O ativismo judicial e a tutela jurídica do direito de adoção por casais homoafetivos

AutorCelso Gustavo Lima, Otavio Luiz Garcia Salles de Carvalho
Páginas135-146
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
134
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O ATIVISMO JUDICIAL E A TUTELA
JURÍDICA DO DIREITO DE ADOÇÃO
POR CASAIS HOMOAFETIVOS
Celso Gustavo Lima1
Otavio Luiz Garcia Salles de Carvalho2
RESUMO: O presente trabalho estudará a temática da adoção por casais homoafeti-
vos, sob a ótica dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito insti-
tuído em nosso país. Buscar-se-á uma análise interdisciplinar do tema, considerando
a legislação brasileira, a jurisprudência e doutrina que versam a respeito deste assunto,
de modo a se constatar que não existem óbices legais que impedem a possibilidade
da adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo, sendo que sua proibição
claramente traduzir-se-ia em direta e frontal violação de princípios e direitos funda-
mentais consagrados em nossa atual Constituição Federal.
Palavras-chave: Adoção. Casais homoafetivos. Estatuto da Criança e do Adolescente.
ABSTRACT : is paper will examine the issue of adoption by homosexual cou-
ples, from the perspective of the guiding principles of the democratic rule of law
established in our country. Search-there will be a subject of interdisciplinary analysis
considering the Brazilian legislation, jurisprudence and doctrine that deal with this
matter, in order to verify that there are no legal obstacles that prevent the possibility
of adoption by couples formed by persons of the same sex, and its prohibition clearly
translate it would in direct and agrant violation of fundamental principles and rights
enshrined in our Federal Constitution.
Keywords: Adoption. Homosexual couples. Child and Adolescent Statute.
1. Introdução
A sociedade brasileira evoluiu consideravelmente nas últimas décadas - tanto
é que a Constituição da República Federativa do Brasil traz em seu bojo um rol de
direitos fundamentais, instituídas como cláusulas pétreas, além uma gama de prin-
cípios que transferem tanto ao poder público quanto à sociedade a garantia de uma
vida digna a todos os indivíduos que estiverem sob o manto da jurisdição brasileira.
Ocorre que, quando se trata de direitos da população LGBTI3, a sociedade
civil tem certo receio das consequências vindouras. Por grande inuência da igreja
¹ Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso, e-mail: celso_iami@
hotmail.com.
² Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso, e-mail: otaviogcarvalho@
gmail.com.
³ Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e interssexuais.
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136
e tendo em vista nossa população ser extremamente conservadora, durante muito
tempo, essa comunidade foi considerada como abominação e muitos, infelizmente,
ainda pensam dessa forma.
Não fugindo a regra, a adoção por casais homoafetivos também é muito
discutida e encontra forte resistência tanto no meio jurídico quanto no meio social.
Além do preconceito, há um medo exacerbado de que devido à convivência com pais
homossexuais o infante também se torne homossexual, ou que este desenvolva pro-
blemas psicológicos ou desvios de personalidade. Contudo, até hoje, não existiu um
estudo que provasse tais alegações, sendo que, na contramão de tais argumentos, Dias
(2000, p. 100) se posiciona de forma clara:
(...) não há como prevalecer o mito de que a homossexuali-
dade dos genitores é geradora de patologias, eis não ter sido
constatado qualquer efeito danoso para o desenvolvimento
moral ou a estabilidade emocional da criança conviver com
pais do mesmo sexo.
Da mesma forma, Silva Junior (2011, p.130) desmistica a questão da ten-
dência que lhos de pais homossexuais teriam à homossexualidade, senão vejamos:
(...) a orientação sexual dos pais, de per si, não é suciente
para determinar, plenamente, a estrutura de desejo dos l-
hos naturais ou socioafetivos. Pensar dessa forma seria lim-
itar, por demais, a compreensão da dinâmica cambiante da
sexualidade, da identidade sexual e dos papéis de gênero.
Diante disso e, com a omissão do Poder Legislativo, o Poder Judiciário vem
sendo instado a todo tempo a se manifestar sobre os direitos dessa comunidade que a
muito sofre as arbitrariedades de uma sociedade conservadora e de maioria religiosa.
