Legitimidade dos sindicatos para a defesa processual dos interesses transindividuais 170 Dissídio coletivo

AutorRonaldo Lima Dos Santos
Páginas205-248
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CAPÍTULO VI
DISSÍDIO COLETIVO
1. DISSÍDIO INDIVIDUAL E DISSÍDIO COLETIVO
Entre as diversas formas de resolução de confl itos decorrentes das relações de trabalho, o Brasil
também adotou a solução estatal de confl itos individuais e coletivos por meio da atuação do Poder
Judiciário.
O confl ito individual é solucionado pela ação trabalhista; instrumento processual pelo qual a lide
— envolvendo um ou mais empregados perfeitamente identifi cados de um lado e empregador(es) do
outro — é resolvida mediante aplicação da lei ao caso concreto.
Já os confl itos coletivos são solucionados pelas ações judiciais denominadas “dissídios coletivos”
e ajuizadas perante os Tribunais Trabalhistas (TRT e TST). Estas demandas dão solução ao confl ito
pela aplicação do poder normativo do Poder Judiciário, consistente na faculdade conferida aos Tribunais
do Trabalho para estabelecer normas e condições de trabalho a fi m de reger as relações individuais
e coletivas dos trabalhadores e empregadores representados e das suas respectivas entidades
representantes.
O dissídio coletivo encontra previsão no art. 114 da CF/88, que trata da competência da Justiça do
Trabalho, cuja redação foi alterada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Trata-se de uma competência
regulamentar atribuída ao Judiciário Trabalhista para solucionar confl itos coletivos do trabalho.
1.1. Origens do poder normativo
O poder normativo da Justiça do Trabalho teve inspiração na Carta del Lavoro do regime fas-
cista italiano, aprovada pelo Gran Consiglio, em 21 de abril de 1927. Ele foi concebido dentro de um
modelo autoritário de Estado, cuja doutrina sintetizava-se em dois conceitos básicos: autoritarismo e
corporativismo. O autoritarismo afi rmava a concepção política de um Estado baseado em relação de
comando, obediência e controle. O corporativismo elevava à esfera do direito público as coletividades
organizadas para proteção de interesses, que deixavam de ser simplesmente privadas, para tornarem-
-se corporações atreladas ao Poder Público e submetidas ao controle do Estado.(1)
A principal aspiração do Estado corporativo era o estabelecimento do equilíbrio entre as classes
sociais, posicionando-se acima delas como moderador, regulador e, sobretudo, organizador da
sociedade.(2) Esse objetivo do Estado fascista restou consagrado emblematicamente na célebre frase
de Benito Mussolini: “Tudo no Estado; nada contra o Estado, nada fora do Estado”.(3)
Como assinala Arion Sayão Romita, “... o Estado corporativo, onipresente, dispõe sobre todos os
assuntos que dizem respeito ao social: desde a regulamentação das relações individuais de trabalho,
passando pela política sindical, até desembocar na solução dos dissídios do trabalho, individuais ou
coletivos. Nada resta ao particular: O Estado vê tudo, sabe o que é melhor para cada um, a tudo
provê.(4)
No Estado totalitário, dilui-se a diferença entre sociedade e Estado, sendo as organizações
divididas em corporações, com vistas a facilitar a regulamentação e o controle destas pelo próprio
(1) ROMITA, Arion Sayão. O fascismo..., cit., passim.
(2) BORTOLOTO, Guido, apud ROMITA, Arion Sayão. Op. cit., p. 27.
(3) COTRIM, Guilherme. História global..., cit., p. 392.
(4) ROMITA, Arion Sayão. Op. cit., p. 27.
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Estado. O regime corporativo pressupôs a organização do Estado em corporações, com submissão dos
interesses particulares ao interesse nacional. O ordenamento corporativo valeu-se de dois meios para
submeter os interesses particulares aos da nação: a organização e o controle das forças produtivas e a
intervenção do Estado na sociedade. A política sindical tornou-se, para este desiderato, um pressuposto
da política corporativa estatal.(5)
Neste contexto, foi criada a Magistratura del Lavoro que, ao lado da regulamentação da organização
sindical, da proibição da greve e do lockout e do incremento do corporativismo, tornou-se um dos pilares
da estrutura do Estado fascista. Sua função primordial era o preenchimento do vazio deixado pela
proibição da greve e do lockout,(6) para, por meio da sua intervenção, controlar e solucionar confl itos
latentes nas relações de trabalho, com a manutenção da ordem e do equilíbrio entre as classes sociais
no seio do Estado fascista, mediante a conciliação entre os interesses opostos dos empregadores e
trabalhadores, e a sua subordinação aos interesses superiores da produção.
Segundo a Declaração V da Carta del Lavoro, “A Magistratura do Trabalho é o órgão pelo
qual o Estado intervém para solucionar as controvérsias do trabalho, sejam as que versam sobre a
observância dos pactos e de outras normas existentes, sejam as que versam sobre determinações de
novas condições de trabalho”. Consagrou-se, assim, poder normativo à Justiça do Trabalho, isto é, o
poder de estipular normas e condições para reger as relações individuais de trabalho.
Embora a Carta del Lavoro, de 1927, tenha consagrado o poder normativo da Justiça do Trabalho,
entre os pilares do Estado corporativo, sua previsão inicial deu-se pela Lei n. 563 (que regulamentou as
relações coletivas de trabalho), de 3 de abril de 1926, que, em seu art. 13 dispôs: “Todas as controvérsias
relativas à disciplina das relações coletivas de trabalho, que concernem, seja sobre a aplicação dos
contratos coletivos ou de outras normas existentes, seja sobre as reivindicações de novas condições de
trabalho, são de competência das Cortes de Apelação, que funcionam como Magistratura do Trabalho”.
