O Dissídio Coletivo

AutorIves Gandra Martins Filho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito Público pela UnB e Professor dos Cursos de Pós-Graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS)
Páginas66-80

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1. Dissídio individual e dissídio coletivo

A ação trabalhista, como instrumento de obtenção de uma prestação jurisdicional que ponha termo a um conflito de interesses na órbita laboral, possui dupla vertente, conforme a natureza do provimento ofertado pelo Estado-Juiz aos litigantes:

a) dissídio individual — em que o Judiciário Trabalhista aplica a lei ao caso concreto, dirimindo um conflito surgido entre um ou mais empregados e uma ou mais empresas (tutela de interesses individuais e concretos); e

b) dissídio coletivo — em que as Cortes Laborais solucionam os conflitos de toda uma categoria com o setor empresarial respectivo, criando normas e condições de trabalho não previstas em lei (tutela de interesses gerais e abstratos).

Assim, nos dissídios individuais se exercita propriamente jurisdição, ou seja, o poder de dizer do direito aplicável à espécie, sempre jungida ao princípio da legalidade, pelo qual não se pode impor obrigação senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II).

Já nos dissídios coletivos os Tribunais Trabalhistas exercitam poder normativo, isto é, poder de criar norma jurídica nova, de acordo com o princípio da discricionariedade, atendendo exclusivamente aos ditames da conveniência e oportunidade, desde que respeitados os limites mínimos e máximos previstos em lei (CF, art. 114, § 2º; CLT, art. 766).

Há, pois, uma diferença de natureza entre o processo individual e o coletivo, que não permite confundi-los, não obstante o polo ativo ou passivo de uma ação trabalhista esteja composto por todos os empregados de uma determinada empresa ou ramo produtivo: no processo coletivo os empregados são considerados abstratamente, como componentes de uma categoria, e não individualizadamente.

Nesse sentido, sob o prisma do provimento judicial que geram, temos que a sentença em dissídio individual plúrimo abrange todos e somente aqueles empre-

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gados que compuseram o polo ativo ou passivo da reclamatória, mesmo que já não estejam mais trabalhando na empresa ou ramo produtivo respectivo. A sentença coletiva, pela sua natureza de norma jurídica nova, abrange toda a categoria, incluindo aqueles que nela ingressarem após ser prolatada e excluindo os que deixaram de pertencer à categoria antes do término de sua vigência.

Portanto, o dissídio coletivo constitui uma ação trabalhista da categoria (em geral profissional contra a econômica), visando ao estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, como meio de se resolver o conflito coletivo entre o capital e o trabalho, por meio do exercício do poder normativo da Justiça do Trabalho (poder discricionário e legiferante, fundado na conveniência e oportunidade de alterar as normas laborais vigentes)1.

Seguindo nessa esteira, o TST, no processo RODC n. 95564/2003-900-02-00.6, da relatoria do Min. RÍDER NOGUEIRA DE BRITO (publicado no DJ de
13.8.04), deixou claro que pretensão de natureza individual plúrima, como seria aquela referente ao pagamento dos salários atrasados, não seria veiculável em dissídio coletivo, ainda que de greve, pois caberia aos lesados individualmente (ou ao sindicato como seu substituto processual) postular em reclamação trabalhista o cumprimento da obrigação contratual e legal.

Finalmente, registre-se que a ação de dissídio coletivo encontra-se regulada, atualmente, pelos arts. 856-875 da CLT e 219-223 do RITST (2008).

2. Natureza jurídica da ação coletiva

A natureza jurídica de uma ação se determina pela espécie de provimento jurisdicional que objetiva. Assim, pela teoria clássica das ações, temos basicamente 3 espécies de sentenças (excluídas a cautelar, de caráter provisório, e a executória, que supõe mais um constrangimento judicial sobre o devedor do que uma sentença) conformando 3 espécies de ações:

a) condenatórias — que conferem o poder de pedir a execução judicial, mediante a condenação do réu a determinada prestação;

b) constitutivas — que criam, modificam ou extinguem uma relação jurídica (eficácia ex nunc, desde a prolação da sentença); e

c) declaratórias — que afirmam (ou negam) a existência de uma relação jurídica (eficácia ex tunc, desde quando existente a relação jurídica reconhecida judicialmente).

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Ora, no processo individual do trabalho, a ação condenatória é a regra, uma vez que o empregado postula não apenas o reconhecimento de determinada relação jurídica (de emprego, de exercício de função comissionada etc.), mas os consectários econômicos da mesma, ou seja, as parcelas salariais decorrentes da relação jurídica existente, mas não reconhecida pelo empregador.

Tal fenômeno decorre em parte do caráter exacerbadamente tutelar que a legislação laboral adquiriu no Brasil, ainda mais com as vantagens adicionais outorgadas pela Carta Constitucional de 1988, elevando o montante geral de encargos sociais suportados pelas empresas.

