A vida pregressa como condição de elegibilidade - Regência do princípio da moralidade sobre os detentores de cargo políticoAntonio André David Medeiros - Fernando Martins Zaupa
Autor | Daniel Castro Gomes da Costa |
Páginas | 275-292 |
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"Não há democracia representativa sem os políticos. Os políticos são, pois necessários. Refiro-me, entretanto, aos bons políticos, aos políticos que fazem profissão de fé na democracia, aos políticos que são condutores de homens, que têm visão estadista, que existem para servir o povo. Estes são, na verdade, absolutamente imprescindíveis à realização da democracia possível, democracia representativa." Min. Carlos Mário Velloso (A Reforma Eleitoral e os Rumos da Democracia no Brasil, in Direito Eleitoral, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 30)
A questão da vida pregressa, como condição de elegibilidade, sempre foi tomada de acaloradas discussões e diversidade de argumentação pró e contra.
Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral, no julgamento do processo administrativo nº 19.919, decidiu que o candidato a cargo eletivo só pode ter o registro indeferido quando houver condenação com trânsito em julgado.
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A votação foi apertada (quatro votos a três, sendo que os Ministros Eros Grau, Caputo Bastos, Marcelo Ribeiro e Ari Pargendler votaram pela necessidade de trânsito em julgado, enquanto os Ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Felix Fischer votaram pela possibilidade de análise das condições sem que, necessariamente, haja trânsito em julgado de sentença condenatória) e, aliada ao teor dos votos, demonstra o quanto a matéria ainda será objeto de debates e questionamentos.
Para se ter uma idéia acerca da repercussão que uma decisão favorável à impugnação dos registros traria ao panorama eleitoral, tem-se que, hoje, "praticamente um terço dos deputados federais apresenta ocorrência na Justiça ou em Tribunais de Contas. Dos 513 parlamentares, 163 estão nessa situação, o que corresponde a 32% dos membros dessa Casa. Dos 81 senadores, 30 (37%) têm ocorrências na Justiça e/ou Tribunais de Contas".1Está a haver, assim, mácula inaceitável no sistema representativo brasileiro, onde a busca pelo cargo político passa a visar a objetivo outro (imunidade ) que não aquele esculpido no art. 1º, § único, da Constituição Federal, e, no vernáculo popular, seu exercício passando a ser sinônimo de impunidade.
A presente análise irá, pois, demonstrar que, não obstante a atual composição do TSE - Tribunal Superior Eleitoral entender necessário o trânsito em julgado de sentença condenatória tem-se que em uma interpretação conforme a Constituição, visando ao máximo a efetividade da norma que estampa o dever de moralidade pelos detentores de cargo público, jungido às técnicas de dissolução de aparente conflito de princípios, a vida pregressa espúria e conspurcada do candidato é sim fator para impugnação do registro, conforme se passa a demonstrar.
Para se entender a razão da exigência de uma vida pregressa idônea ao pretenso detentor de cargo eletivo, faz-se necessário apontar a natureza jurídica do cargo, a qual já traz ínsito o dever de probidade.
Traz-se ao texto a conceituação de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
"Agentes políticos são os titulares de cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. (...) O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. (...) A Relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional, estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis."2
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EMERSON GARCIA, por ocasião da análise do texto da Lei de Improbidade Administrativa, precisamente ao observar o significado do termo "agente público", explicita também "cargo político", situando o primeiro como gênero e o segundo como espécie:
"Agente público: Trata-se de conceito amplo que abrange os membros de todos os Poderes qualquer que seja a atividade desempenhada, bem como os particulares que atuem em entidades que recebam verbas públicas, podendo ser subdividido nas seguintes categorias: agentes políticos, agentes particulares colaboradores, servidores públicos e agentes meramente particulares.
Agentes políticos são aqueles que, no âmbito do respectivo Poder, desempenham as funções políticas de direção previstas na Constituição, normalmente de forma transitória, sendo a investidura realizada por meio de eleição (no Executivo, Presidente, Governadores, Prefeitos e, no Legislativo, Senadores, Deputados e Vereadores) ou nomeação (Ministros e Secretários)."3A figura do agente político, por tal desiderato, está ligada diretamente à estrutura de poder e funcionamento do Estado, apresentando, nesta via, relevo de extrema importância para o fiel cumprimento das finalidades delineadas pela Constituição Federal.
