A atuação das ouvidorias no tratamento de denúncias de assédio moral: a experiência da Petrobras

AutorNilson Perissé
Páginas77-85

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“Cabe a nós, em uma pólis desencantada, gerir o mal-estar (...) por meio da trabalhosa tessitura de laços sociais” (Joel Birman, Psicanálise e formas de subjetivação contemporâneas)

Introdução

A luta pela defesa dos direitos humanos no trabalho e, nesse contexto, o combate ao assédio moral, fazem parte de uma longa história na qual se destacam iniciativas importantes como as convenções da Organização Internacional do Trabalho e a própria mobilização dos trabalhadores em associações ou sindicatos.
Mais recentemente, alguns dispositivos, criados por iniciativa das próprias organizações, surgem no viés da cidadania empresarial e da responsabilidade social corporativa, entre eles as ouvidorias. Entretanto, o que deveria ser acolhido com entusiasmo, ainda é visto por muitos com reservas ou na forma de um estranhamento. Afinal, ao mesmo tempo em que se verifica um esforço das instituições no sentido de ostentar o título de “melhor empresa para trabalhar”, a flexibilização da organização do trabalho, fenômeno de abrangência mundial, reduz direitos sociais, fragmenta a classe trabalhadora, atua com políticas de redução de pessoal e conduz à precarização. A considerar as reflexões do psicanalista francês Jacques Lacan, todo discurso é uma forma de enganar e evitar o real, o que o faz crer que não há discurso que não seja semblante, simples aparência de algo que parece ser, mas não é. Isso implica em perguntar se, considerando a ascensão do capitalismo de consumo e de um ritmo de produção muitas vezes desumano e que reproduz, constantemente, a barbárie nas relações de trabalho, as ouvidorias de empresa restringem-se a ocupar um papel de minimizar danos e assim sustentar a aparência de empresa cidadã tão desejada pelos empresários ou se podem, efetivamente, trazer contribuições para a melhoria nas relações no trabalho. Mais especificamente, este capítulo pretende discutir: é possível identificar as ouvidorias como um dispositivo que contribua para a prevenção, detecção e responsabilização no que diz respeito ao assédio moral no trabalho? Um recorte ilustrativo com a experiência de uma ouvidoria de empresa brasileira de grande porte ajuda a trazer elementos para a análise dessa questão.

Instâncias de defesa de direitos humanos ou de combate aos excessos?

São chamadas de Ouvidorias internas aquelas que fazem a escuta da força de trabalho de uma instituição ou organização – empregados, prestadores de serviços, estagiários. Segundo Vera Giangrande, lendária ouvi-dora do Grupo Pão de Açúcar, cabem às ouvidorias internas, além de cuidar do cumprimento do código de ética da empresa, ouvir e encaminhar para solução todo e qualquer problema levantado pelos colaboradores da empresa quanto ao tratamento que recebem de seus superiores, subordinados e pares. O cargo cobra a efetiva prática das políticas de administração de recursos humanos, assim como as infrações praticadas pelos colegas de trabalho quanto ao cumprimento do regulamento interno da organização (GIANGRANDE, 2001, p. 37).

Tal mandato implica no que o psicanalista e psiquiatra francês Christophe Dejours (2008) chamaria de escuta arriscada, cujos riscos incluem, por exemplo, a falta de garantia de que o sofrimento relatado pelo trabalhador terá impacto e irá gerar mudanças em organizações de trabalho voltadas exclusivamente para seus próprios resultados. Afinal, embora se coloque formalmente contra qualquer violação aos direitos humanos, a lógica de gestão da contemporaneidade não raro estimula comportamentos de guerra, fomenta o individualismo, exerce pesadas pressões e muitas vezes leva o sujeito à exaustão ou a conflitos severos em suas interações no trabalho. Atuar de forma eficaz muitas vezes exigiria questionar essa estratégia de gestão em sua essência, ao invés de focar nos efeitos que se

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expressam na forma de incivilidade ou ruptura de laços. Essa abordagem, porém, nem sempre é possível, trazendo constantemente à tona o paradoxo das organizações, que buscam uma atuação cidadã em regime de convivência com uma política de gestão de recursos humanos muitas vezes predatória e sustentada prioritariamente no lucro. Esse paradoxo pode ser sintetizado pela figura apresentada a seguir:

Figura 1: A gestão contemporânea e o uso dos Códigos de Ética e Ouvidorias Internas

A ilustração mostra que a gestão contemporânea é caracterizada por um processo contínuo de intensificação da produção que impõe um ritmo de trabalho penoso; por uma lógica de fazer mais com menos, suportada por redução de custos e enxugamento de pessoal; por processos motivacionais de linha behaviorista à base do estímulo-resposta, condicionando prêmios, bônus e ganhos monetários a empregados que se destacam e sobressaem sobre os colegas; por contratos de trabalho frágeis, com flexibilização de horários de trabalho e de remuneração, fragmentados em modalidades precárias, entre as quais a terceirização. Todas essas características de gestão não acontecem sem prejuízos ao trabalhador. O excesso do trabalho leva à sobrecarga, os dispositivos de competição entre pares desestruturam os laços sociais e reduzem as solidariedades. O risco do desem-prego aumenta o medo, favorece à servidão, estabelece a conivência com as injustiças e o consentimento com o sofrimento do outro. Não raro essa ambiência exacerba tensões e explode em violência. Esta, por sua vez, pode atentar contra a produção, o que não interessa à gestão. As ouvidorias, de modo geral, atuam sobre esses excessos incômodos para a organização do trabalho, seja uma violência física, psicológica, ou atos extremos como o assédio moral. Assim fazendo, contribuem para a eliminação da expressão de conflitos, mas tem pouco poder ou legitimidade para discutir a causa (a gestão) ao invés dos efeitos (as violências e o desrespeito aos direitos humanos).

Essa linha de raciocínio encontra respaldo em autores críticos como Pagès, Bonetti, Gaulejac e Descendre, autores de O Poder das Organizações (2006), que

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identificam um componente ideológico e manipulativo na iniciativa das empresas em criar mecanismos de mediação de conflitos. Segundo eles, a organização antecipa-se aos conflitos, absorve e transforma as contradições antes que estas resultem em conflitos coletivos. Quem diz mediação, diz antecipação dos conflitos. (...)
Este (o conflito) é negado, abolido e apagado da linguagem da organização. (...) Todas estas políticas positivas da empresa, políticas de pessoal, políticas financeiras, comerciais, podem e devem, a nosso ver, ser interpretadas como respostas antecipadas aos conflitos. Elas visam reger a conduta dos trabalhadores, dos clientes e de todos os grupos sociais com os quais a empresa tem relações, de maneira a evitar que estes se agrupem e entrem em conflito com as finalidades da organização (PAGÈS; BONETTI, GAULEJAC; DESCENDRE: 2006, p. 34)

Esses autores, ao comentar sobre as artimanhas do mundo do trabalho, alertam para o fato de que “o poder de seus dirigentes e de seu quadro gerencial e técnico reside na capacidade de inventar ‘soluções’ mediadoras para as contradições sociais” (pág. 14). Nesse jogo de “contradições controladas”, a vida organizacional se perpetua e o tamponamento dos problemas adia para futuros improváveis os incômodos do presente.
Eles também chamam atenção para o fato de ser comum que a empresa conduza os problemas de forma a transformar as contradições coletivas em contradições individuais, pois, “vividas isoladamente pelo indivíduo, ela (a empresa) transforma, como dizia Marx, a infelicidade pública em infelicidade privada” (pág. 30). O risco implicado aqui é o de que o instituto ouvidoria, na busca por soluções individuais nas empresas, atue a serviço de “barrar uma contradição” e desestimule a capacidade transformadora da mobilização coletiva. Se assim for, as ouvidorias deveriam cuidar-se para não atuar de forma a cristalizar uma contradição, ao invés de transformá-la.

Há, entretanto, outras formas de apreciar a questão. As ouvidorias de empresa, que vêm gradualmente ocupando um lugar legitimado para a escuta de reclamações e denúncias envolvendo conflitos nas relações de trabalho, podem ser compreendidas como integrantes de uma lógica oposta à apresentada até agora – como uma decorrência natural dos avanços produzidos pelos movimentos sociais, pelo fortalecimento da democracia participativa e da sociedade civil, assim como pela crescente...

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