O presente artigo tem o condão de analisar como vem se dando a tutela
jurídica do direito de adoção aos casais formados por pessoas do mesmo sexo, numa
posição ativista do Poder Judiciário que, apesar de muito criticada por parte dos teó-
ricos, tem garantido a máxima efetividade de uma série de princípios incrustados na
Carta Magna de 1988, tais como o princípio da igualdade, da dignidade da pessoa
humana e do melhor interesse da criança e do adolescente.

A temática gera críticas e aplausos entre os operadores do direito. Apesar de
não ser um fenômeno novo e nem característico apenas da jurisdição brasileira, ainda
há muitas incógnitas a respeito do limite da posição ativa do Poder Judiciário.
Tem-se de um lado, a questão da tripartição dos poderes, modelo de governo
que impera em nosso país, em que cada poder possui função especíca denida pela
Constituição. A invasão de tais atribuições criaria uma assimetria entre eles, fator
extremamente delicado.
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
137
Por outro lado, existem questões de ampla repercussão social e política que
precisam de solução e padecem pela demora do poder público, especialmente do
Poder Legislativo, como é o caso dos direitos LGBTI. O Congresso Nacional, que
tem a atribuição de legislar, e que deveria regular os direitos desse grupo, sempre se
mantém omisso, todavia, os problemas ocorrem, as dúvidas surgem e, nesse contexto,
o Judiciário é obrigado a decidir.
O Poder Judiciário é instado a se manifestar e não pode deixar de analisar as
questões trazidas a julgamento, apenas pelo fato de não existir lei a respeito dos temas
discutidos. Neste caso, conforme preceitua a própria Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro em seu art. 4º: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Poderá ainda exercer
função atípica, com o intuito de efetivar comandos constitucionais que promovam a
efetivação de direitos fundamentais.
Nesta senda, Barroso (2008, p. 06) entende o ativismo judicial da seguinte
forma:
(...) Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um
modo especíco e proativo de interpretar a Constituição,
expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se in-
stala em situações de retração do Poder Legislativo, de um
certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil,
impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de ma-
neira efetiva.
A ideia de ativismo judicial está associada a uma partici-
pação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização
dos valores e ns constitucionais, com maior interferência
no espaço de atuação dos outros dois Poderes.(...)
Desta forma, é plenamente possível que, na ausência de norma regulamen-
tadora, haja uma aplicação imediata e direta da Constituição a situações que não es-
tejam contidas nesta de forma expressa, principalmente quando tais omissões ferirem
direitos fundamentais e princípios previstos na Lei Maior. Estes últimos que, segundo
o entendimento de Alexy (2011, p. 91) “são normas que ordenam que algo seja realiza-
do na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Assim,
os princípios são mandamentos de otimização. (...)”
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A Carta Magna de 88 (art. 227, caput) e, posteriormente, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (artigos 4º, caput, e 5º) primaram por atender ao princípio
do melhor interesse do infante quando a temática em questão é a adoção, garantindo
a este, direitos fundamentais a uma vida digna, repleta de afeto. Segundo Venosa
(2005, p. 298):
Sua utilidade [do princípio do melhor interesse da criança
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
138
e do adolescente], com relação ao menor, carente ou em
estado de abandono, é “inafastável”, sendo do interesse do
Estado que se insira em um ambiente familiar homogêneo
e afetivo. Sua utilidade, mormente para casais sem lhos,
é ressaltada. O enfoque da adoção moderna terá em vista,
contudo, a pessoa e o bem-estar do adotado, antes do inter-
esse dos adotantes.
Manter o menor longe do convívio familiar havendo a possibilidade real
de adoção só trará prejuízo a este, além de ferir de morte o referido princípio. Silva
Júnior (2006a, p. 86) trata da adoção como “vínculo legal que cria, à semelhança da
liação consanguínea, um parentesco, pelo valor de afeto”.
Já Dias ( p. 21) assim se posiciona sobre o assunto:
(...) Vetar a possibilidade de juridicizar a realidade só traz
prejuízo ao lho, que não terá qualquer direito com relação
a quem exerce o poder familiar, isto é, desempenha a função
de pai ou de mãe. Presentes todos os requisitos para o recon-
hecimento de uma liação socioafetiva, negar sua presença
é deixar a realidade ser encoberta pelo véu do preconceito.
