Prostituição, criminalidade e privação de liberdade: lacuna legal e negação de direitos
Autor | Júlia Silva Vidal, Olívia Vilas Bôas da Paixão |
Páginas | 242-252 |
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
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PROSTITUIÇÃO, CRIMINALIDADE
E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE:
LACUNA LEGAL E NEGAÇÃO DE DIREITOS
Júlia Silva Vidal1
Olívia Vilas Bôas da Paixão2
RESUMO: A subversão à ordem binária de gênero vivenciada pelas travestis e tran-
sexuais é um aspecto amplamente discutido nos estudos de gênero. A interface de tais
estudos com a prostituição, criminalidade e privação de liberdade implica reexos e
consequências que até então, pouco tem se questionado a respeito. A existência de
uma ‘ordem compulsória’ que normatiza os corpos encontra, ainda, na sociedade con-
temporânea e nos sistemas totais, campo fértil de manutenção. Essa mesma ordem,
analisada sob o viés das experiências da travestilidade em ambientes de privação de
liberdade, apresenta aspectos e vulnerabilidades próprios, os quais ensejaram a criação
de “alas” especícas direcionadas a esse público nos sistemas prisionais. Neste traba-
lho, propomo-nos, de um modo geral e sem a pretensão de esgotar o tema, analisar os
entroncamentos entre gênero, travestilidade e sistemas privativos de liberdade, susci-
tando ao debate questões que algumas vezes são mantidas em silêncio.
Palavras-chave: privação de liberdade – prostituição – prisões – alas lgbt
RESUMEN: La subversión del orden binario de género experimentada por travestis y
transexuais es un aspecto ampliamente discutido en los estudios de género. La interfaz
de estos estudios con la prostitución, delincuencia y privación de la libertad implica
reejos y consecuencias sobre las cuáles, hasta entonces, poco se ha cuestionado. La
existencia de una “orden coercitiva” que regula los cuerpos encuentra, aún, en la so-
ciedad contemporánea y en los sistemas totales, campo fértil a su manutención. Esa
misma orden, analizada bajo la óptica de experiencias de la travestilidad en situación
de cárcel, presenta aspectos y vulnerabilidades propias, lo que dio lugar a la creación
de pabellones dirigidos a este público en los sistemas penitenciarios. En este artículo
examinaremos, de un modo general y sin pretender agotar el tema, las intersecciones
entre género, travestilidad y sistemas privativos de libertad, suscitando al debate cues-
tiones que a veces se mantienen en silencio.
Palabras clave: privación de libertad – prostitución – cárcel – pabellones lgbt
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Integrante da Clínica de Direitos
Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (CdH/UFMG). Brasil. E-mail: jusvidal@gmail.com
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-integrante do Núcleo de Direitos
Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG) e do Núcleo de
Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos (NAVCV). Brasil. E-mail: paixao.olivia@gmail.com
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Introdução
As vulnerabilidades vivenciadas pela população de travestis e transexuais
existem sob diversas facetas: seja pela falta de acesso às políticas públicas de saúde,
educação e qualicação prossional – e, consequentemente, a exclusão dessas pessoas
do mercado de trabalho, seja pela negação histórica de direitos sociais básicos ou aos
mais diversos tipos de violências - físicas e psicológicas - às quais esses corpos estão
(sub)julgados. Violências que podem, ainda, ser praticadas e reiteradas por familiares,
amigos, transeuntes, agentes do estado e pelas próprias instituições.
Referidas violências se constituem e se expressam de maneira diversa; por
conseguinte, dada a complexidade da questão, demandam intervenções atentas a cada
realidade social, não deixando de considerar marcadores de posição de classe, cor de
pele, nacionalidade, orientação sexual, dentre outros.
