Ação civil pública

AutorRonaldo Lima Dos Santos
Páginas275-324
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CAPÍTULO VIII
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
1. TERMINOLOGIA
Na expressão ação civil pública, o vocábulo “civil” é utilizado no sentido de “não penal”, ou seja,
designa um instrumento processual no qual se postula uma pretensão que se insere no direito privado,
ao contrário da ação penal, em que há a veiculação de uma pretensão punitiva tipifi cada no Código
Penal.
Em princípio, o emprego da expressão ação civil pública tinha como objetivo distingui-la da ação
penal, para diferençar as hipótese de atuação do Ministério Público. Tratava-se de um enfoque subjetivo,
baseado na titularidade ativa do Ministério Público.
Entretanto, o fundamento de que a adjetivação “pública” baseou-se na circunstância de ser a ação
de titularidade do Ministério Público não se justifi cava, uma vez que tanto a CF/88 (art. 129, § 1º) como
a LACP, asseguraram legitimidade concorrente-disjuntiva ao Parquet e a outras entidades (art. 129,
§ 1º), com vistas a facilitar o mais amplo acesso à Justiça dos interesses transindividuais, não havendo
exclusividade do Ministério Público.
Desse modo, as explicações subjetivas (centradas na legitimação do Ministério Público) deram
lugar para justifi cativas objetivas, referentes à natureza dos interesses protegidos.
Assim, com vistas a fundamentar o caráter público da demanda, passou-se do fundamento
subjetivo, concernente à legitimação ativa (já que o Ministério Público não constitui legitimado exclusivo),
para o enfoque do seu objeto: a tutela de interesses transindividuais.(1)
Por essa posição, o caráter público não decorreria da concessão de legitimidade ao Ministério
Público (como sói acontecer no processo penal, no qual o caráter público emerge da titularidade estatal
para promover a ação), mas derivaria do seu objeto precípuo: “a tutela de interesses transindividuais”.
Como ressalta Rodolfo de Camargo Mancuso, “essa ação não é pública porque o Ministério Público
pode promovê-la, a par de outros legitimados, mas sim porque ela apresenta um largo espectro social
de atuação, permitindo o acesso à Justiça de certos interesses metaindividuais que, de outra forma,
permaneceriam num certo limbo jurídico”.(2)
Vale reiterar que os interesses transindividuais não se confundem com os interesses públicos
(primários e secundários), por serem de naturezas ontologicamente diversas. O “público” assim deriva
mais da relevância social dos interesses protegidos pela ação civil pública do que da natureza desses.
Em verdade, se observarmos com rigor, a expressão “ação civil pública” não possui qualquer
correlação com os critérios subjetivo (titularidade da ação) e objetivo (direito material por ela tutelado).
Essa denominação foi inserida em nosso ordenamento jurídico pela LC n. 40/81 (Lei Orgânica do
Ministério Público), a primeira norma legal a tratar da ação civil pública no ordenamento jurídico brasileiro,
num período de pouco amadurecimento da concepção de tutela coletiva no Brasil. Somente um esforço
analítico-interpretativo possui o condão de dar-lhe um signifi cado compatível com sua confi guração
atual. No entanto, esta denominação se encontra consagrada na doutrina e na jurisprudência, com
credibilidade e profundo signifi cado, merecendo permanência.
(1) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil..., cit., p. 18.
(2) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil..., cit., p. 21.
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2. CONCEITO
Com esteio na Lei n. 7.347/85, Hely Lopes Meirelles defi niu a ação civil pública como “o instrumento
processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações da ordem econômica
(art. 1º), protegendo, assim, os interesses difusos da sociedade”.(3)
No âmbito trabalhista, Marcello Ribeiro Silva a defi ne como a ação de responsabilidade por
danos morais e patrimoniais causados aos interesses transindividuais afetos às relações de trabalho,
entendendo-se como transindividuais os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.(4)
Carlos Henrique Bezerra Leite considera a ação civil pública como o meio, constitucionalmente
assegurado ao Ministério Público, ao Estado ou a outros entes coletivos autorizados por lei, para
promover a defesa dos interesses ou direitos transindividuais decorrentes das relações jurídicas
reguladas pelo Direito do Trabalho.(5)
Como visto anteriormente, os interesses transindividuais trabalhistas não se limitam às relações
jurídicas reguladas pelo Direito do Trabalho. Embora designem uma série de direitos e interesses rela-
cionados com as relações de trabalho, sua aplicação não se limita às relações regulamentadas por este
ramo específi co do Direito, abrangendo uma série de situações, bens e sujeitos de direitos vinculados
direta ou indiretamente às relações de trabalho.
Conquanto o art. 1º da LACP refi ra-se à ação civil pública como uma ação de responsabilidade
por danos morais e patrimoniais, seu objeto pode ser muito mais amplo, por compreender uma série
indefi nida de tutelas para a salvaguarda dos interesses transindividuais, como as tutelas preventivas,
cautelares, inibitórias, constitutivas, declaratórias etc.
