Ação Civil Pública Trabalhista

AutorIves Gandra Martins Filho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito Público pela UnB e Professor dos Cursos de Pós-Graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS)
Páginas229-255

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1. Ações coletivas “lato sensu”

Não é apenas o dissídio coletivo econômico e jurídico que constitui ação para defesa de interesses coletivos. Também a ação civil pública, instituída pela Lei n.
7.347/1985, tem por escopo a salvaguarda de interesses coletivos e difusos. Enquanto o dissídio coletivo, regra geral, visa à defesa de interesse coletivo da categoria no concernente à instituição de norma que estabeleça, para o futuro, melhores condições de trabalho, a ação civil pública tem por escopo resguardar o interesse coletivo lesado (portanto, em relação ao passado e presente, com repercussão no futuro), pelo descumprimento da legislação trabalhista.

Em ambos os casos, a coletividade defendida pelo sindicato ou pelo Ministério Público tem caráter abstrato, pois se refere a todos os membros da categoria (ou empregados da empresa), potencialmente atingidos pelo procedimento genérico contrário à legislação trabalhista (ação pública) ou pelos benefícios criados pela norma coletiva instituída (dissídio coletivo).

Assim, a ação civil pública aparece como modalidade de ação coletiva, que se assemelha ao dissídio coletivo de natureza jurídica, mas que segue o procedimento dos dissídios individuais, conforme recente orientação jurisprudencial do TST.

2. O fenômeno da coletivização do processo

Em sua obra conjunta intitulada “Acesso à Justiça”1, MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH falam das 3 ondas de inovações que se verificaram no Direito Processual, a partir de 1965, como tendência mundial, de forma a permitir um melhor acesso à Justiça.

O objetivo dessas inovações foi o de estabelecerem um sistema pelo qual as pessoas pudessem reivindicar seus direitos e resolver seus litígios sob os auspícios do Estado que fosse, ao mesmo tempo, acessível a todos e que produzisse resultados.

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Para isso, foi necessária a superação do modelo individualista do Processo, próprio dos séculos XVIII e XIX, em que havia apenas o acesso formal à Justiça. Tal período é caracterizado pelas declarações dos direitos humanos (direito à vida, à liberdade, à propriedade, à família), com uma visão individualista dos direitos. A par dessa visão, desenvolveu-se no século XX (e deve ser a tendência do século
XXI) a visão social dos direitos (direito ao trabalho, à saúde, à segurança, à educação), que busca não tanto declarar, mas garantir, dentre os quais o principal é precisamente o do acesso efetivo à Justiça. Esse seria o primeiro direito social a ser garantido.

O principal obstáculo ao acesso efetivo à Justiça é o alto custo do processo, que acaba impedindo que venham a postular seus direitos em juízo:

a) os pobres por não poderem arcar com custas, honorários advocatícios e a própria delonga do processo, que não lhes traz as vantagens econômicas pleiteadas;

b) os que sofrem lesões de pequena monta, dada a desproporção entre os custos do processo e as vantagens que por meio dele poderiam auferir; e

c) todos os que sofrem lesões de caráter difuso, ou seja, aquelas que afetam a toda uma coletividade, mas que não despertam no indivíduo o interesse de pleiteá-los judicialmente, uma vez que o benefício pessoal será pequeno em relação aos custos judiciais (lesões ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, artístico e cultural, aos direitos do consumidor).

Assim, a primeira onda de reformas no processo foi a que possibilitou a criação da assistência judiciária para as pessoas carentes, de forma a proporcionar serviços jurídicos aos pobres. Em alguns países, o sistema adotado foi o de possibilitar que advogados particulares cobrassem do Estado pelo atendimento a pessoas necessitadas em suas demandas individuais (França). Em outros, foram instituídos escritórios pagos pelo Estado para atenderem aos pobres, quer orientando sobre seus direitos, quer ajuizando processos individuais ou coletivos em seu favor (Estados Unidos). Outros ainda adotaram um sistema combinado, em que o hipossuficiente poderia optar entre o advogado particular e o advogado público (Suécia). No entanto, tal onda não resolveu integralmente o problema do acesso efetivo à Justiça, na medida em que a assistência judiciária estatal acarreta elevado custo para o Estado, a par de não conseguir solucionar adequadamente os litígios decorrentes de pequenas causas.

A segunda onda, mais do que de reforma, foi de uma verdadeira revolução no processo, de forma a abarcar os litígios de “direito público”, ou seja, proporcionar meios processuais para atender aos chamados interesses difusos, coletivos ou grupais. Para tanto foi necessário superar os cânones do processo civil limitados aos interesses individuais, promovendo o que se denominou de coletivização do processo, com admissão do representante grupal, sem citação de todos os envolvidos na demanda, e extensão da coisa julgada a quem não foi ouvido em juízo e não pode se defender individualmente.