Em pesquisa3 realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania
LGBT (Nuh) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) envolvendo as tra-
vestis e transexuais que se prostituem em Belo Horizonte e região metropolitana,
dentre as 141 entrevistadas, 96,4% das travestis e transexuais relataram já terem sofri-
do algum tipo de violência física, 79,2% armaram já terem sido vítimas de assédio
sexual e 94,3% disseram que já se sentiram ofendidas pelos mais diversos tipos de
xingamentos. Como arma Kulick (1998, p.47): “em nenhum outro lugar a violência
é tão ubíqua quanto no cotidiano das travestis e transexuais. A violência é o pano de
fundo de suas vidas”. Referido cenário se torna ainda mais emergencial se considerar-
mos a realidade daquelas que visualizam na prostituição, além de um modo de traba-
lho e auferição de renda, a possibilidade de rearmarem sua identidade de gênero e
vivenciar seu “ser travesti” (PELÚCIO, 2005). De acordo com Kulick (1998,p.47):
À noite, de todo modo, os perigos são ainda maiores.
Precisando atrair os clientes, travestis fazem ponto
nas esquinas de ruas e avenidas e acabam se expondo
publicamente de uma forma que, não fosse a situação,
elas teriam preferido evitar. A exposição coloca as travestis
em posição vulnerável, alvo fácil do assédio de policiais,
motoristas, transeuntes, gente que passa em automóveis e
ônibus.
Tal cenário de violência, ainda, parece assumir contornos mais acentuados
quando nos atentamos para os contextos de “zonicação” que relega travestis e tran-
sexuais a lugares especícos de exclusão e marginalização. De forma a não esgotar a
temática, nesse artigo seguiremos em três tempos: breves considerações sobre o con-
texto de negação de direitos vivenciado na prostituição; as repercussões sociais dessa
prática nos sistemas de privação de liberdade e, por último, a criação das alas especí-
cas para acolhimento da população lgbt (em especial travestis e transexuais) que, em
sua maioria, já esteve inserida no contexto da prostituição.
Disponível em: www.projetotrans.nuhufmg.com.br. Acesso em: nov/2016.
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
244
De acordo com os dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis
e Transexuais (ANTRA), estima-se que 90% das travestis e transexuais exercem o
trabalho sexual no Brasil atualmente4. Assim, independentemente das posições susci-
tadas dentro dos debates feministas5 acerca da caracterização ou não da prostituição
como um trabalho, neste artigo, consideramos que “a prostituição é uma realidade”.
E, especicamente no caso das travestis, ao invés de considerá-la apenas como uma
forma imoral e degradante de exploração sexual, essas sujeitas também percebem a
prostituição como um trabalho que lhes possibilita acesso a muito mais renda do que
seriam capazes de ganhar em outros empregos assalariados (KULLICK, 1998). Além
disso, “a prostituição é a única esfera da sociedade brasileira onde as travestis podem
ser admiradas e reconhecidas” (KULLICK, 1998, p.151). É nas ruas que elas podem
desenvolver sua autoestima. É ali onde se sentem “objeto de verdadeiro e intenso
valor” (KULLICK, 1998, p. 151).
No entanto é justamente no contexto da prostituição que as travestis,
além de expostas aos mais diversos tipos de violências, inserem-se naquilo que Telles
(2010), utilizando Foucault (1997), denomina como “gestão dos ilegalismos”. Aqui,
é possível apontar as fronteiras instáveis e uidas entre as atividades que envolvem os
mercados ilícitos, ilegais, informais e que caracterizam grande parte das histórias nas
quais circulam a “gura moderna do trabalhador urbano” (TAVARES, 2014, p. 58),
ou, nesta escrita, a “gura moderna da travesti que exerce a prostituição”.
Apesar de não estarem diretamente ligadas ao “mundo do crime”6, por força
da necessidade de permanência e resistência aos espaços onde estão inseridas, por ve-
zes, as travestis e transexuais praticam certas atividades que, aos olhos de uma pessoa
fora daquele contexto, poderia ser tida como uma atividade ilegal. Também nessa
realidade, podemos considerar a gura daqueles inseridos dos “mercados de prote-
ção” (TELLES, 2010) que, ao menor sinal do desfazimento de alianças, desacordos
ou acerto de contas, tendem a desequilibrar a balança de forças dessa zona cinzenta
Disponível em: http://www.siteladom.com.br/regulamentacao-da-prostituicao-duas-prostitutas-dois-
-pontos-de-vista/. Acesso em out/2016.
