O entendimento do assédio moral e organizacional na justiça do trabalho

AutorThereza Cristina Gosdal
Páginas23-32

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I Introdução

Desde os primórdios das sociedades humanas havia preocupação com a proteção social diante dos infortúnios. Mas a atenção da Medicina somente se voltou para o ambiente relacional do trabalho e os efeitos que propicia na saúde mental dos trabalhadores a partir do último terço do século XX. 1

O Estado é responsável pelo estabelecimento de normas de segurança, higiene e medicina do trabalho e pela fiscalização do seu cumprimento. Também é responsável pela vedação de condutas abusivas e prejudiciais à saúde dos trabalhadores, por meio do legislador e do arcabouço jurídico laboral vigente.

Além da Constituição Federal, esse arcabouço legal é composto de diversas normas infraconstitucionais e das NRs, que são as normas regulamentadoras editadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, tratando do meio ambiente e das condições de trabalho, inclusive com disposições que dizem respeito à saúde mental no trabalho. Não se pode descurar também do papel da jurisprudência no tratamento jurídico do assédio moral constituída pelas decisões reiteradas dos tribunais.

Não obstante, na prática, o que se observa é um elevado índice de descumprimento destas normas, seja em razão de uma cultura não democrática das relações de trabalho, seja porque as multas aplicadas pela fiscalização do trabalho são, em muitos casos, menos significativas que os investimentos necessários à implementação de medidas coletivas para sanear o ambiente do trabalho, inclusive quando se está em face do meio ambiente psicológico do trabalho, que muitas vezes apresenta más condições exatamente para que se intensifique o trabalho, o que potencializa o lucro, ou para que se alcancem metas estabelecidas pelo empregador quanto à produtividade e lucratividade do empreendimento.

Além destes aspectos, a resposta do Judiciário às situações trazidas a sua apreciação nem sempre é a que espera o trabalhador assediado. Há para o trabalhador a dificuldade de provar o assédio em juízo, especialmente em razão da resistência dos colegas, ou ex-colegas de trabalho, de prestar depoimento como testemunhas, principalmente se ainda estiverem na empresa. E mesmo quando a vítima consegue demonstrar em juízo o assédio sofrido, a condenação ocorre muitas vezes em valores muito baixos, de R$ 5.000,00 ou R$ 10.000,00.

O empregador tem obrigação de oferecer ao empregado um ambiente de trabalho saudável, isento de agressões psicológicas. Ele assume os riscos do empreendimento, na medida em que se apropria do produto do trabalho, mediante pagamento de salário, além de ter reconhecido o poder diretivo, que será analisado na sequência, porque o assédio moral está ligado ao abuso deste poder.

II Poder diretivo do empregador

Na relação de emprego a força de trabalho que compõe o trabalho, objeto do contrato, é indissociável do sujeito que trabalha, com sua subjetividade. Como se trata de relação contratual em que há subordinação e cuja execução se protrai no tempo, ele é propício a situações de abuso desse poder.

A empresa é uma organização coletiva complexa, em que os atos dos empregados muitas vezes precisam ser sincronizados, ou serem cumpridos de modo consertado, para que os objetivos do empreendimento se-

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jam alcançados. O empregador controla e fiscaliza esse encadeamento, tornando-se a subordinação indispensável para a atividade produtiva. Por esse motivo, a determinação do conteúdo concreto material da atividade do trabalhador decorre de escolhas, ordens e instruções do empregador. E essa convenção da atividade se efetiva em termos genéricos, porque o contrato de atividade importa uma relação dinâmica, que se modifica à medida em que é executado, para se conformar às mudanças do mercado, às novas tecnologias e maquinários, às novas disposições legais, e outros fatores.

Como a relação de emprego relacionada ao contrato de trabalho ocorre entre desiguais, no dizer de Aldacy Rachid Coutinho2, o poder na relação de emprego está intrinsecamente ligado à estrutura da empresa capitalista, de propriedade privada, que objetiva o lucro como remuneração do capital. Convém observar que mesmo nas situações em que atividade está organizada sem o objetivo de lucro, como numa instituição filantrópica, está presente o poder diretivo.

E no modelo capitalista em que se está, não há como superar a empresa ou o empreendimento como espaço de poder. Porém é possível almejarmos uma prática que seja mais democrática e observe direitos fundamentais dos empregados, “... que leve em conta que em relação de poder todo trabalhador é um cidadão, uma pessoa, um sujeito de direitos realizáveis e oponíveis e não só uma força de trabalho inserida atividade produtiva, coisificada”3.

