Tutela de interesses transindividuais e ruptura da concepção de categoria

AutorRonaldo Lima Dos Santos
Páginas139-294
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CAPÍTULO IV
TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS E
RUPTURA DA CONCEPÇÃO DE CATEGORIA
1. A RECEPÇÃO DA CONCEPÇÃO DE CATEGORIA PELA CF/88
A Constituição Federal de 1988, não obstante tivesse ensaiado uma imersão na seara da
liberdade sindical — com a vedação da interferência e intervenção do Estado na organização sindical,
consagrando a autonomia sindical (art. 8º, I); abolição da exigência de autorização do Estado para
a fundação de sindicato (art. 8º, II); eliminação da necessidade de enquadramento sindical prévio
e obrigatório (art. 8º, I e II); garantia das liberdades sindicais individuais negativas e positivas (art. 8º, V);
prestigiação da negociação coletiva de trabalho (art. 8º, VI; art. 114, §§ 1º e 2º); previsão da estabilidade
do dirigente sindical (art. 8º, VIII) e consagração do direito de greve (art. 9º) —, não conseguiu se libertar
de preceitos e concepções do sistema corporativista italiano, o qual inspirou a nossa organização
sindical ab initio da sua institucionalização legal durante o Estado Novo.
Além de manter a contribuição sindical e criar mais uma contribuição — a confederativa (art. 8º,
IV) —, manteve a unicidade sindical (art. 8º, II) e recepcionou o sistema de organização sindical dividido
por categorias. O sindicato, assim, aparece como ente exponencial da categoria em vários dos incisos
do art. 8º da CF/88, num misto de sindicato corporativista e entidade de classe de regime democrático.
A noção de categoria (profi ssional ou econômica) revestira-se de fundamental importância no
ordenamento fascista italiano do período entre Guerras. Constituía a base sobre a qual se sustentava
o ordenamento jurídico corporativista italiano e o âmbito no qual e em referência ao qual se formava
um núcleo associativo juridicamente reconhecido.(1)
A distribuição dos sindicatos por categorias era um dos instrumentos de controle do Estado tota-
litário sobre os fatores da produção. O movimento sindical emergia como um braço do Estado, ao qual
era subordinado e cujo controle se submetia. Assim, a organização sindical por categoria nasceu, na
Itália fascista, com um propósito imediato: veicular o poder de controle do Estado sobre as forças pro-
dutivas e organizar a vida socioeconômica do país por meio de corporações. O sindicato apresenta-se,
nesse regime, como pessoa jurídica de direito público, com o objetivo de satisfazer interesses próprios
do ente estatal.
A primeira Constituição brasileira a consagrar a divisão de sindicatos por categoria foi justamente
a Constituição Federal de 1937, que, em seu art. 138, conferia ao sindicato devidamente reconhecido
pelo Estado o direito de representação legal de todos os participantes da categoria.
Inspirou-se a Carta Política de 1937 na Carta del Lavoro do regime fascista italiano. O supracitado
art. 138 da CF/37 constitui basicamente interpretação (transcrição) literal da Declaração III da Carta
italiana, instituída em 21 de abril de 1927, por deliberação do Gran Consiglio Nazionale del Fascismo,
presidido por Benito Mussolini, Chefe do governo e Duce do fascismo, e pela qual foram defi nidas as
bases da organização sindical e da Magistratura del Lavoro italiana.(2)
A adoção de tal regime pelo Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas, perseguia os mesmos
objetivos controladores do Estado italiano.
Apesar das transformações políticas e econômicas que se seguiram após o término da Era Vargas,
o sistema de representação sindical por categorias perdurou até os dias atuais, independentemente da
(1) ROMITA, Arion Sayão. O fascismo no direito do trabalho brasileiro..., cit., p. 60.
(2) ROMITA, Arion Sayão. Direito do trabalho: temas em aberto. São Paulo: LTr, 1998. p. 516.
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situação político-econômica do país. Passou pelo regime imposto pelos governos militares e sobrevive
no regime democrático implantado com a ordem constitucional pós-88.
Desse modo, embora originária do sistema corporativista italiano implantado por Mussolini, a
divisão da organização sindical brasileira por categorias aparenta possuir feições peculiares, as quais
lhe teriam garantido sobrevivência desde 1937, mesmo em períodos democráticos.