Atualmente, dentro do movimento feminista, existem quatro vertentes ou posições que podemos consi-
derar no tocante à discussão sobre a regulamentação da prostituição. São elas: proibicionista – que defende
a criminalização tanto daquelas que exercem a prostituição (as prostitutas), quanto daqueles que saem
em busca dos serviços (os clientes); abolicionista – as adeptas a essa corrente pretendem penalizar todos
aqueles que, de algum modo, recrutam, organizam e se beneciam da prostituição, inclusive os clientes;
regulamentarista – posição que considera a prostituição como um “mal necessário” e que, portanto deve
ser controlada e higienizada; laboral ou trabalhista – que defende a prostituição sob uma perspectiva mais
humanista, considerando a prostituta como uma trabalhadora e que, portanto, deve ter acesso às condições
dignas de trabalho e aos direitos laborais disponíveis aos demais trabalhadores.
Telles (2007, 2010), citada por Tavares (2014, p. 58) propõe desconstruir as noções engessadas que a
maioria de nós temos sobre o “mundo do crime”, evidenciado que “aquilo que chamamos de ‘criminalida-
de’ compõe o cotidiano de atividades laborais de trabalhadores urbanos de grandes metrópoles”. A autora
ainda “reconhece o trabalho informal como das dinâmicas de trabalho nos grandes centros urbanos e que,
por sua vez, vem criado laços cada vez mais integrados com o mercado ilícito, em especial o mercado de
drogas”. (TAVARES, 2014, p. 58).
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(imersa em disputas e redes de poder). Nesse contexto, a gura dos policiais assume
incomparável sentido.
Nos territórios da prostituição, as travestis transitam entre limites porosos,
seguindo protocolos e comunicações laterais. Nesses mesmos espaços, também circu-
lam bens, pessoas, acordos e trocas, “num jogo oscilante entre a tolerância – ou ‘vista
grossa’ [...] acertos negociados e extorsão” (TELLES, 2010, p. 116). Esses jogos de
poder, ao mesmo tempo em que permitem a sobrevivência dessas sujeitas na noite, na
batalha7, também determinam os acertos (ou mortes) e as prisões: “o dispositivo penal
(quer dizer: legal) recai, sobretudo, em uma criminalidade urbana difusa, avulsa...”
(TELLES, 2010, p. 119). Se, por m, voltarmos os olhares à realidade do sistema car-
cerário de nosso país, iremos perceber que é justamente essa pequena criminalidade
que alimenta e abarrota grande parte das prisões brasileiras, como efetiva resposta ao
endurecimento penal ocorrido nos últimos anos (TELLES, 2010).
Após serem “empurradas” para a clandestinidade – devido à perseguição po-
licial no contexto da prostituição – ou para a criminalidade – devido à impossibilida-
de das travestis e transexuais em alcançar alternativas de sustento fora da prostituição,
essas sujeitas são submetidas, cada vez mais, ao encarceramento8.
Em referência à Lei 17.515 (Ley de Trabajo Sexual) implantada em 2002
no Uruguai, que cria as chamadas “zonas rojas”9, Susana Rostagnol (2000) arma
que dessa maneira é pautada a convivência entre as sujeitas que exercem a prosti-
tuição e o resto da sociedade: são denidas as características dos espaços comuns, a
serem compartilhados por todos, e são delimitados aqueles que devem ser vedados às
trabalhadoras sexuais ou, ao contrário, destinado somente a elas. No caso do Brasil,
podemos armar que tal “zonicação” também ocorre, mas de modo um pouco dife-
rente: expressa-se através da criação das chamadas “alas GBT”s destinadas ao cárcere
de pessoas que se autodeclarem pertencente ao grupo social referido.
