Princípios do direito do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas224-261
CAPÍTULO VI
PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO
I. INTRODUÇÃO
A palavra princípio traduz, na linguagem corrente, a ideia de “começo,
início”, e, nesta linha, “o primeiro momento da existência de algo ou de uma
ação ou processo(1).
Mas traz, também, consigo o sentido de “causa primeira, raiz, razão” e,
nesta medida, a ideia de aquilo “que serve de base a alguma coisa(2).
Por extensão, signi ca, ainda, “proposição elementar e fundamental
que serve de base a uma ordem de conhecimentos” e, nesta dimensão,
proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio(3).
A palavra, desse modo, carrega consigo a força do signi cado de
proposição fundamental. E é nessa acepção que ela foi incorporada por
distintas formas de produção cultural dos seres humanos, inclusive o Direito.
Assim, princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições
fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a
partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão,
reprodução ou recriação dessa realidade.
Nessa acepção, princípios políticos, morais ou religiosos, por exemplo,
importariam em proposições fundamentais, ideais, resultantes de determina-
do contexto político, cultural ou religioso, que se reportam à realidade como
diretrizes de correspondentes condutas políticas, morais ou religiosas. Em
tal sentido, os princípios seriam elementos componentes da visão de mundo
essencial que caracteriza as pessoas e grupos sociais, resultando de suas
práticas cotidianas e sobre elas in uindo. Na dinâmica das pessoas e socieda-
des, os princípios atuariam como enunciados que re etem e informam — em
maior ou menor grau — as práticas individuais e sociais correspondentes.
Nas ciências, a palavra princípio é apreendida com sentido similar. Aqui,
os princípios correspondem à noção de proposições ideais, fundamentais,
construídas a partir de uma certa realidade e que direcionam a compreensão
da realidade examinada. Ou “proposições que se colocam na base de uma
(1) HOUAISS, Antônio, et alii. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 2299.
(2) HOUAISS, Antônio, et alii, loc. cit.
(3) HOUAISS, Antônio, et alii, loc. cit.
225C弼膝菱疋 尾微 D眉膝微眉肘疋 尾疋 T膝樋簸樋柊琵疋
ciência, informando-a” (Cretella Júnior). Os princípios atuariam no processo
de exame sistemático acerca de uma certa realidade — processo que é típico
às ciências —, iluminando e direcionando tal processo.
1. Ciência e Princípios
Enquanto proposições diretoras da análise e compreensão de certa
realidade, os princípios têm sido gravemente questionados no âmbito das
ciências. A validade cientí ca da ideia de princípios, como instrumento de
análise da realidade, tem sido contestada acerbadamente. A esse respeito o
lósofo Nicola Abbagnano discorre que “na loso a moderna e contemporânea,
a noção de princípio tende a perder sua importância. Ela inclui, com efeito, a
noção de um ponto de partida privilegiado: e não relativamente privilegiado, isto
é, com relação a certos escopos, mas absolutamente em si. Um ponto de partida
deste gênero di cilmente poderia ser admitido no domínio das ciências”(4).
De fato, as Ciências Físicas, Biológicas e Sociais têm seu objeto, fun-
damentalmente, rmado em torno de fenômenos concretos, empíricos. Em
síntese, debruçam-se sobre fatos e atos ocorridos ou que potencialmente
venham a ocorrer. De nindo-se como “o estudo sistemático e objetivo dos fe-
nômenos empíricos e o acervo de conhecimentos daí resultante”(5), tais ciências
examinam o concreto empírico, sobre ele re etindo, de modo a construir leis (ou
leis tendenciais) e hipóteses explicativas a respeito desse concreto empírico.
Os princípios, realmente, não conseguem se harmonizar a essa dinâ-
mica de atuação e construção das ciências. Ao contrário, a assunção de
posições preestabelecidas acerca do objeto a ser investigado (assunção ine-
rente à ideia de princípios) limitaria o próprio potencial investigativo sobre a
realidade, conformando o resultado a ser alcançado ao nal do processo de
investigação. Desse modo, a submissão a princípios (isto é, conceitos prees-
tabelecidos), pelo cientista, no processo de exame da realidade, importaria
em iniludível conduta acientí ca: é que a resposta buscada, na realidade,
pelo investigador, já estaria gravemente condicionada na orientação investi-
gativa, em função do princípio utilizado.
2. Direito e Princípios
Contudo, o anátema lançado pelas ciências contra os princípios não
pode prevalecer no âmbito dos estudos jurídicos. De fato, na Ciência
Jurídica — enquanto estudo sistemático a respeito dos fenômenos jurídicos,
com o conjunto de conhecimentos resultantes —, os princípios sempre hão
de cumprir papel de suma relevância, sem comprometimento do estatuto
(4) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filoso a. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 760.
(5) KOLB, William. Ciência, in Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas — Instituto de Documentação, 1986, p. 182.
226 M樋弼膝眉備眉疋 G疋尾眉匹琵疋 D微柊毘樋尾疋
cientí co desse ramo especializado de conhecimento. Essa peculiaridade
decorre da posição singular que a Ciência do Direito ocupa perante os demais
ramos cientí cos existentes.
É que a Ciência Jurídica tem objeto estruturalmente distinto daquele
que caracteriza as ciências em geral. Estas, como visto, debruçam-se sobre
o exame dos fatos e atos ocorridos ou potencialmente veri cáveis — aquilo
que poderia genericamente ser designado como ser. Em contrapartida, a
Ciência do Direito debruça-se sobre a análise dos institutos jurídicos e da
norma (e dos próprios princípios jurídicos), que se constituem em modelos
de conduta ou de organização — e que correspondem a fenômenos que
genericamente poderiam ser designados como dever-ser(6).
A Ciência Jurídica, portanto, tem objeto singular, consistente em realida-
des essencialmente conceituais, realidades ideais e normativas, que se des-
dobram em proposições ou modelos de comportamento ou de organização.
Seu dado central e basilar consiste no dever-ser (elemento nitidamente ideal,
em suma) e não no ser (elemento nitidamente concreto-empírico). Nesse
sentido, a direção emergente da noção de princípio — isto é, proposição
diretora à compreensão de uma certa realidade — surge como um condutor
importante à compreensão do sentido da norma e do instituto jurídico, do
sentido do dever-ser jurídico. Noutras palavras, a premissa orientativa con-
substanciada no princípio favorece à correta percepção do sentido do institu-
to e da norma no conjunto do sistema normativo em que se integra. Por essa
razão, os princípios, na Ciência Jurídica, não somente preservam irrefutável
validade, como se destacam pela qualidade de importantes contributos à
compreensão global e integrada de qualquer universo normativo.
A importância dos princípios na Ciência do Direito, entretanto, não tem
obviamente o condão de transformá-los em axiomas absolutos e imutáveis.
Ao contrário, sua validade se preserva apenas caso considerados em
seus limites conceituais e históricos especí cos, enquanto sínteses de
orientações essenciais assimiladas por ordens jurídicas em determinados
períodos históricos. Os princípios jurídicos despontam, assim, como sínteses
conceituais de nítida inserção histórica, submetendo-se a uma inevitável
dinâmica de superação e eclipsamento, como qualquer outro fenômeno
cultural produzido.
Em conclusão, para a Ciência do Direito os princípios conceituam-se
como proposições fundamentais que informam a compreensão do fenômeno
jurídico. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que,
após inferidas, a ele se reportam, informando-o.
(6) A respeito, KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 4-10
e 96-101. A visão de Kelsen é, contudo, estritamente regralista quanto à substância do fenô-
meno jurídico.

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