Assédio moral e organizacional na perspectiva psicossocial: critérios obrigatórios e complementares

AutorLis Andrea Pereira Soboll
Páginas13-22

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Entendendo que é necessário um parâmetro para diagnóstico e reconhecimento do assédio moral no cotidiano de trabalho, este capítulo oferece um esquema explicativo breve para a compreensão desta problemática. O assédio moral, discutido no Brasil nestes termos desde 2000, apresenta um antigo problema estrutural em torno do seu conceito: não há consenso quanto aos seus critérios definidores. Esta falta de concordância não se restringe a divergência de opiniões para descrever uma mesma problemática, mas evidencia diferentes perspectivas ou abordagens na forma de entender, conceituar e intervir nestes casos. Este capítulo é dedicado a organizar estas diferenças de forma a esclarecer as abordagens percebidas no Brasil e então, posterirormente, destacar as características obrigatórias e complementares do assédio moral.

Vieira, Lima e Lima (2012), de forma ambiciosa, inauguraram no Brasil a discussão do assédio a partir de duas vertentes. Concordando com estes autores, é possível identificar duas abordagens do assédio moral: uma tradicional (da vítima-agressor) e outra psicossocial1.

A abordagem tradicional ou a perspectiva da vítima-agressor tende a explicar e a buscar soluções para o assédio moral no âmbito psíquico e individual. Encontramos como principal referência a psiquiatra fran-cesa Marie France Hirigoyen, vitimóloga, que localiza o assédio moral como um problema entre uma vítima e um agressor claramente definidos, sempre intencional, decorrente de conflitos de personalidades ou perfis individuais, sendo o trabalho apenas o espaço no qual este conflito se evidencia. O assédio moral é considerado um problema antiético, relacionado a uma falta moral, avaliado a partir do que é aceitável ou não em sociedade.

Nesta perspectiva, os estudos abordam o perfil psicológico da vítima e do agressor, as fases do assédio moral, os comportamentos típicos e as repercussões na saúde. Esta teoria foi elaborada a partir do atendimento das vítimas, restringindo-se a um olhar voltado para o sujeito individual hostilizado. A denúncia e a judicialização são apontadas como principais formas de enfrentamento, além dos tratamentos psicológicos e psiquiátricos individuais.

A abordagem psicossocial, por sua vez, entende que o assédio moral tem origem na forma de organização do trabalho e da sociedade, associado a fatores individuais e relacionais. Fundamentada na sociologia crítica do trabalho e nas teorias clínicas do trabalho (Bendassolli e Soboll, 2011), entende-se que o assédio moral pode acontecer de forma pessoalizada ou, ainda, a violência pode ser expressa por meios institucionalizados, a exemplo de políticas e práticas organizacionais. As pesquisas, na perspectiva psicossocial, centram a análise dos elementos do trabalho e da sociedade que solicitam, favorecem ou permitem as práticas de assédio moral, as quais são decorrentes da articulação de fatores de ordem individual, grupal, organizacional e social. Além disso, os estudos evidenciam a importância de transcender a análise individual e a perspectiva vítima-agressor.

Entende-se na abordagem psicossocial que o assédio moral não é um problema individual, mas uma situação de conjunto orquestrada pela organização do trabalho, que define os limites das interações humanas neste contexto. Fatores individuais, grupais e da socie-dade também interferem nos processos de assédio moral. Entretanto, as pessoas serão agressivas ou colaborativas na medida em que sua personalidade encontrar

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espaços de expressão nos limites e na estrutura dados pela organização (Soboll, 2008).

De qualquer forma, em todo caso de assédio moral (interpessoal ou organizacional) a organização é responsável, uma vez que se trata de um problema processual, continuado e que depende de conivência administrativa para sua perpetuação. E, mais do que isso, verificou-se que o assédio moral muitas vezes é estimulado e solicitado pela maneira como o trabalho está organizado (Soboll, 2006; Soboll, 2008; Soboll e Gosdal, 2009). Devido ao seu modo de funcionar a organização pode pôr em ação formas de gerenciamento que favorecem o assédio moral e que suscitam nos trabalhadores comportamentos perversos, agressivos, de exclusão e de ostracismo (Gaulejac, 2007). Portanto, qualquer análise ou proposta de intervenção na perspectiva psicossocial deve necessariamente envolver a forma de organização do trabalho, incluindo as políticas de gestão de pessoas.

Os estudos do assédio moral na perspectiva psicossocial foram iniciados no Brasil em 2006, e surgiram a partir do mapeamento da tipologia do assédio organizacional. Apenas dez anos depois, com certo amadurecimento das diversas compreensões, é possível delimitar e nomear com mais clareza as duas abordagens. Destacam-se no contexto brasileiro as autoras Adriane Reis de Araújo e Thereza Cristina Gosdal, ambas atuantes no âmbito do Direito, que muito contribuem para que o assédio moral seja tratado no Brasil para além da perspectiva de vítimas e agressores. Nos identificamos também a esta abordagem, com produções desde 2006.