Nesse sentido, armamos que a zonicação, em suas variadas expressões,
não é uma forma de exclusão, mas, ao contrário, constitui uma forma de integração
As travestis utilizam o termo “batalha” para se referir à prostituição.
Em entrevista cedida por Angela Davis ao Blog “Mundo Invisível”, na pessoa de Monique Prada, as femi-
nistas coversaram a respeito da relação existente entre a crescente indústria prisional e o enclausuramento
de mulheres prostitutas, em sua maioria negras e pobres. De acordo com Monique Prada, no Brasil têm
ocorrido diversas ações policiais de “limpeza” nos bordeis e casas de prostituição, o que tem levado à prisão
abusiva de trabalhadoras sexuais. Nesse sentido, Angela Davis arma que “mais prisões estão sendo cons-
truídas, mais empresas estão usando trabalho prisional, mais prisões são privatizadas. Ao mesmo tempo,
mais mulheres estão indo para a prisão, mais espaços estão sendo criados para as mulheres e, como resulta-
do, cada vez um maior número de mulheres [cis e trans] irá para a prisão no futuro”. Na opinião da ativista
norteamericana, “a criminalização contínua da prostituição e da indústria do sexo em geral contribuirão
para o desenvolvimento deste complexo prisional industrial”. Disponível em: http://mundoinvisivel.org/
angela-davis-fala-em-defesa-dos-movimentos-de-trabalhadoras-sexuais/, acesso em 17/09/2016.
Em seus artigos 19, 20 e 21, a “Ley de Trabajo Sexual” regula as chamadas “zonas rojas”: espaços especí-
cos nas cidades uruguaias, nos quais a prostituição deverá ser exercida (URUGUAI, 2002).
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regulada (ROSTAGNOL, 2000). Foucault (1989), citado por Rostagnol (2000, p.
102), arma que “... a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indi-
víduos no espaço. Para isso utiliza várias técnicas (...) exige a cerca, (...) o grande en-
carceramento dos vagabundos e miseráveis”. Nesse sentido, seguindo o pensamento
foucaultiano, o encarceramento de travestis e transexuais:
(...) deve ser visto como um princípio de ordem e controle
e não de exclusão. A clausura permite vigiar, e, portanto,
punir quando alguém infringe alguma regra, assim como
permite medir o grau de submissão à disciplina estabeleci-
da. Então, poderia-se dizer que o estabelecimento de zonas
evita a desordem social, associada à prostituição. (ROS-
TAGNOL, 2000, p. 102, grifo nosso).
Assim, se a realidade das travestis e transexuais está permeada por intensos
cenários de exclusão, é certo que muitos reexos dessa exclusão serão sentidos no
sistema prisional, como atesta Lima e Nascimento (2014, p.5): “a clientela desse siste-
ma é constituída desde sua origem pelos grupos excluídos, sendo ele responsável por
aprofundar os processos de segregação através de seu funcionamento”. Nesse sentido,
ainda, a ligação direta entre prostituição e criminalidade é capaz de ensejar a essas
sujeitas uma exposição a condições múltiplas de vulnerabilização:
É essa a conjuntura social que os sujeitos enfrentam; a
sociedade os marginaliza e propicia que sofram um processo
de exclusão social contínuo, gradual e intermitente. Dentro
do já referido “submundo”, o cárcere torna-se não uma
probabilidade adversa e incomum, mas uma consequência
quase que inevitável, concebida popularmente como
“merecida”, diante de sujeitos moralmente “desajustados”,
os quais, sem alternativas, dedicam-se a uma atividade
imoral e indigna, atualmente ainda velada por diversos
tabus. (LIMA; NASCIMENTO, 2014, p. 4)
Dito isso, passaremos à análise desses sistemas de “zonicação” na realidade
brasileira que, longe de gurar como uma forma de exclusão, constitui-se como uma
“integração regulada” das sujeitas que neles estão inseridas (ROSTAGNOL, 2000).
