Os interesses transindividuais

AutorRonaldo Lima Dos Santos
Páginas46-74
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CAPÍTULO II
OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
1. SOCIEDADE DE MASSA E INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
A existência de bens que, num primeiro momento, se apresentariam como não pertencentes
a ninguém (ou insignifi cantes), por não possuírem, a princípio, um titular determinado, sempre se
verifi cou ao longo da história do ser humano, daí as designações res derelictae (coisa abandonada;
sem dono), res nullius (coisa de ninguém), res amissa (coisa perdida), res extra commercium (coisa
fora do comércio), entre outras de semelhantes signifi cados utilizadas para designar bens materiais e
imateriais não pertencentes à esfera jurídica de titulares concretos e determinados.
Igualmente, a história sempre registrou a presença de bens e lugares cuja fruição não era
restrita à esfera de um titular exclusivo, uma vez que eram de uso comum (res communes) de uma
coletividade globalmente considerada (tribo, comunidade, aldeia ou clã), razão pela qual se reconhecia
a necessidade da sua tutela e conservação para o bem geral de todos. Até mesmo em sociedades
primitivas, as coisas comuns (res universitatis) mereciam tutela e respeito, tal como acontecia em relação
aos objetos sagrados (res sacrae), às áreas reservadas às festividades e aos jogos comunitários etc.
Afi nal, em qual época histórica o ser humano não desejou viver numa sociedade com meio ambiente
agradável, respeito às coisas e áreas comuns e preservação da saúde de seus membros?
Assim, bens e interesses que não se inserem na titularidade de uma única pessoa e cuja fruição
abarca um número ilimitado ou expandido de sujeitos, e que, por isso, transcendem a simples esfera
individual, existem desde que se formaram os primeiros agrupamentos humanos, não sendo uma
característica exclusiva do mundo moderno.
A complexa sociedade moderna, no entanto, realçou a fi gura desses interesses, colocando-os
em plena evidência. Isso se deu em virtude de fatores como o surgimento de grandes conglomerados
urbanos, a explosão demográfi ca, a Revolução Industrial, o desmedido crescimento das relações
econômicas, da produção e do consumo de massa, o nascimento de grandes grupos empresariais, a
hipertrofi a estatal nos campos social e econômico, entre outros.(1)
O desenfreado crescimento industrial, com o surgimento de grandes conglomerados econômicos,
aliado ao desenvolvimento urbano acelerado e à intervenção do Estado em diversos setores da sociedade,
com intervenções econômicas, ambientais, políticas e sociais, com a realização de atos públicos e
privados de grandes repercussões na sociedade, credenciou a violação reiterada de interesses ou
bens coletivos, cuja transgressão outrora não ocorria com o grau de intensidade com que verifi camos
na atual e complexa sociedade, e que, por isso, até então não mereciam maiores preocupações
(patrimônio cultural, artístico e paisagístico, meio ambiente), mas que se notabilizaram por causarem
impactos concomitantes na vida de diversas pessoas, coletividades, comunidades, sociedades e da
humanidade como um todo (destruição da camada de ozônio, do patrimônio histórico e cultural, da
diversidade da fauna e da fl ora).
Essa sociedade moderna é marcada por dois aspectos primordiais: a) “uma nova realidade”; e
b) “uma nova consciência”. A nova realidade consiste na pujante intervenção dos poderes públicos e
agentes privados, de modo profundo e duradouro, sobre as diversas faces da realidade social, muitas
vezes com comportamentos danosos, os quais envolvem uniformemente uma vasta área de interesses
e de pessoas lesadas, como os de todos os cidadãos de uma região ou mesmo de todo um Estado.
A nova consciência é caracterizada pela mudança de horizonte do homem moderno em relação à
(1) FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Edis; NERY JUNIOR, Nelson. A ação civil pública e a tutela
jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 54-55.
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sobrevivência da humanidade e à diversidade da natureza humana, a qual invoca a consideração do
ser humano em termos sociais concretos: consumidor, habitante de um bairro, mulher, idoso, membro
do ecossistema terrestre etc. A cada status civitatis corresponde uma série de interesses jurídicos
respectivos, a qual não se limita ao âmbito de pertencimento de um único sujeito, uma vez que se
notabiliza por ser comum a todos que se enquadram em determinado status (consumidores, mulheres,
idosos etc.).(2)
É a denominada sociedade de massa que, centrada nesse conjunto de fatores, caracteriza-se
pelo grande número de relações jurídico-econômico-sociais assemelhadas e uniformizadas, com
acentuados graus de alcance subjetivo.