Tendo como referência a abordagem psicossocial, este texto apresenta um panorama básico de compreensão dos critérios obrigatórios e complementares do assédio moral. Não se pretende aqui fazer um apanhado histórico ou uma revisão bibliográfica extensa2, mas apenas apresentar, de forma direta, os indicadores de realidade presentes nos casos de assédio moral, abor-dando posterioremente esclarecimentos específicos a respeito do assédio organizacional.

Características obrigatórias: atos hostis e ofensa à dignidade

São características obrigatórias para uma adequada identificação de casos assédio moral: elemento objetivo e elemento subjetivo.
1. Elemento objetivo: atos hostis insistentes
O assédio moral se caracteriza por um conjunto de atos ou comportamentos hostis, concretizados por ação ou omissão, que ocorrem de forma insistente, repetitiva e prolongada.3 Pode aparecer por meios evidentes ou sutis, expresso em palavras, gestos, mensagens escritas ou procedimentos gerenciais ou organizacionais. Alguns dos comportamentos típicos de assédio moral incluem alterações no padrão comunicacional, na situação ocupacional, nas condições de trabalho, ataques à reputação pessoal. Outros tipos de violência (verbal, física ou sexual), por vezes, aparecem articuladas com o assédio moral, especialmente em casos muito prolongados4.

  1. Elemento subjetivo: ofensa à dignidade humana e outros danos

As hostilizações insistentes e crônicas, presentes no assédio moral, mobilizam a vivência de ser humilhado, constrangido, prejudicado ou ter sua dignidade ofendida. Os prejuízos podem ser referentes às alterações na saúde, à degradação das condições de trabalho ou ainda aos danos de imagem e à ofensa à dignidade.

Vale destacar que na análise das situações nem todo relato de humilhação ou com a assinatura de assédio moral corresponde a uma prática real de violência. Da mesma forma, é possível existir uma situação de violência e esta não ser assim reconhecida (até mesmo por alvos ou testemunhas), tendo em vista os processos de gestão afetiva e controle da subjetividade em vigor no

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contexto corrente das organizações, que alteram a percepção e ampliam a tolerância em relação aos abusos no trabalho (Soboll e Horst, 2015). Essencial, portanto, analisar cada caso em suas especificidades, mapeando os indicadores subjetivos e objetivos, numa perspectiva histórica e contextualizada, e não apenas do momento da avaliação ou de um comportamento específico hostil.

Para evitar equívocos neste sentido, é imprescindível a realização do diagnóstico a partir de descrição detalhada das diversas ocorrências hostis, mapeadas no modelo de um filme (historicamente contextualizado) e não no modelo de uma foto (pontual, sem historici-dade) (Soboll, 2008). Não importa apenas verificar a dimensão subjetiva, que geralmente domina os relatos de assédio (ex.: eu fui humilhado..., me senti desprezado...). É muito relevante a descrição das situações cotidianas concretas e contextualizadas, com detalhes do tipo data, pessoas envolvidas, testemunhas, reação dos presentes, descrição dos atos hostis, sintomas físicos e psíquicos, situações que antecederam e sucederam os atos hostis, tratamento dispensado aos demais presentes, entre outros aspectos (Soboll e Horst, 2015).

A partir destas considerações iniciais, pode-se sistematizar o conceito de assédio moral como um processo que se evidencia nas relações no trabalho, caracterizado por um conjunto de atos hostis, que ocorre de forma crônica, continuada e repetitiva, os quais atingem a dignidade, ofendem ou prejudicam aqueles que são alvo das hostilizações. Este conceito, nos contornos aqui apresentados, é capaz de representar dois tipos de assédio: assédio moral interpessoal e assédio moral organizacional.

Assédio interpessoal e assédio organizacional

O assédio organizacional contempla situações continuadas nas quais a violência, sutil ou explícita, é usada nas políticas e nas práticas organizacionais e gerenciais ou ainda decorrente destas. Este tipo de assédio geralmente aparece com estratégias de gestão abusivas, as quais evidenciam a formulação de procedimentos e políticas organizacionais e não necessariamente a simples existência de um agressor personalizado, embora este geralmente se faça identificável. Portanto, em essência, o assédio organizacional se configura como um abuso do poder diretivo do empregador (Araújo, 2006).

No assédio organizacional o alvo é generalizado e atinge diretamente a maioria ou toda a equipe de trabalho ou um grupo com perfil definido (ex.: os adoecidos, aqueles que não atingem as metas ou os questionadores). Um exemplo típico de assédio moral organizacio-nal é identificado no uso do ranking...

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