1.2. Evolução legislativa no Brasil
Como assinalado, a CF/1937, outorgada durante o Estado Novo, inspirou-se no sistema
corporativista italiano, com reprodução, quase que literal, da declaração III da Carta del Lavoro. Por
meio dela, o governo varguista extinguiu o modelo sindical pluralista da Carta de 1934 e aumentou o
intervencionismo estatal nos sindicatos.
Embora não previsse expressamente o poder normativo da Justiça do Trabalho, a Carta de
1937, ao proibir a greve e o lockout (art. 139), prever a organização da produção por corporações (art.
140) e instituir a Justiça do Trabalho (vinculada ao Poder Executivo), para dirimir os confl itos oriundos
das relações entre empregadores e empregados (art. 139), acabou por consagrá-lo ao assimilar as
linhas mestras do Estado corporativista, inclusive com a previsão de uma Justiça especializada para a
solução de controvérsias decorrentes das relações de trabalho.(7)
O Decreto-lei n. 1.237, de 2.5.1939, implementou o dissídio coletivo como atribuição dos
Conselhos Regionais do Trabalho, ao prever como sua competência “conciliar e julgar os dissídios
coletivos que ocorrerem dentro da respectiva jurisdição” (art. 28, alínea “a”), consagrando, no âmbito
infraconstitucional, o poder normativo da Justiça do Trabalho. Posteriormente, a CLT incorporou as
disposições sobre o dissídio coletivo e o poder normativo.
A CF/1946 elevou o poder normativo ao âmbito constitucional, ao prever expressamente a
competência normativa da Justiça do Trabalho, agora pertencente ao Poder Judiciário, ao dispor que
“Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados
e empregadores, e as demais controvérsias oriundas de relações de trabalho regidas por legislação
(5) ROMITA, Arion Sayão. Ibidem, p. 27.
(6) Idem, Ibidem, p. 89.
(7) “Art. 139. Para dirimir os confl itos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação
social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição
relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da Justiça comum.
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especial” (art. 123), delegando à lei a especifi cação dos casos em que as decisões nos dissídios
coletivos poderiam estabelecer normas e condições de trabalho (art. 123, § 2º, CF/46). Referidos
dispositivos foram integralmente reiterados na CF/1967 (art. 142) e na EC n. 1/1969 (que manteve o
art. 142 da CF/1967).
Como assinalamos anteriormente, a CF/88 mesclou alguns elementos de autonomia e liberdade
sindicais com outros de heteronomia e intervencionismo, esteando um modelo sindical híbrido. Entre
os elementos heterônomos, manteve o dissídio coletivo e o poder normativo da Justiça do Trabalho ao
dispor, em sua redação original: “Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é
facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer
normas e condições de trabalho, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de
proteção ao trabalho” (art. 114, § 2º).
Ao contrário das Cartas anteriores, a CF/88, em sua redação original acima enunciada, não
delegou à legislação infraconstitucional a especifi cação dos limites do poder normativo, estabelecendo
ela mesma as suas balizas, ao exigir a observância das disposições convencionais e legais mínimas
de proteção ao trabalho pelo órgão julgador.
A EC n. 45/2004, pela qual fora implementada a denominada Reforma do Judiciário, alterou a
redação do art. 114 da CF/88, ampliando a competência da Justiça do Trabalho e reformulando as
bases do dissídio coletivo, passando a dispor, in verbis:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (...) § 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão
eleger árbitros. § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas,
de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o confl ito,
respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do
Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o confl ito.”
Como se afere, a EC n. 45/2004 elevou ao âmbito constitucional a legitimação do Ministério
Público do Trabalho para a instauração de instância em caso de greve em atividade essencial, com
possibilidade de lesão a interesse público (art. 114, § 3º).
1.3. Conceito de dissídio coletivo
O dissídio coletivo é ação judicial por meio da qual a Justiça do Trabalho aprecia e julga um confl i-
to coletivo de trabalho, primordialmente, com fulcro no poder normativo, isto é, mediante uma atividade
regulamentar consistente na faculdade de estabelecimento de normas e condições de trabalho para
reger as relações individuais e coletivas de trabalho entre trabalhadores e empregadores represen-
tados, como também decide controvérsia sobre a aplicação ou interpretação de determinada norma
jurídica de aplicação às coletividades e sujeitos representados, ou resolve questões jurídico-materiais
decorrentes de um movimento grevista.
1.4. Repercussões da EC n. 45/2004 no dissídio coletivo
A EC n. 45/2004 alterou substancialmente o dissídio coletivo, passando a tratá-lo em três parágrafos
distintos do mesmo art. 114 da CF/88. O primeiro (§ 1º) institui a tentativa prévia de negociação ou
arbitragem; o segundo (§ 2º) refere-se ao dissídio coletivo suscitado pelas partes confl itantes; e o
terceiro (§ 3º) concerne ao dissídio coletivo de greve e à legitimidade do Ministério Público do Trabalho
para a sua suscitação.
O novo delineamento do dissídio coletivo conferido pela EC n. 45/2004 foi seguido de uma série de
discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a constitucionalidade ou não da exigência de comum
acordo para sua suscitação; sobre a própria dimensão da expressão “de comum acordo”; sobre a
natureza jurídica do dissídio coletivo (instância arbitral ou jurisdicional) e do seu provimento jurisdicional;
sobre a manutenção ou não do poder normativo da Justiça do Trabalho; sobre a permanência ou não

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