Neste diapasão, podemos defi nir a ação civil pública trabalhista como o instrumento processual, de
cunho constitucional, assegurado a determinados autores ideológicos com legitimação prevista em lei
(Ministério Público, Defensoria Pública, entes estatais, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade
de economia mista e associações, entre as quais incluem-se as entidades sindicais), para a tutela
preventiva, inibitória, repressiva ou reparatória de danos de qualquer ordem, imateriais ou materiais,
morais ou patrimoniais, aos interesses transindividuais — difusos, coletivos e individuais homogêneos
— afetos, direta ou indiretamente, às relações de trabalho e aos interesses individuais indisponíveis.
A ação civil pública é um instrumento processual; uma ação de conhecimento. Tem por objetivo a
ampla tutela de interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), nos diversos
ramos do direito e nos mais diversifi cados setores da sociedade, com indubitável aplicação ao campo
das relações de trabalho.
3. NATUREZA JURÍDICA
A ação civil pública consiste numa ação de conhecimento, de cunho eminentemente constitucional
(art. 129, III, CF/88), a qual vem se tornando o principal veículo de coletivização do processo trabalhista
e de promoção da defesa dos interesses transindividuais na esfera das relações de trabalho.(6) Sua
titularidade, no âmbito trabalhista, é conferida, primordialmente, ao Ministério Público do Trabalho, às
entidades sindicais e às associações.
4. OBJETO
A ação civil pública tem por objeto a defesa de quaisquer das espécies de interesses transindividuais
(difusos, coletivos e individuais homogêneos), materiais ou imateriais, que sofram violação ou ameaça
de lesão.
(3) MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 153-154.
(4) SILVA, Marcello Ribeiro da. A ação civil pública e o processo do trabalho. Ribeirão Preto: Nacional de Direito, 2001. p. 25.
(5) LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil..., cit., p. 97-98.
(6) LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Tendências..., cit., p. 34.
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Quando da sua promulgação, a Lei n. 7.347/85 dispunha que a ação civil pública tinha como
nalidade a responsabilização e consequente reparação de danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
No projeto que recebeu aprovação, havia a previsão de um inciso IV ao art. 1º da Lei, que previa
o cabimento da ação civil pública para a tutela “a qualquer outro interesse difuso”, mas este dispositivo
recebeu veto da Presidência da República. Com o veto, a ação civil pública, in initio, havia nascido podada
da sua vocação universal: ser um instrumento de tutela de todo e qualquer interesse transindividual
relevante para a sociedade, além daqueles previstos nos demais incisos do art. 1º da Lei.
Com a CF/88, a ação civil pública foi elevada ao âmbito constitucional, tendo sido consagrada
como uma garantia processual para a proteção dos interesses transindividuais. O legislador constituinte
retifi cou o erro decorrente do veto presidencial, ampliando o objeto da ação civil pública, ao atribuir
como função institucional do Ministério Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública
“para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos” (inciso III, do art. 129).
Com a promulgação do CDC, foi inserido no art. 1º da LACP o inciso IV, outrora vetado, corroborando
a previsão constitucional e dotando-se a ação civil pública de idoneidade para a tutela de “qualquer
outro interesse difuso ou coletivo” (art. 1º, IV, LACP).
O CDC, após introduzir o conceito de interesses individuais homogêneos na legislação nacional
e disciplinar a sua tutela processual, inseriu o art. 21 à LACP para determinar que, em sede de ação
civil pública, aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for
cabível, os dispositivos do Título III, que trata da “Defesa do Consumidor em Juízo”, soterrando as
discussões a respeito da possibilidade de tutela dos interesses individuais homogêneos por meio da
ação civil pública.
A Medida Provisória n. 1.984-20/2000, constantemente reeditada, acrescentou e alterou
alguns dispositivos da Lei n. 7.347/85. Posteriormente, a Medida Provisória n. 2.180/2001 (também
constantemente reiterada) manteve as alterações incrementadas pela MP n. 1.984/2000, sendo as
alterações mantidas por força do art. 2º da EC n. 32/2001, quando em vigor a última reedição daquela
norma — MP n. 2.180-35/2001.(7)
Entre os acréscimos, inseriu o inciso V ao art. 1º para declarar o cabimento da ação civil pública
em casos de “infração da ordem econômica e da economia popular” e um parágrafo único ao mesmo
artigo para dispor que “Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam
tributos, contribuições previdenciárias, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS ou outros
fundos de natureza institucional cujos benefi ciários podem ser individualmente determinados”.
Por meio das Leis n. 12.966/2014 e n. 13.004/2014, ampliou-se, respectivamente, o objeto da
ação civil pública para a proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos (art. 1º,
VII) e ao patrimônio público e social (art. 1º, VIII).
Atualmente, com a previsão do art. 129, III, CF/88, e com a inserção do inciso IV ao art. 1º da
LACP, a ação civil pública constitui um instrumento com aptidão para a tutela de qualquer interesse
transindividual, pois o art. 1º da LACP passou a funcionar como numerus apertus, o que garante sua
plena e ampla aplicação no campo das relações trabalhistas.
4.1. Pretensões referentes ao FGTS
Como exposto anteriormente, a Medida Provisória n. 2.180-35/2001 acrescentou um parágrafo
único ao art. 1º da LACP para dispor que “Não será cabível ação civil pública para veiculação de
pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, Fundo de Garantia do Tempo de Ser viço
(7) A Emenda Constitucional n. 32/2001, de 11.9.01, alterou o art. 62 da Constituição para, entre outras modifi cações, vedar
a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil (art. 62, I, “a”, da
CF/88).

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