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Foram introduzidas no processo civil ações de caráter coletivo, atribuindo-se a legitimidade ao Ministério Público para a defesa de tais interesses difusos e coletivos (Staatsanwalt alemão, Prokuratura soviética, Ombudsman do consumidor na Suécia, Attorney General americano). Como, no entanto, tal órgão se mostra incapaz de atender convenientemente a enorme demanda, tem-se ampliado a legitimidade ativa dessas ações coletivas, para abranger organismos e associações criadas especificamente para a defesa de tais interesses, de forma a suplementar a ação do governo. O maior problema, entretanto, enfrentado pela iniciativa privada nesse campo é o do elevado custo na formação e manutenção dessas associações. Na prática, acabam sendo os interesses trabalhistas os que melhor se organizam, por meio de sindicatos, para sua defesa coletiva, mais do que os dos consumidores ou ambientalistas.

Enquanto as duas ondas anteriores tiveram a preocupação maior com o problema da representação legal, não tendo sido suficientes para a solução do problema, a terceira onda poderia ser definida como a do enfoque do acesso à Justiça, na medida em que alberga uma série ampla de inovações no sistema judiciário, que propiciem a acessibilidade geral à Justiça:

a) novos mecanismos procedimentais que agilizem o processo;

b) mudança na estrutura dos tribunais, com criação de tribunais especializados, para atendimento das pequenas causas; e

c) adoção de métodos alternativos e preventivos de solução dos conflitos, como a mediação, a conciliação e a arbitragem.

Dessa variada gama de inovações surgidas no mundo inteiro em relação ao Processo, interessa-nos especialmente a que foi objeto da segunda onda, que não se limitou a uma proposta de reforma, mas representou uma mudança de modelo, que passa a admitir as ações coletivas em caráter amplo.

3. Papel do ministério público do trabalho

A velha imagem do Ministério Público estampada exclusivamente no promotor de justiça que defende a sociedade contra os criminosos, promovendo a ação penal para obter sua condenação, e limitando-se a atuar como órgão interveniente no processo civil, vem sendo mudada paulatinamente com o fenômeno da cole-tivização do processo, próprio das sociedades de massa do mundo moderno, que exigem uma defesa mais efetiva de seus interesses coletivos, não apenas de caráter penal, mas também patrimonial.

Na esteira das class action do direito americano (para defesa coletiva contra dano sofrido homogeneamente e pleiteando indenização), das representative actions do direito inglês (submetidas previamente ao General Attorney e com natureza declaratória de reconhecimento de dano causado a interesse dos consumidores), das actions d’intérêt publique do direito francês (ajuizadas pelo Ministério

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Público ou associações com sua autorização, para defesa do consumidor, buscando imposição de obrigação de fazer ou não fazer) e do odhasionprozess do direito alemão (para proteção do consumidor, com obrigação de fazer ou não fazer)2, o direito brasileiro começou a trilhar o caminho de atribuir ao Ministério Público também a função de órgão agente no campo do Direito Civil, para a defesa dos interesses da sociedade. Fê-lo inicialmente pela edição da Lei n. 6.938/1981, que previa a defesa dos interesses difusos da sociedade em matéria de meio ambiente pelo Ministério Público, em ação que lhe era conferida com legitimidade exclusiva.

Em 1984, o deputado FLÁVIO BIERRENBACH apresentava projeto de lei prevendo como instrumento de defesa ampla de interesses difusos e coletivos (incluindo patrimônio histórico e cultural) a ação civil pública3. A iniciativa vingou (ainda que o projeto finalmente aprovado fosse o substitutivo do Ministro da Justiça IBRAIM ABI-ACKEL), dando origem à Lei n. 7.347/1985, que regula a ação civil pública4. O inciso IV do art. 1º da lei previa, além das hipóteses especificamente elencadas, a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, o que dava amplitude ao instrumento. No entanto, o então Presidente JOSÉ SARNEY vetou o referido inciso. Foi preciso a promulgação da nova Constituição Federal (CF, art. 129, III) e a instituição do Código de Defesa do Consumidor (que restabeleceu a integridade do inciso vetado), para que a atuação do Ministério Público pudesse ser amplamente reconhecida na defesa dos interesses difusos e coletivos da sociedade na órbita civil.

A Constituição de 1988, ao realçar o papel do Ministério Público como pilar do Estado...

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