As “alas GBTs”, foram inicialmente implantadas em 2009 no Presídio de
São Joaquim de Bicas II, no Município que leva o mesmo nome10, e três anos depois,
em 2012, iniciada no Presídio de Vespasiano – cidade de Vespasiano, também no
estado mineiro. Após Minas Gerais, os estados da Paraíba, Bahia, Mato Grosso e Rio
Grande do Sul também seguiram o mesmo caminho e, além disso, no ano de 2014,
10 No ano em 2012, em virtude do aumento da população carcerária, o sistema de alas GBTs também já foi
implantado no Penitenciária Jason Soares Albergaria, na cidade de São Joaquim de Bicas.
II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO
247
a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República já havia assinado com
outros 16 estados brasileiros, termos de compromisso para a elaboração de ações vol-
tadas à população carcerária GBT (ALMEIDA; BENFICA, 2014). No estado de São
Paulo, como exemplo, a criação das alas se deu com a resolução nº 11 da Secretária
da Administração Penitenciária, em 20 de janeiro de 2014, que estabelece em seus
artigos iniciais:
Artigo 1º - As pessoas privadas de liberdade ou que integram
o rol de visitas das pessoas presas devem ter preservado o
direito à sua orientação sexual e a identidade de gênero;
§ 1º - Fica assegurado às travestis e transexuais o uso de
peças íntimas, feminina ou masculina, conforme seu gênero;
§ 2º - Às travestis e transexuais femininas é facultada a
manutenção do cabelo na altura dos ombros;
No que concerne à implantação pioneira no estado de Minas Gerais, cum-
pre ressaltar que apesar do sistema de alas especícas para a população GBT ter sido
implantado pela primeira vez no país no ano de 2009, sua regulamentação veio pos-
teriormente, através da resolução conjunta da Secretária de Defesa Social (SEDS)
e Secretária de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (SEDESE), nº 1 de
201311, que disciplinou:
Art. 2º A Secretaria de Estado de Defesa Social - SEDS,
por meio da SUAPI, destinará ala ou pavilhão especíco em
unidades prisionais para custodiar os presos homossexuais
masculinos e travestis.
De acordo com Almeida e Benca (2014), três foram os argumentos prin-
cipais utilizados como justicativa à implantação das alas GBTs em Minas Gerais:
(1) a redução da violência vivenciada pela população LGBT dentro do sistema
penitenciário, (2) a prevenção com vistas à diminuição dos casos de transmissão de
DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) entre a comunidade GBT encarcerada,
os demais detentos e a população externa ao presídio e (3) a garantia do respeito às di-
ferenças e a efetivação de melhores condições no cumprimento de pena, tendo como
objetivo a ressocialização deste público especíco. Além desses três argumentos, neste
trabalho evidenciamos também uma última justicativa, qual seja a de (4) evitar a
promiscuidade e a prostituição nos presídios masculinos (ARRIEL, 2009).
Com relação à (1) violência experienciada pelo segmento GBT dentro dos
presídios brasileiros, “além da violência social de não aceitação já existente no pré-
-aprisionamento, a violência do cárcere se expressa para além de não terem sua liber-
dade física” (ALMEIDA, BENFICA, 2014, p. 5). Nesse contexto, a violência sexual,
psicológica e moral também são sentidas por meio de diversos tipos de abusos pratica-
dos pelos próprios companheiros de cela ou mesmo pelos agentes penitenciários (AL-
11 Resolução Conjunta SEDS/SEDESE nº1. Disponível no Diário do Executivo de MG, 23 de janeiro de
2013, pág. 8.
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
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MEIDA, BENFICA, 2014). Em entrevista cedida ao Jornal EBC, Maria José Diniz,
que há época era assessora de Direitos Humanos da Superintendência dos Serviços
Penitenciários (Susepe), armou que:
O mesmo tipo de violência que acontece contra essas pessoas
nas ruas também é vericado aqui dentro [nos presídios]. E
essa foi a forma que encontramos para não contribuirmos
mais com a violação de direitos humanos contra gays e trav-
estis. (BRANDÃO, 2013).