O poder é relacional, ele se estabelece, no âmbito da relação de emprego, na relação entre empregado e empregador. Max Weber diz que poder é “a oportunidade existente dentro de uma relação social que permite a alguém impor a sua própria vontade, mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual esta oportunidade se fundamenta.”4 Para o autor o poder não nasce do contrato, mas da relação. O contrato de trabalho está ligado à relação de emprego. Então não temos apenas um contrato, mas também uma relação, na qual se exerce poder. Ele não é apenas jurídico, é coletivo e social. E onde há poder há possibilidade de abuso de direito.

Em uma conjuntura econômica, política e social, em que a empresa e sua permanência assumem importância central no ideário vigente, com fenômenos como a globalização e o desenvolvimento acentuado de novas tecnologias e dos meios de comunicação, que tornou imediata em relação aos fatos, situações de crises econômicas e a realidade do desemprego, o assédio moral ganha expressão e torna-se prática corriqueira nas relações de trabalho, sempre vinculado ao exercício do poder diretivo do empregador, ainda que por sua omissão, como ocorre nas situações de assédio moral horizontal, entre pessoas de mesma hierarquia.

Para a Professora Aldacy o poder diretivo materializa a subordinação, “(...) traduzindo-se na indicação e detalhamento das modalidades técnicas de execução da obrigação principal de prestar trabalho em face da existência de um contrato de trabalho.(...) Constituir uma relação jurídica de emprego é, assim, criar um espaço de poder de direção e um correspondente estado de sujeição garantidos pelo direito no âmbito da empresa.”5 Ele se manifesta na própria organização do empreendimento e na fixação do conteúdo do contrato de trabalho, assim como no controle do trabalho e na fiscalização da realização das tarefas, além da possibili-dade de imposição de sanções disciplinares.

O empregador organiza o empreendimento, determinando a estrutura técnica e econômica da empresa, distribuindo cargos e tarefas. Ele estabelece o conteúdo das tarefas e o modo como devem ser realizadas. Ainda fixa regras gerais que devem ser observadas no âmbito da empresa, ou do estabelecimento, por meio de regulamentos de empresa, ordens de serviço, instruções, ordens e orientações. Em grandes empresas, isso se manifesta de modo mais amplo, em “códigos de ética”, que podem representar um avanço na prevenção e combate ao assédio moral, significando uma preocupação maior do empregador com valores socialmente relevantes no ambiente de trabalho, mas também podem representar apenas a busca pela adesão dos empregados a valores relevantes para a empresa, ligados a seus interesses comerciais, como “vestir a camisa da empresa”. E uma forma de esvaziamento do combate efetivo ao assédio moral, com a desqualificação de denúncias e busca de mecanismos destinados a dissimular ou enfraquecer as potenciais provas de tais práticas. O poder regulamentar tem sido em muitos casos a possibilidade de imposição de uniformidade e punição de dissidências.

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No que tange à fiscalização e ao controle da atividade dos empregados, esta dimensão do poder diretivo tem sofrido transformações com as novas tecnologias e em especial, com os meios telemáticos, mas continua presente.

É possível saber se o empregado está efetivamente trabalhando em tempo real, não importa onde esteja, se concluiu um serviço, se fez uma venda, se atendeu um cliente. É possível localizá-lo, verificar o número de falhas que cometeu, se estava conectado, quanto tempo ficou silente, quanto tempo levou para produzir aquele resultado, enfim, hoje existe a possibilidade de telessubordinação e de um controle muito maior que aquele praticado pelos tradicionais chefes e encarregados no contato direto com o empregado. Como o trabalhador nunca sabe se está sendo fiscalizado e por quem, ele mesmo se torna fiscal de seu trabalho, impondo-se a maximização da intensidade de seu trabalho.

Por fim, o poder diretivo compreende o poder punitivo. É o poder de impor sanções disciplinares aos empregados. As possibilidades de aplicação de sanções são amplas e a lei não as disciplina integralmente. Da mesma forma é ampla a discricionariedade reconhecida ao empregador na avaliação do descumprimento das obrigações trabalhistas pelo empregado. Sequer se exige que seja observado o contraditório e seja permitido o exercício de direito de defesa pelo empregado, a não ser que haja um regulamento de empresa nesse sentido, ou que a norma coletiva assim determine. O que somente excepcionalmente ocorre.

Analisados brevemente os poderes que juridicamente se reconhecem ao empregador, é possível abordar uma das formas de abuso desse poder, que é o assédio.

III Assédio moral interpessoal / organizacional e a resposta do jucidiário trabalhista

As modificações na organização da produção têm se efetivado, de modo mais intenso a partir da década de 90, com o surgimento de novos setores de produção, novas formas de oferecimento de serviços, novos...

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