Atualmente, um dos grandes problemas enfrentados pelo Brasil é o grande
número de crianças abandonadas em abrigos. São milhares de menores que estão lon-
ge do seio familiar, que crescem sem o carinho e afeto dos pais, sejam eles biológicos
ou adotivos.
As estatísticas a respeito de crianças órfãs são preocupantes.
Segundo dados apresentados pelo Conselho Nacional de
Justiça4, existem cerca de 6.592 (seis mil, quinhentos e
noventa e duas) crianças e adolescentes aptos à adoção em
território nacional.
E o número de crianças em abrigos tem aumentado. Conforme pesquisas
trazidas pelo site do Senado Federal5, haviam 44 (quarenta e quatro) mil crianças
vivendo em abrigos no ano de 2013. Compete destacar que, no ano de 2012, este
número era de apenas 37 (trinta e sete) mil, ou seja, em apenas um ano, houve um
aumento considerável no número de crianças abandonadas, o que torna evidente o
problema ora ressaltado.
Isso posto, em contrapartida, temos inúmeros casais que sonham em adotar
um lho, sendo muitos casais homoafetivos, que ainda encontram barreiras sociais e
Cai número de pretendentes à adoção que só querem crianças brancas. Disponível em
cnj.jus.br/noticias/cnj/82321-cai-numero-de-pretendentes-a-adocao-que-so-querem-criancas-brancas>.
Acesso em 15 out. 2016.
Realidade brasileira sobre adoção: A diferença entre o perl desejado pelos pais adotantes e as crianças
disponíveis para serem adotadas. Disponível em .br/noticias/Jornal/emdiscussao/
adocao/realidade-brasileira-sobre-adocao.aspx>. Acesso em 10 out. 2016.
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
139
as vezes jurídicas, devido à forte presença de ideias e pensamentos retrógrados que aos
poucos vem sendo desconstruídos.
Apesar da adoção por casais do mesmo sexo ser um tema polêmico no Brasil,
segundo Farias (2009, p. 84) não há nenhum impedimento para que uma pessoa ho-
mossexual adote uma criança, considerando-se exclusivamente sua orientação sexual.
Há a crença popular no Brasil de que as relações homoafetivas seriam pro-
míscuas e, em decorrência disso, pouco duradouras, impossibilitando um ambiente
adequado para o bom convívio do infante. Porém Farias (2009a, p. 87) apresenta um
estudo que contraria diretamente essa linha de pensamento, senão vejamos:
Nesse cenário, é importante conhecer a opinião dos própri-
os homossexuais acerca da adoção. Uma pesquisa, realizada
no Brasil na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, ouviu
65 homossexuais: 36 homens e 29 mulheres (Costa, 200?).
Dentre os entrevistados, 80% diziam possuir um parceiro
xo, contradizendo a crença popular de que os homossex-
uais teriam relações promíscuas. Oitenta e sete por cento
foram contra o fato de um pedido de adoção ser indeferido
com base apenas na orientação sexual do requerente, sendo
que as mulheres foram mais a favor (96,5%) que os homens
(80,5%). No entanto, quando o enfoque foi o homossex-
ual solteiro, quase todos os entrevistados (96,92%) con-
cordaram com a concessão da adoção (100% dos homens e
93,1% das mulheres) (COSTA, 200?).
Segundo Campos (2008a, p.101) a adoção é um direito de personalidade
e, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade
e da igualdade (previstos na CF/88), garante o exercício pleno de adoção por casais
homoafetivos. Nos dizeres de Figueiredo (2005a, p. 15):
Uma parcela ponderável da população está tendo sonegado
o seu direito constitucional a uma família, enquanto outra
parcela é impedida de adotar por puro preconceito de alguns
que acham que o fato de uma pessoa ter orientação sexual
distinta da maioria o torna um subcidadão, incapacitado
para uma série de atos da vida civil, em especial para a pater-
nagem/maternagem.
Apesar de muitos serem contrários a esse tipo de adoção, não há restrição
constitucional nem infraconstitucional que vede o exercício do direito de constituir
família por casais homoafetivos. Ademais, contrariando a ideia de que seria prejudi-
cial à criança a falta da gura masculina (quando menino) ou da gura feminina (se
menina) para o desenvolvimento saudável de sua personalidade, Fernandes (2004, p.