- A incidência do princípio da moralidade e inaplicabilidade da presunção de inocência
Para se adentrar ao estudo do regramento normativo do dever de observância da moralidade no âmbito da República Federativa do Brasil, tem-se necessário um estudo sobre a natureza do Estado brasileiro, bem como da Constituição, a fim de se aclarar as nuances interpretativas e princípios explícitos e implícitos que a regem.
O art. 1º da Constituição de 1988 define, in verbis:
"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
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Da definição em tela depreendem-se vários significados e bases de interpretação e hermenêutica, que serão expostas a seguir.
O Brasil, nos termos acima descritos, é uma "República".
Conforme salienta CELSO BASTOS, o conceito de república perdeu muito de seu conteúdo, mormente por não mais se contrapor à ideia de monarquia, já que, diferentemente do que ocorria em tempos mais distantes, em que nas monarquias tudo pertencia ao rei, hoje, nas "monarquias modernas", os monarcas postam-se apenas como espécies decorativas do Estado (nominalmente exerce as funções de chefe de Estado), quase que totalmente destituídos de qualquer prerrogativa de mandato efetivo.4Contudo, não se pode desprezar a influente carga semântica, quando de sua inserção na Constituição Federal, principalmente pela abalizadora ideia, ainda que virtual e romântica, de "coisa do povo".
Deste modo, posta na Constituição de 1988, em seu artigo 1º, a definição de República direciona as linhas interpretativas aplicáveis no estudo do direito constitucional brasileiro, com vistas a enunciar que o exercício do poder deverá sempre levar em consideração que deve servir ao interesse da nação.5Assim, já se observa que o detentor de cargo político sempre deverá nortear seus atos e, porque não se dizer, conduta, para atendimento aos interesses da nação.
Está regrado, ainda, que a República Federativa do Brasil se constitui em um "Estado Democrático de Direito".
Aqui, fica expressamente determinado que além de se constituir um "Estado de Direito", o país assumiu a "Democracia" como forma de reger sua existência e relações.
Nesse desiderato, por meio das formas de representatividade ou diretamente (conforme destacado), firma-se no regramento normativo máximo, a vontade de uma nação que, em linhas qualitativas, vai definir ao que o Estado se propõe.
Destaca FERREIRA FILHO que: "[...] tais diretrizes hão de dirigir todo o Poder no sentido de objetivos prefixados, obrigatórios para todos os Poderes ou órgãos do Estado".6Definindo-se as "proposições" do Estado, torna-se mais palatável se estabelecer linhas de interpretação de suas normas, mormente por se buscar sempre atender a vontade do povo, já que se está falando em Estado Democrático de Direito.
Posta a visão do Estado brasileiro, passa-se à análise da Constituição que, não obstante as diversas teorias e conceituações, precisamente a partir de sua inserção e função na realidade histórica, pode ser ela definida como o arcabouço normativo que rege uma nação em sua estrutura, relações e competências, sob óticas de direito e deveres, definindo formas e limitações de poder, fixando princípios e diretrizes sob os quais deve se desenvolver a vida estatal e não estatal.
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E a vida estatal deve ser abalizada e regrada, sempre, pela moralidade, sendo ínsita a qualquer atividade em seu nome exercida, principalmente pelos detentores de cargo político.
Vale lembrar, conforme a digressão acima exposta, onde se expôs que o detentor de cargo político, atrelando-se à estrutura estatal, nos termos constitucionais, deve espelhar a vontade da sociedade, deve logicamente atender aos princípios invocados pelo constituinte, entre os quais o dever de retidão no desempenho da vontade de seus representados.
O agente público, em sentido amplo, já detém o dever de cuidar dos bens e interesses públicos de forma proba, conforme destaca a Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...).
O que se dirá, então, do agente político, espécie do conceito agente público que, além do dever de atender aos interesses...
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