Por outro lado, (2) a preocupação com a prevenção às DSTs, e sua eventu-
al diminuição dos casos de contaminação, foi também evidenciada por Walkíria La
Roche, que no ano de 2009 cheava a Coordenadoria Especial de Políticas da Diver-
sidade Sexual de Minas Gerais (Cods)12. Segundo ela, “os homossexuais e travestis
abusados sexualmente nas prisões [acabavam] contraindo doenças sexualmente trans-
missíveis (DSTs) e, consequentemente, transmitindo a outros homens no ambiente
carcerário”. Nas palavras de Walquíria, em entrevista ao Jornal EBC,
É muito comum no nosso país que essas pessoas sejam
usadas como moeda de troca nos presídios. Não há
preocupação com a transmissão de DST. E como os homens,
depois, recebem visita íntima, pode causar uma epidemia.
(BRANDÃO, 2013).
No entanto, através desse enunciado, observamos mais uma vez, a violência
e preconceito atuando de forma institucionalizada: de acordo com Almeida e Benca
(2014), trata-se da propagação e reprodução de um discurso transfóbico que busca
associar às travestis e transexuais a imagem de pessoas doentes, portadores de DSTs e
cuja presença precisa ser evitada. Nesse contexto, o Estado não é responsabilizado em
momento algum por não ser capaz de garantir a segurança contra a violência física e
moral dessas pessoas - evitando que elas sejam “moedas de troca” - e pela inexistência
de um sistema ecaz de saúde e prevenção, capaz de tratar de modo digno a saúde da
população carcerária13.
Com relação ao argumento de (3) da garantia do respeito às diferenças e de
melhores condições no cumprimento de pena, objetivando a ressocialização dessas
pessoas; aqui, também podemos armar que se trata de mais uma tentativa em reme-
12 De acordo com a “Pesquisa com Travestis e Gays em situação de criminalidade, privados de liberdade
no Presídio de São Joaquim de Bicas II – Estado de Minas Gerais”, realizada pelo Governo do Estado de
Minas Gerais, o Projeto de Ressocialização e Reintegração Social dos Gays e Travestis encarcerados foi im-
plementado e idealizado pela Coordenadoria Especial de Políticas de Diversidade Sexual (Cods) (Governo
do Estado de Minas Gerais, 2012).
13 Ainda nesse sentido, para Almeida e Benca (2014, p. 6), “esse argumento traz um tom no mínimo
preconceituoso ao tratar as mulheres, travestis e transexuais como motivo de contaminação, e, por isso,
devendo ser afastadas do convívio aos demais presos”.
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249
diar14 outra falha de atuação do Estado: a da garantia de dignidade no cumprimento
da pena e a possibilidade de ressocialização. Nesse sentido,
[Se] somente essa separação [propiciada pelas alas GBTs]
permitiu a garantia de segurança e direitos a essas pessoas;
[...] [havendo] uma violação anterior, não será a criação de
alas que a cessará, nem tampouco será a responsável pelo
término do preconceito. (ALMEIDA; BENFICA, 2014).
Por m, a última justicativa evidenciada neste trabalho foi a de (4) evitar a
promiscuidade e a prostituição nos presídios masculinos (ARRIEL, 2009). Tão inco-
erente quanto as anteriores, essa armação não se sustenta, em primeiro lugar, tendo
em vista que no ano de 2002, a prostituição foi incluída na Classicação Brasileira
de Ocupações (CBO), sendo reconhecida pelo Estado como uma ocupação exercida
no mercado brasileiro (MINISTÉRIO, 2016). Tal inclusão foi um importante ganho
simbólico na luta pela visibilidade, dignidade e identidade das sujeitas que exercem
o trabalho sexual, devendo esse, portanto, deixar de gurar como um “mal social” a
ser combatido15.
Além disso, podemos armar que tal argumento relaciona-se mais ao pre-
conceito e à condenação moral contra manifestações afetivas e sexuais por parte das
pessoas que não se adéquam ao padrão heterossexual imposto em nosso convívio
social. Essa poderia ser de fato, a “promiscuidade” à qual os defensores da ideia se
referem16. Aqui, é certo armar que, mais uma vez, vemos o estigma associado à pros-
tituição e à expressão sexual17, rearmado e utilizado como pressuposto à violação de
direitos e garantias individuais e à marginalização de identidades.