111) nos lembra com maestria, que:
Podemos dizer que o tema adoção é o mais complexo e
nevrálgico dentre todos os que se relacionam com os direit-
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
140
os e deveres dos que vivem em união homossexual. Os que
combatem a adoção por casais homossexuais, impressiona-
dos com o fato de os adotantes serem pessoas do mesmo
sexo, esquecem que a paternidade ou maternidade é, antes
de tudo, uma função, um papel que se exerce, não estando
vinculada, necessariamente, ao sexo dos pais. Um pai pode
funcionar como pai e mãe; a mãe – e isso é tão comum no
Brasil-, que cria os lhos, sozinha, exerce o papel feminino,
de mãe, e o masculino, de pai.
Seguindo esta mesma linha, Sapko (2005a, p. 101) argumenta de acordo
com o princípio da afetividade em prol dos casais homoparentais:
Homossexuais, por tudo que já se disse, são pessoas plena-
mente capazes de dar afeto e atenção a outros seres humanos
– se assim não fosse, não poderiam se relacionar com seus
parceiros, pais e amigos, o que se sabe, fazem, e muito bem,
na maioria dos casos -, nada havendo que evidencie não po-
derem ser pais ou mães tão amorosos e cuidadosos quanto
qualquer heterossexual.
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criam empecilhos para a adoção por parte de casais homoafetivos. Restringir a adoção
à essas pessoas fere direitos tanto da criança e do adolescente quanto dos futuros pais
ou mães, impedidos de constituir uma família pautada no princípio da afetividade.
O art. 227, caput, da Constituição de 88, exige uma postura ativa da socie-
dade, da família e do Estado para garantir a máxima efetividade dos direitos funda-
mentais contidos no texto legal, senão vejamos:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado asse-
gurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta pri-
oridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à prossionalização, à cultura, à dignidade, ao re-
speito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O referido artigo consagra, portanto, o princípio do melhor interesse da
criança e do adolescente, que é também previsto na Convenção Internacional sobre
os Direitos da Criança, assim como o princípio da prioridade absoluta, conforme
preleciona Neves (2013, p. 165):
O princípio da prioridade absoluta consiste em situar em
primeiro lugar na escala de preocupação da família, da so-
ciedade e do Estado, as necessidades das crianças, a m de
que seus direitos fundamentais sejam assegurados, segundo
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
141
demonstra o artigo 227 da CF. É forçoso reconhecer que
essa prioridade absoluta dada às crianças, decorre, indubi-
tavelmente, de sua peculiar condição de pessoa em desen-
volvimento.
Nesse sentido surge também o princípio da isonomia, consagrado no art.
5º, II, da Constituição de 1988, o qual veda a discriminação, tendo em vista sermos
todos iguais e garantindo, ademais, o direito à diferença na medida em que se deve
proteger e garantir a igualdade material, e não apenas a igualdade formal.
O princípio da dignidade da pessoa humana possui especial relevância ao se
tratar deste tema, na medida em que o mesmo se mostra como basilar e norteador de
todo o ordenamento jurídico, vez que se apresenta como o mais importante funda-
mento da República Federativa do Brasil, consoante se dessome do art. 1º de nossa
Carta Magna. Deve-se garantir o direito de adoção por pessoas homossexuais como
observância a esse princípio, uma vez que representa o respeito, a consideração e pro-
teção que todo ser humano merece por ser uma pessoa, dotada de direitos e deveres
na órbita jurídica.
Desse modo, é consectário de tal norma o direito à parentalidade, o respeito
à individualidade, à personalidade, bem como outros princípios de nossa ordem jurí-
dica, que são de suma importância, como o da afetividade e da liberdade - princípios
esses que vêm sendo o carro-chefe de decisões do poder judiciário, buscando igualar
os direitos de casais homo e heteroafetivos, principalmente após o julgamento da
ADPF nº 132-RJ e a ADI nº 4.277-DF, que reconhece a união homoafetiva como
entidade familiar.
Sobre isso, insta arrazoar que na ementa da ADI 4277, o STF fez menção à
Teoria da Norma Geral Negativa de Hans Kelsen, segundo a qual “o que não estiver
juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Ou seja: não há
qualquer lei ou norma que nega o direito de adoção por casais homoparentais, logo,
esse direito deve ser reconhecido de modo a se garantir todos os princípios acima
mencionados, o que se mostra como medida de real efetivação de justiça.

