Reflexões sobre o limbo trabalhista previdenciário

AutorSaulo Cerqueira de Aguiar Soares - Ivna Maria Mello Soares
Páginas56-63

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Considerações iniciais

A Medicina do Trabalho é uma das especialidades médicas mais circundadas em conflitos de interesses, em razão de envolver-se com demandas de empregadores, trabalhadores e do Estado, muitas vezes, situando-se em uma região que tem suas condutas questionadas por todos esses personagens, estando em posição de risco; por exemplo, nos conflitos oriundos das divergências de entendimentos entre o Médico do Trabalho e o Médico do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Diante disso, inúmeras controvérsias surgem quando a conclusão sobre a possibilidade de retorno ao trabalho de um empregado é divergente entre o Médico do Trabalho e o Médico do INSS, frequentemente causando sérios prejuízos ao trabalhador, que em posição fragilizada, pela sua condição, busca o Poder Judiciário para solucionar a contenda, por envolver suscitações no âmbito médico, trabalhista e previdenciário.

Logo, é pertinente uma análise médica, ética e jurídica sobre os principais pontos de controvérsias entre o Médico do Trabalho e o Médico do INSS, com o intuito do ajustamento ético e legal de condutas, permitindo ao trabalhador evitar buscar a judicialização do caso e garantir seus direitos de modo conciliatório, tendo o intuito final de preservar a saúde do paciente-trabalhador e prevenir acidentes de trabalho, fomentando uma comunidade de trabalho saudável.

Reflexões médicas e éticas do limbo trabalhista previdenciário

Primeiramente, cabe elucidar a definição do que se entende por limbo trabalhista previdenciário, que consiste não tecnicamente em um limbo jurídico, na perspectiva de que o evento não impede o alcance e a aplicação do Direito, haja vista que há maneiras jurídicas para a solução da questão, mas sim a definição se dá em decorrência da existência de um limbo na visão subjetiva do trabalhador, que se percebe em uma situação de desproteção social, sem receber seu salário da empresa e sem receber o benefício previdenciário.

No âmbito médico e ético, é primordial ter ciência de que o Conselho Federal de Medicina (CFM) expediu a Resolução n. 1.484/1998, que dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador, estabelecendo no inciso I do art. 3º que:

Aos médicos que trabalham em empresas, independentemente de sua especialidade, é atribuição: I – atuar visando essencialmente à promoção da saúde e à prevenção da doença, conhecendo, para tanto, os processos produtivos e o ambiente de trabalho da empresa. (BRASIL, CFM, Resolução n. 1.484/1998, art. 3º, I.)

Nesse entendimento, a própria resolução considerou que todo médico, independentemente do vínculo empregatício – estatal ou privado, responde pela recuperação

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individual do trabalhador, ou seja, não estabelece hierarquização entre médicos do trabalho e médicos do INSS.

Oportunamente, o Código de Ética Médica (CEM) estabelece no inciso IV, como princípio fundamental, que:

O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. (BRASIL, CEM, IV)

Tal dispositivo encontra-se no rol dos princípios fundamentais do CEM. À vista disso, é uma proposição básica que serve como esteio interpretativo de toda a norma deontológica médica. Ao que tange ao inciso citado, determina que o médico deve agir sempre protegendo a integridade psicofísica do ser humano, vinculado ao princípio da Bioética da não maleficência, não podendo o profissional ser conivente na provocação de dano material, moral ou estético em seus pacientes, buscando a afirmação da integridade e dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, o princípio fundamental, insculpido no inciso VIII do CEM determina que:

O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. (BRASIL, CEM, VIII)

Vejamos que o CEM pretende garantir a autonomia profissional de cada médico na tomada de decisões, não ficando restrito a imposições de outros médicos que prejudiquem a proteção da integridade psicofísica do paciente. Isto posto, o médico do trabalho não pode, eticamente, ter sua liberdade profissional cerceada pelo médico do INSS, estando com autonomia para tomar condutas embasadas em critérios médicos.

Ademais, o inciso XII do CEM estabelece que:

O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais. (BRASIL, CEM, XII)

Ao que se extrai, o médico do trabalho e o médico do INSS devem pautar suas condutas objetivando a redução de acidentes de trabalho, adequando o trabalho ao ser humano, inclusive sob os aspectos ergonômicos, consistindo dever médico utilizar sua autonomia profissional para proteger a saúde do paciente-trabalhador.

À guisa de elucidação, estabelece a Norma Regulamentadora n. 7 (NR-7), aprovada pela Portaria n. 3.214/1978 do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), que o Atestado de Saúde Ocupacional – ASO deverá conter a “definição de apto ou inapto para a função específica que o trabalhador vai exercer, exerce ou exerceu” (item 7.4.4.3, b). Assim, o médico “examinador”/médico do trabalho após a análise dos dados obtida por meio da avaliação clínica, abrangendo anamnese ocupacional e exame físico e mental, mais os exames complementares, quando oportuno, deve concluir sobre a aptidão do trabalhador para a função, registrando em prontuário.

Ao que se examina da análise do CEM, não se coaduna com as normas éticas a teoria de hierarquização entre médicos e, muito menos, o cerceamento de auto-nomia profissional por parte de algum ator envolvido nessa celeuma trabalhista-previdenciário. Portanto, do prisma da análise médica, a priori, não comete infração ética o médico “examinador”/médico do trabalho que não acata decisão do médico do INSS, desde que com isso não infrinja qualquer dispositivo do CEM, pois ambos têm ampla liberdade para exercer a Medicina e tomarem condutas baseadas na sua consciência, sempre documentando em prontuário e argumentando sobejamente suas decisões.

No que se refere à realização dos exames ocupacionais, entre eles, o de retorno ao trabalho, cabe destacar a participação de um profissional médico nomeado de médico “examinador” do trabalho. O médico “examinador” do trabalho corresponde ao profissional que pode ser delegado pelo médico coordenador para a realização dos exames ocupacionais previstos na NR-7, Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional – PCMSO.

O item 7.3.2 da NR-7 determina que deve ser:

profissional médico familiarizado com os princípios da patologia ocupacional e suas causas, bem como com o ambiente, as condições de trabalho e os riscos a que está ou será exposto cada trabalhador da empresa a ser examinado. (BRASIL, MTPS, NR-7)

No entanto, não existe nenhuma fiscalização quanto a saber se o médico “examinador” é realmente familiarizado com os princípios da patologia ocupacional, como determina a legislação, o que inspira a apuração, em uma avaliação crítica da própria situação de trabalho dos médicos “examinadores”, se possuem capacidade de atuar na área de modo técnico, tendo em vista que, na generalidade, são recém-formados ou profissionais de longa carreira sem nenhuma vivência em saúde ocupacional. E, em verdade, a ampla maioria dos exames ocupacionais realizados nas clínicas de

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medicina do trabalho terceirizadas são executados por médicos “examinadores”, daí a importância da análise desse profissional.

Destaca Soares (2015, p. 25) acerca do surgimento da nomenclatura médico “examinador” e da escolha do autor pelo uso das aspas que:

[...] a própria criação do termo examinador foi propositadamente (des)construída pelo meio empresarial com o intento de mitigar o status e bom conceito desse profissional médico, com o propósito de relegar os exames...

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