Uma releitura da curatela à luz do sistema de apoios à pessoa com deficiência

AutorThiago Rosa Soares
Ocupação do AutorMestrando em Direito Civil pela UERJ. Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
Páginas117-142
UMA RELEITURA DA CURATELA
À LUZ DO SISTEMA DE APOIOS
À PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Thiago Rosa Soares
Mestrando em Direito Civil pela UERJ. Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
Sumário: 1. Introdução – 2. Capacidade em igualdade de condições – 3. Superando o modelo
paternalista de curatela – 4. Curatela sob medida: modulação às peculiaridades do curatelado – 5.
As lacunas legislativas e os desaos do intérprete – 6. Notas conclusivas – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A curatela – instituto destinado a propiciar o exercício de direitos àqueles consi-
derados incapazes – tornou-se objeto de atenção especial da doutrina e de controvér-
sia jurisprudencial após a reforma operada pelo Estatuto da Pessoa com Def‌iciência
(doravante, Estatuto ou EPD), que provocou uma verdadeira revolução no regime de
incapacidades, que repercute sobre o próprio fundamento de existência do instituto.
Ultrapassado o momento inicial de perplexidade com as inovações trazidas pelo
Estatuto, verif‌ica-se labor doutrinário no sentido de acomodar as inovações ao sistema
do direito civil sem descurar dos objetivos da nova legislação. As repercussões do
EPD, notadamente no Código Civil (CC), repercutiram sobre todo o ordenamento
jurídico, especialmente em razão da eliminação das referências à def‌iciência como
razão determinante da capacidade de exercício (CC, arts. 3º e 4º), assim como das
hipóteses de incidência da curatela (CC, art. 1.767).
As modif‌icações legislativas na Parte Geral do Código tiveram impacto sobre
diversos institutos. Os prazos de prescrição e decadência, por exemplo, não f‌luem
contra absolutamente incapazes (CC, art. 198, I, e 207), o que benef‌iciava as pessoas
com def‌iciência assim consideradas; a partir da entrada em vigor do Estatuto, sendo
a pessoa com def‌iciência plenamente capaz – ou, quando muito, relativamente in-
capaz –, os prazos, em princípio, f‌luiriam normalmente, em prejuízo de quem tenha
dif‌iculdades de zelar pelos próprios interesses.1 A responsabilidade de pessoas com
determinados tipos de def‌iciência era subsidiária – desde que interditada e sujeita à
curatela – respondendo seu patrimônio apenas quando não tivesse meios de fazê-lo
1. Sobre o tema, cf. SILVA, Rodrigo da Guia; SOUZA, Eduardo Nunes da. Discernimento da pessoa humana e
sua relevância para o regime jurídico da prescrição e da decadência. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MEN-
DONÇA, Bruna Lima da; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da
Pessoa com Def‌iciência. Rio de Janeiro: Processo, 2017.
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o curador (CC, arts, 928 e 932); a mitigação dessa responsabilidade depende agora
de novo entendimento, que não esteja fundado na incapacidade.2
A declaração da capacidade plena da pessoa com def‌iciência (EPD, arts. 6º e
84) atraiu críticas severas de civilistas, que apontavam falta de compreensão do
Parlamento acerca do regime de incapacidades, denunciavam a positivação de um
“monstrengo legal”3 ou indicavam ser sistematicamente impraticável deixar de
trabalhar com a ideia de discernimento (e sua falta e redução).4 As novidades, no
entanto, não resultaram de mero capricho do legislador. O Estatuto foi promulgado
com a f‌inalidade de concretizar, no Brasil, os preceitos da Convenção sobre os Direitos
da Pessoa com Def‌iciência (doravante, Convenção ou CDPD), o primeiro tratado
de direitos humanos incorporado na forma do art. 5º, § 3º, da Constituição – com
hierarquia normativa de emenda constitucional, portanto.
O presente artigo se dedica ao instituto da curatela após a entrada em vigor do
EPD. Busca-se apontar os desaf‌ios de sua interpretação e indicar as soluções que
vêm sendo apontadas pela doutrina e sua conformidade com o modelo da CDPD.
Valendo-se da metodologia civil-constitucional, a curatela é analisada não apenas
considerando os específ‌icos dispositivos que a ela se referem, mas o ordenamento
jurídico como um todo sistemático, complexo e unitário – não se limitando sua
interpretação ao procedimento subsuntivo.5 A unidade normativa do ordenamento
não é obtida a partir do Código Civil – outrora o diploma central do direito de matriz
romano-germânica –, mas da Constituição, que contém os princípios fundamentais
do sistema jurídico, que orientam o intérprete na atribuição de sentido da lei.6 A
Convenção é, devido à sua hierarquia constitucional, diploma de importância ímpar
para a leitura de todos os institutos relativos ao exercício da capacidade.
2. CAPACIDADE EM IGUALDADE DE CONDIÇÕES
Os princípios fundamentais para a compreensão da Convenção constam de seu
art. 3º: a não discriminação, a autonomia individual (inclusive para fazer as próprias
escolhas), a plena e efetiva participação na sociedade, o respeito pela diferença e pela
aceitação das pessoas com def‌iciência como parte da diversidade e da humanidade.
Sua f‌inalidade é promover a plena inclusão e participação da pessoa com def‌iciência
2. Cf. SALLES, Raquel Bellini de Oliveira; ZAGHETTO, Nina Bara de. Novos contornos da responsabilidade
civil da pessoa com def‌iciência após a Lei Brasileira de Inclusão. In: SALLES, Raquel Bellini; PASSOS, Aline
Araújo; LAGE, Juliana Gomes (Org.). Direito, vulnerabilidade e pessoa com def‌iciência. Rio de Janeiro: Pro-
cesso, 2019.
3. FIUZA, Cesar. Direito civil: curso completo. 18. ed. São Paulo: Ed. RT, 2015. p. 168.
4. LARA, Mariana Alves. Em defesa da restauração do discernimento como critério para a incapacidade de
fato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCIVIL, v. 19, p. 39-61, Belo Horizonte, jan./mar., 2019.
5. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 175.
6. MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e direito civil: tendências. In: MORAES, Maria Celina Bodin
de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 48
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