Uma das decisões mais emblemáticas com relação a presente temática é a
do Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4)6, que teve como relator o
ministro Luis Felipe Salomão. Insta salientar que tal decisão fora proferida aproxima-
damente 5 (cinco) anos antes da Corte Constitucional se posicionar a acerca da união
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇAO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUA-
ÇAO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS
AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVA-
LÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁ-
VEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI 12.010/09
E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA MEDIDA. (...)
(STJ - REsp: 889852 RS 2006/0209137-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julga-
mento: 27/04/2010, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/08/2010).
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142
homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4277). O caso em tela trata-se de um casal de duas
mulheres que viviam em união homoafetiva e uma delas havia adotado dois menores,
que residiam com elas. A outra mãe, então, ingressou na justiça requerendo a adoção
das crianças também.
O relator entendeu que, quando se trata de adoção, as decisões devem de-
ferir quando apresentarem reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos
legítimos, prevalecendo o interesse dos menores sobre qualquer outro, conforme pre-
Aduz que o fato é que a companheira da requerente já havia adotado regu-
larmente as crianças desde quando nasceram, e todos conviviam em harmonia com a
pretendente à adoção, possuindo uma relação de fortes vínculos afetivos. As crianças
chamam ambas de “mãe” e são tratados pelas duas como lhos, constituindo de fato,
uma família. Argumenta que, por mais que exista uma lacuna na legislação, isso não
deve ser óbice para a proteção dos menores, que não teriam resguardados diversos
direitos, como os de sucessão, caso a requerente viesse a falecer.
A m de consolidar sua tese, o magistrado apresenta ainda estudos realizados
pela Universidade de Virgínia, Universidade de Valência e Academia Americana de
Pediatria, com o seguinte teor:
- “ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar, quanto
na circunstância de amar e servir”; - “nem sempre, na deni-
ção dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo
biológico com o sexo social”;
- “o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo
do sexo masculino”;
- os comportamentos de crianças criadas em lares homosse-
xuais “não variam fundamentalmente daqueles da popula-
ção em geral”; - “as crianças que crescem em uma família de
lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados
a isso na idade adulta”;
- “não há dados que permitam armar que as lésbicas e os
gays não são pais adequados ou mesmo que o desenvolvi-
mento psicossocial dos lhos de gays e lésbicas seja compro-
metido sob qualquer aspecto em relação aos lhos de pais
heterossexuais”;
- “educar e criar os lhos de forma saudável o realizam se-
melhantemente os pais homossexuais e os heterossexuais”;
- “a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se
desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo,
social e do funcionamento sexual quanto à criança cujos pais
são heterossexuais”.
Por m, o ministro negou provimento ao Recurso Especial interposto pelo
Ministério Público, garantindo a adoção por ambas as mães.
Trazendo para o contexto regional, o Tribunal de Justiça do Estado de Mato
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
143
grosso, também no ano de 2010, julgou a Apelação Cível 78200/20097, tendo como
relatora a desembargadora Maria Helena Gargaglione Póvoas. A magistrada enten-
deu que a omissão legal não gera empecilhos para que pessoas do mesmo sexo pos-
sam adotar. Deve-se despender de um tratamento igualitário tanto para casais hétero
quanto homoafetivos, prezando pelos princípios da dignidade da pessoa humana, e
do melhor interesse do infante.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordi-
nário N.º 846.1028, com a relatoria da Ministra Carmén Lúcia, pacicou o entendi-
mento acerca da constitucionalidade do direito de adoção por casais homoafetivos. O
Recurso Extraordinário fora interposto contra decisão do Tribunal de Justiça do Esta-
do do Paraná no sentido de possibilitar a habilitação de um casal do mesmo gênero. A
relatora entende que, devido ao fato da Suprema Corte Brasileira já ter entendido que
as uniões homoafetivas são entidades familiares pautadas no afeto, garante a igualdade
entre estas e qualquer outra já conhecida pelo direito. Sendo incabível querer limitar
o direito de adoção por esses casais, criando empecilhos onde a lei não prevê. Opor-
tunidade em que tratou o assunto da seguinte forma:
1. Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como enti-
dade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer
tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando ob-
stáculos onde a lei não prevê. 2. Delimitar o sexo e a idade
da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar
a sublime relação de liação, sem vínculos biológicos, em
ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente
desprovido de amor e comprometimento.