14 Falamos em “remediar”, pois, desde o ano de 1984, quando Lei de Execuções Penais (LEP) entrou em
vigor, o Estado brasileiro obrigou-se a garantir um sistema prisional capaz de assegurar aos detentos efeti-
vas possibilidades para a “harmônica integração social do condenado” (BRASIL, 1984). Podemos inferir,
ainda, a existência de algumas diculdades do Estado na garantia de ressocialização dessas sujeitas privadas
de sua liberdade.
15 No entanto, sabemos que o fato de ser regulamentada pelo Ministério do Trabalho não torna a prosti-
tuição uma prossão devidamente regulamentada, com direitos trabalhistas garantidos e deveres a serem
cumpridos. A inclusão na CBO, portanto, reconhece a prostituição como prática legítima de determinado
grupo em nossa sociedade (PEREIRA; FEIJÓ, 2014).
16 Com esse argumento, pressupõe-se que as sujeitas e sujeitos pertencentes à comunidade LGBT e sub-
metidos a um sistema privação de liberdade devem abrir mão de quaisquer manifestações de sua sexuali-
dade e orientação sexual, estando, inclusive, proibidos de manter relações sexuais (havendo consentimento
mútuo) com quem quer que seja, pois, caso contrário, estariam contribuindo à crescente promiscuidade
dentro dos presídios masculinos. A esse respeito, Walquíria La Roche armou que: “No primeiro momento
[os detentos] não acreditaram [na implantação das alas], questionaram que na prisão mantinham média de
13 relações sexuais por noite. Mas aí falei que eles não estavam numa colônia de férias e sim presos [sic]”.
(ARRIEL, 2009).
17 Aqui entendida em sua forma mais ampla, abarcando a orientação sexual homossexual, heterossexual,
bissexual, transexualidade e travestismo [sic]. (RIOS, 2006).
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIREITO: ENTRE VIOLÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
250
O reconhecimento das travestilidades no sistema de privação de liberdade,
além de gerar desdobramentos especícos nos diversos âmbitos do sistema criminal,
impõe desaos e vulnerabilidades às próprias travestis e transexuais, tendo em vista
a maneira como os marcadores sociais se articulam e geram novos contornos nesses
espaços, no que concerne a expectativa de gênero e sexualidade.
Como demonstrado, a realidade de vulnerabilização vivenciada por essas
sujeitas, guarda intrínseca relação com o cárcere, tendo em vista, sobretudo, o seu
caráter de manutenção do status quo, a partir da segregação e encarceramento de
populações estigmatizadas na sociedade. Contudo, nos casos das travestis e transexu-
ais, referido contexto aparenta se agravar, tendo em vista os marcadores de gênero e
sexualidade que marcam suas experiências sociais, que em interface com as institui-
ções totais, também têm suas formas de expressão controlados. Como atesta Lima e
Nascimento (2014, p.6): “é ainda nessa esfera de controle total que há o controle da
expressão da sexualidade e do gênero”.
Ainda, no que concerne aos desdobramentos oriundos da travestilidade em
contextos de privação de liberdade, vale destacar a resolução conjunta nº 1 de 15 de
abril de 2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciaria, que visa construir um padrão de aco-
lhimento da população GBT. O referido dispositivo, não apenas garante o uso do
nome social, como igualmente prevê a manutenção do tratamento hormonal (às
travestis e transexuais) e o acompanhamento de saúde especíco (art. 2 e art. 7) à
população GBT.
Vê-se, até então, que apesar das argumentações relacionadas à criação das
alas GBTs, inclusive, tendo em vista a ideia da “zonicação”, as implicações entre
prostituição, criminalidade e privação de liberdade apresenta contornos ainda mais
complexos, que carecem de estudos aprofundados, sobretudo no que diz respeito aos
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