Acolhido o regime de representação sindical por categorias pelo constituinte de 1988, mister se
faz uma análise da compatibilidade desse sistema com a atuação sindical na defesa dos interesses
transindividuais. A questão se resume numa pergunta básica: o sistema de representação sindical por
categorias é compatível com a atuação sindical na defesa dos interesses transindividuais? Para essa
questão, tentamos buscar uma resposta.
Essa resposta não é fácil. Ainda não há uma discussão na doutrina e na jurisprudência a respeito
dessa questão. Talvez, porque os próprios sindicatos não colaborem para o desenvolvimento da matéria,
uma vez que possuem uma conduta incipiente e, por assim dizer, precária, no campo da tutela dos
interesses metaindividuais.(3)
Notória a interligação ente os campos material e processual, estando o estudo da compatibilidade
da ação sindical com a concepção de categoria intimamente vinculado com a problemática da
legitimação dos sindicatos para a defesa dos interesses metaindividuais, principalmente, no campo
dos interesses difusos.
1.1. A utilização de critérios de categorização na Sociologia
Entre os diversos objetivos científi cos da Sociologia, enquadra-se a atribuição de distinguir os
vários tipos de coletividades humanas, tendo como meta o estabelecimento de uma linguagem precisa
com vistas à realização de análises sociais. Como elucida Ely Chinoy, ao sociólogo cabe o dever de
distinguir entre grupos sociais, categorias sociais e agregados estatísticos, o que conduz à ordenação
e classifi cação das coletividades humanas.(4)
Na Sociologia, as classifi cações por categorias são comumente utilizadas em razão de sua
relevância para o estudo e análise de dados estatísticos e sociais. A categoria social é composta
por pessoas cujos status são semelhantes, o que as leva ao desempenho do mesmo papel social
(eletricistas, adolescentes, banqueiros, idosos).(5)
Nessa área do conhecimento, as categorias são aferidas a partir de aspectos semelhantes entre
pessoas e elementos que possuem signifi cação sociológica, com base em dados estatísticos obtidos
principalmente por meio de censos. São “construções mentais baseadas nos fatos”.(6)
As categorias, por constituírem construções mentais, são conceitos artifi ciais e mutáveis que
variam de acordo com o objetivo de cada estudo, de cada regramento, metodologia ou classifi cação
adotada por cada cientista social ou pesquisador.
(3) Nesse diapasão, vale demonstrar a dissertação da juíza Thereza Christina Nahas referente à sua experiência com
relação à atuação dos sindicatos na defesa dos direitos metaindividuais na Justiça do Trabalho. Segundo ela, denota-se que
“apenas o Ministério Público do Trabalho é que vem agindo como titular na defesa de interesses e direitos metaindividuais
dos trabalhadores, posto que os sindicatos, ainda atrelados à tutela no bojo do processo individual, não vêm utilizando
os instrumentos existentes na legislação para tanto, o que termina por impedir a formação de jurisprudência e difi culta a
pesquisa das questões práticas. Colhemos em pesquisa jurisprudencial a interposição de poucas ações civis públicas cuja
autoria em algumas situações é sindical; em outras, associativa, sob a jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho de São
Paulo, das quais oito estão em andamento e uma foi arquivada, no período de 1995 a 2000. Portanto, outra não pode ser a
conclusão da fraca atuação sindical, o que colabora para o estrangulamento da Justiça do Trabalho, que julga inúmeras lides
repetidas, cuja situação caberia no âmbito da ação coletiva” (NAHAS, Thereza Christina. Legitimidade ativa dos sindicatos.
São Paulo: Atlas, 2001. p. 133).
(4) Apud FERRARI, Irany. História do trabalho. In: FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MARTINS FILHO, Ives
Gandra da Silva. História do trabalho..., cit., p. 20.
(5) CHINOY, Ely, apud idem, loc. cit.
(6) LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Sociologia geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 106-107.
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As principais categorias estudadas pela Sociologia são defi nidas a partir de valores julgados
socialmente relevantes pelo sociólogo, de modo que confi gurem as categorias sociais signifi cativas.(7)
São inúmeros os critérios adotados pelos sociólogos para efetuar classifi cações por categorias.