Apelação cível. Adoção por casal formado por pessoas do mesmo sexo. Possibilidade. Recurso provido.
A omissão legal não signica inexistência de direito, tampouco quer dizer que as uniões homoafetivas
não merecem a tutela jurídica adequada, inclusive no que tange ao direito de adotar, motivo pelo qual
não há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido de adoção. A homossexualidade é um fato
social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o judiciário se olvidar de emprestar a tutela
jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família, de modo que a marginalização
das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à
vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana. Sendo possível conceder aos casais formados
por pessoas do mesmo sexo tratamento igualitário ao conferido às uniões estáveis entre heterossexuais,
não há que se falar em impossibilidade de adoção por casais homossexuais, ainda mais quando nem o
37 ECA tampouco o Código Civil trazem qualquer restrição quanto ao sexo, ao estado civil ou à
orientação sexual do adotante. Assim, na ausência de impedimentos, deve prevalecer o princípio
consagrado pelo referido estatuto, que admite a adoção quan-
do se funda em motivos legítimos e apresenta reais vantagens ao adotando.
(TJMT, AC 78200/2009, 2ª C. Cív., Rel. Desa. Maria Helena Gargaglione Póvoas, j. 28/04/2010).
DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMEN-
TO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JU-
RÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277.
ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRI-
BUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. (...)
(STF - RE: 846102 PR - PARANÁ, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 05/03/2015,
Data de Publicação: DJe-052 18/03/2015).
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
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Como explicitado pela ministra, a adoção é uma “sublime relação de lia-
ção, sem vínculos biológicos”, portanto, não deve haver limitações, nem requisitos para
homossexuais, que casais heterossexuais não precisam preencher, como querem esta-
belecer alguns magistrados de nosso país. Com esses argumentos, a ministra negou
provimento ao Recurso Extraordinário.
Ademais, a página “Direito Homoafetivo: consolidando conquistas”9 apre-
senta várias decisões de diversos Tribunais do Brasil, consolidando a possibilidade ju-
rídica de adoção por casais homoafetivos. Citemos alguns: TJRN, AC 2010.001974-
9, Rel. Des. Vivaldo Brennand, j. 29/04/2010; TJSP, AP 123.719-0/9-00, Rel. Des.
Paulo Alcides, j.17/07/2006; TJRS, AC 70013801592, 7ªC. Civ., Rel. Des. Luiz
Felipe Brasil Santos, j. 05/04/2006.
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Em todos os julgados analisados, nota-se claramente a consagração dos prin-
cípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da afetividade
e do melhor interesse da criança e do adolescente. Na adoção, por mais que exista
vínculo legal de proteção entre tutor e tutelado, o vínculo afetivo é o que, de fato, fará
com que este último se sinta membro de uma família.
Portanto, é necessário que, na contemporaneidade, se abandonem ideias e
pensamentos pautados por medos totalmente preconceituosos e desprovidos de qual-
quer estudo e fonte sólida de comprovação, para que se possa garantir com máxima
efetividade os direitos da população LGBTI, bem como os direitos das crianças que
hoje não possuem um lar. Se existem casais cujo sonho é ter um lho e se existem
crianças cujo sonho é ter uma família, se mostra como medida de mais alta urgência,
romper as barreiras sociais e jurídicas para se consolidar o direito à vida e o direito à
convivência a essas crianças e para se concretizar o direito à igualdade, à constituição
de família, e tantos outros às pessoas homossexuais, de modo que a Constituição dei-
xe de ser uma simples folha de papel tão bela e bem escrita, para tornar-se a realidade
de vida da população brasileira.
Assim, como respeito à dignidade da pessoa humana, princípio-base do or-
denamento jurídico pátrio, calcado como fundamento da República Federativa do
Brasil (art. 1º) e considerando o objetivo fundamental da República de promover
o bem de todos, sem preconceitos de qualquer espécie (art. 3º), o direito à adoção
por pessoas LGBTI deve ser reconhecido e protegido como medida da mais salutar
justiça.
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