Conquanto a sociedade tal como a conhecemos seja tão velha quanto a vida social humana,
a sociedade de massa é relativamente nova. Mas o que vem a ser a massa caracterizadora desta
sociedade? Segundo o sociólogo Thomas Ford Hoult, uma massa não se confunde com uma porção
de pessoas, mas consiste “num número relativamente grande de pessoas, espacialmente dispersas e
anônimas, reagindo a um ou mais estímulos idênticos, mas agindo individualmente sem consideração
umas pelas outras”.(3)
A sociedade de massa é marcada não somente pelo aspecto quantitativo, mas igualmente por
constituir uma sociedade na qual “a uniformidade social prevalece sobre a universalidade”, isto é, uma
sociedade tendente a tratar uniformemente os indivíduos, tanto sob o aspecto jurídico-formal quanto
o material.(4)
Esta sociedade moderna é defi nida por Paul B. Horton e Chester L. Hunt como “aquela em que
os relacionamentos informais, de grupos primários,(5) com base na comunidade e orientada para a
tradição, foram substituídos por relacionamentos contratuais e utilitários de grupo secundário. É o
estágio fi nal da passagem dos relacionamentos de tipo comunitário aos de tipo societário”.(6)
Suas características principais são: a) ausência de organização e estratifi cação sociais rígidas;
b) presença de agregações de indivíduos, os quais, embora destacados, desligados ou anônimos,
possuem homogeneidade em relação a determinados comportamentos ou posturas sociais ou em ra-
zão das situações existenciais comuns nas quais se encontram; c) subsistência de comportamentos não
organizados, não estruturados e não coordenados; d) revelação do comportamento de massa; isto é,
pelo qual as pessoas agem individualmente, mas numa mesma direção coletiva e com estímulos e con-
dutas idênticas aos membros desta coletividade; e) comportamentos padronizados, os quais não se
manifestam necessariamente por meio de um grupo, mas individualmente de forma uniforme;
f) presença de uma massa social que não consiste num grupo, cujos componentes não necessaria-
mente interagem entre si, mas a qual pode ser levemente identifi cada pela uniformidade de condutas,
valores e pensamentos; g) passagem do estado de fl uidez pessoal nas relações sociais (mais presente
nas sociedades primitivas) para a impessoalidade dos relacionamentos secundários.
Nesse contexto, a sociedade pessoalizada e tradicionalmente conhecida é substituída por uma
sociedade contratual, na qual os vínculos pessoais, bem como os direitos e deveres tradicionais são tão
importantes. Os relacionamentos entre as pessoas são determinados por negociações e defi nidos em
(2) CODINI, Enio. Beni a fruizione difusa e giudice amministrativo. In: FIORE, Adriano; STANZANI, Davide (a cura di). Strumenti
per la tutela degli interessi diffusi della collettività. Atti del Convegno nazionale promosso dalla Sezione di Bologna di Italia
nostra. Bologna, 5 dic. 1981. Rimini: Maggioli, 1982. p. 139-140.
(3) Apud HORTON, Paul B.; HUNT, Chester L. Sociologia. Trad. Auriphebo Berrance Simões. São Paulo: McGraw-Hilll do
Brasil, 1980. p. 325.
(4) FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo:
Max Limonad, 1984. p. 154.
(5) Os grupos primários se caracterizam pelo conhecimento íntimo entre as pessoas como personalidades individuais; os
contatos sociais são íntimos, pessoais e totais, pois envolvem muitas partes da vida de uma pessoa. É a família, grupo de
amigos etc. Nos grupos secundários, os contatos sociais são impessoais, segmentários e utilitários, se tem interesse pelo
outro não como pessoa, mas pela sua função, seu papel social, o contato entre as pessoas é utilitário e segmentado. É o
sindicato, associação de pais e mestres etc. “Os grupos primários são orientados para o relacionamento, ao passo que os
grupos secundários são orientados para metas” (HORTON, Paul B.; HUNT, Chester L. Op. cit., p. 136-137).
(6) Idem, ibidem, p. 325.

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