2012.
(37) BERNARDINO Ramazzini. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.
org/wiki/Bernardino_Ramazzini>. Acesso em 20 jun. 2012.
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De fato, desse critério de classificação empírica utilizado por Ramazzini é pos-
sível pinçar as bases para uma sistematização da patologia do trabalho, na qual,
no primeiro grupo, estariam as doenças profissionais ou tecnopatias, e, no segun-
do, as doenças adquiridas pelas condições especiais em que o trabalho é realizado,
ou as mesopatias. Essa classificação é utilizada até hoje para fins médico-legais e
previdenciários em muitos países, inclusive no Brasil.
Outra contribuição da obra de Ramazzini é a sua visão das inter-relações
entre patologia do trabalho e o meio ambiente, quando estuda a doença dos quí-
micos. Neste estudo ele descreve a utilização potencial de registros de óbito para o
estudo dos impactos da poluição ambiental sobre a saúde das comunidades. Essa
estratégia metodológica é utilizada até hoje.(38)
No século XIX, Engels, ao estudar as condições de vida dos trabalhadores
ingleses à época da Revolução Industrial, também concluíra que a cidade, o tipo
de vida dos habitantes e os diferentes ambientes de trabalho são responsáveis pelo
nível de saúde das populações.(39)
A Revolução Industrial acarretou um grande movimento de urbanização, com
a migração populacional do campo para as cidades e a formação de cinturões ao
redor das fábricas que, pela proximidade espacial e absoluta falta de higiene, per-
mitiam a rápida proliferação de doenças entre os operários, patrões e familiares.
Tais fatos foram decisivos à reivindicação por melhores condições sanitárias, dada
a necessidade de resguardo à saúde dos operários, seja pela manutenção dos ní-
veis de produção das fábricas, seja pela proteção da saúde dos próprios patrões;
assim como pelo atendimento às reclamações dos operários, já organizados em
movimentos de luta social, que exigiam o estabelecimento de melhores condições
sanitárias para si e respectivos familiares.
Como o Estado nada mais era do que instrumento do empresariado, mos-
trou-se relativamente simples a transferência dessas reivindicações, assumindo o
Estado a função de garante da saúde pública.(40)
No século XX, a proteção sanitária seria finalmente tratada como saber social
e política de governo. Desde a Segunda Guerra Mundial essa noção foi ampliada,
estabelecendo-se a responsabilidade do Estado pela saúde da população, bem
como reforçando-se a lógica econômica, a partir da evidente interdependência
entre as condições de saúde do trabalhador e a atividade produtiva. Instituíram-
-se os sistemas de previdência social e, posteriormente, de seguridade social, a
(38) MENDES, René. A atualidade de Ramazzini: 300 anos depois. Disponível em: <http://www.
saudeetrabalho.com.br/textos-miscelania-6.htm>. Acesso em 20 jun. 2012.
(39) DALLARI, Suelli Gandolfi. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 1,
p. 57-63, fev. 1988. Disponível em: <http://www.scielosp.org>. Acesso em 20 jun. 2012..
(40) DALLARI, S.; PILAU SOBRINHO, Liton Lanes. O direito à saúde em um contexto autopoiético. In:
SCHWARZT, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: UPF, 2003. p. 97-99.

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