Diante de tal quadro, a tendência patronal de não cumprir integralmente a legislação social como meio de preservar a competitividade e lucratividade leva ao aumento da demanda processual. E a pressão patronal sobre os que recorrem ao judiciário faz com que terminem por ajuizar reclamatórias apenas aqueles que já perderam o emprego, de forma a receberem as vantagens que a legislação lhes assegurava, mas que as empresas não pagaram.

Assim, o perfil atual da Justiça do Trabalho é o da Justiça do Desempregado, que busca a condenação do ex-patrão nos direitos sociais que deixou de observar.

Os meios que se vislumbram para alterar tal quadro são, basicamente, dois:
a) substituição processual ampla — na esteira do art. 8º, III, da Constituição Federal e Lei n. 8.073/1990, despersonalizando o reclamante (substituído pelo sindicato), de forma a evitar represálias ou discriminações patronais contra os empregados que ajuízam ações trabalhistas; e
b) prescrição a partir da rescisão contratual — na esteira do art. 197 do Código Civil, dada a relação de subordinação própria do contrato de trabalho, que impediria o curso da prescrição da ação durante a existência da relação de emprego, estimulando assim a empresa a cumprir a legislação laboral, dada a possibilidade do empregado postular todos os direitos relativos a todo o período que durou seu contrato de trabalho.

Vê-se, portanto, que os dissídios individuais costumam caracterizar-se como ações condenatórias, ainda que comportem excepcionalmente sentenças meramente declaratórias (de relação de emprego, de tempo de serviço, de qualificação profissional) ou constitutivas (anulação de transferência ilícita).

A ação coletiva, ao contrário, não tem caráter condenatório. Apenas excepcionalmente a sentença normativa poderá adquirir tal caráter quando, v. g., condenar a empresa ou categoria econômica, num dissídio de greve, a pagar, aos gre-vistas, os dias de paralisação ou, multa ao sindicato obreiro por não retornarem os empregados ao trabalho, ou ainda, em qualquer dissídio coletivo, no que concerne às custas processuais. Tais hipóteses nos parecem as únicas em que poderia ser exigível o depósito recursal em dissídio coletivo, de vez que apenas nesses casos haveria condenação em processo coletivo, servindo o depósito como garantia do pagamento dos salários dos dias de greve2.

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Em sentido contrário, no entanto, posicionou-se o TST ao editar a Instrução Normativa n. 3/1993, excluindo a exigência de depósito recursal para os dissídios coletivos.

Para verificar, pois, a natureza específica da ação coletiva deve-se atentar para o provimento jurisdicional que almeja. Ora, o dissídio coletivo visa a uma sentença normativa, ou seja, a uma decisão judicial que crie novas condições de trabalho, para a categoria. Nesse sentido, dentro dos moldes da teoria clássica, a ação coletiva seria uma ação constitutiva, de vez que cria ou modifica uma determinada relação jurídica.

Na realidade, a ação coletiva não cria relação jurídica; ela cria normas que modificam a relação jurídica existente entre a categoria profissional e a econômica de um determinado setor produtivo, estabelecendo novas condições de trabalho, que alteram a até então existente relação entre o capital e o trabalho.

Nesse sentido, a teoria do processo civil é insuficiente para demarcar a natureza própria da ação coletiva, uma vez que a ação constitutiva também se rege pelo princípio da legalidade, somente criando, modificando ou extinguindo determinada relação jurídica quando verificada a existência das condições previstas em lei para que a relação jurídica seja alterada.

Ora, se o dissídio coletivo inova na ordem jurídica, criando normas e condições de trabalho não previstas em lei, não é uma ação meramente constitutiva, mas uma ação dispositiva — espécie nova —, porque dispõe sobre uma determinada relação jurídica (de emprego), estabelecendo novas obrigações e direitos, como uma lei entre as partes3.

Portanto, a natureza jurídica da ação coletiva, que se assemelha à da ação constitutiva, é de natureza dispositiva, própria somente dela, uma vez que apenas a sentença normativa trabalhista tem a possibilidade de criar novas regras jurídicas para solucionar um determinado conflito de interesses trabalhistas.

Tem a sentença normativa natureza dispositiva, e o processo coletivo caráter inquisitório, na medida em que não sujeito aos limites do pedido. Em dissídio coletivo, não se pode falar em julgamento extra aut ultra petita, na medida em que não se coloca como requisito da petição inicial a formulação de pedido, mas apenas a referência aos “motivos do dissídio e às bases da conciliação’’ (CLT, art. 858, b). Nesse sentido, a orientação do próprio TST, verbis:

DISSÍDIO COLETIVO — LIMITES DA APRECIAÇÃO . No dissídio coletivo prevalece o...

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