Como exemplo, citamos liames como: a) parentesco — reúne-se as pessoas em razão de sua
procedência familiar (de nobres e de plebeus, famílias tradicionais e novos ricos, legalmente constituídas
e ilegais etc.); b) riqueza — relaciona-se com a posse de bens na sociedade (rico, pobre, remediado);
c) educação — diferencia-se analfabetos de alfabetizados, aptidões e habilidades de incapacidades,
cientistas e literatos etc.; d) ocupação — refere-se aos diversos tipos de atividades e profi ssões
(professores, funcionários públicos etc.); e) religião — distinções como sagrado e secular, católicos e
protestantes, crentes e ateus etc.; f) fatores biológicos — diferenciações com base no sexo, idade, cor
da pele, gênero, tipos físicos (estatura, peso), características físicas (textura do cabelo, cor dos olhos
ou da pele).(8)
São os denominados agregados estatísticos, constituídos por pessoas que possuem um atributo
social semelhante em virtude do qual podem ser logicamente consideradas em conjunto.(9)
Estes enquadramentos aferidos por meio da colheita e análise de dados estatísticos, obtidos nos
censos, também possuem enorme relevância para a previsão e organização da atuação e comporta-
mento de pessoas, massas, grupos e de instituições públicas e privadas.
Eva Maria Lakatos e Marina de Andrade Marconi citam como exemplo a utilização da taxa
de natalidade e mortalidade de crianças até sete anos de determinada população, em dada área
geográfi ca; por meio dela, pode-se prever a necessidade de salas de aula e o número de professores
para atender à demanda de crianças que ingressam no 1º ciclo, em certo ano.(10)
Além dos órgãos públicos, todas as entidades ou organizações que pretendam realizar
planejamentos, visando a grandes massas de população, necessitam de conhecimento das categorias
estatísticas, como, v. g., as empresas de produção industrial (automóveis, medicamentos); o setor de
serviços (hotéis, restaurantes); a área hospitalar; as políticas públicas.
Segundo Joseph Fichter, “uma categoria social é uma pluralidade de pessoas que são consideradas
como uma unidade social pelo fato de serem efetivamente semelhantes em um ou mais aspectos”.(11)
Também não tem sido novidade a utilização da classifi cação por categorias como um instrumento
para incrementar um maior controle social. Nesse sentido, categorizar implica não somente aferir as
características, os aspectos e comportamentos de determinado grupo social delineado como uma
categoria, mas também uma maneira de alcançar uma conformidade de condutas, pensamentos e valores
das pessoas enquadradas na categoria especifi cada, bem como uma maior solidariedade entre elas, de
sorte a produzir determinado padrão coletivo de comportamento, que daria o tom da previsibilidade da
atuação dos indivíduos e, assim, a possibilidade de um maior controle social sobre estes indivíduos e seus
grupos.(12)
Como asseveram Walfred A. Anderson e Frederick B. Parker, “todas as sociedades se esforçam
por induzir seus membros e grupos a chegar, espontânea ou automaticamente, às respostas
desejadas. Em condições ideais, espera conseguir conformidade, solidariedade e continuidade através
(7) No fascismo italiano, por exemplo, a noção de categoria, como critério de organização sindical, foi adotada a partir
de valores e objetivos do Estado fascista, com fulcro em considerações de utilidade política. A elaboração de categorias
econômicas e profi ssionais teve como vetor a necessidade de controle do Estado sobre os fatores de produção. Se outro
fosse o vetor adotado, poderiam ser distintas as categorias criadas. Naquele momento, o “controle” e a “organização” eram os
valores julgados relevantes pelo Estado fascista e que deram origem à criação das categorias mencionadas.
(8) LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Op. cit., p. 107-108.
(9) CHINOY, Ely, apud FERRARI, Irany. História do trabalho, cit., p. 20.
(10) LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Op. cit., p. 107.
(11) Apud LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Op. e loc. cit.
(12) E, aqui, retornamos ao Estado fascista. Ao criar as categorias econômicas e profi ssionais, os agentes políticos poderiam
não somente prever a atuação dos sindicatos, como também efetuar maior controle sobre aquela, por meio da análise de
dados estatísticos etc.

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