Bens estatais

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BENS ESTATAIS
16.1 POR UM “DIREITO ADMINISTRATIVO DOS BENS”1
O desempenho das tradicionais funções da Administração Pública, de natu-
reza prestativa ou restritiva, pressupõe um conjunto patrimonial, ou seja, receitas
f‌inanceiras e bens, móveis ou imóveis. Assim, por exemplo, para f‌iscalizar a ação
privada com base em seu poder de polícia, os agentes públicos necessitam de equi-
pamentos, veículos, armas, uniformes; para executar serviços sociais, dependem
de edifícios, material de escritório, medicamentos, livros entre outras coisas. Além
disso, o Estado gere e explora grandes infraestruturas (como rodovias, ferrovias,
portos e aeroportos) e recursos naturais (como águas, f‌lorestas e minérios) – ele-
mentos artif‌iciais ou naturais que se inserem em seu patrimônio como bens estatais,
ora públicos, ora privados.
O título deste capítulo utiliza a expressão “bens estatais” em vez de “bens pú-
blicos”, mais comumente encontrada em manuais sobre a matéria. A primeira razão
para essa preferência é de ordem conceitual: bens estatais são todos os pertencentes
a entidades de direito público ou de direito privado que compõem um determinado
Estado. Trata-se de um conceito muito mais largo, mais abrangente que o de bem
público, que se limita, no direito positivo brasileiro, a indicar o grupo de bens sob
propriedade de pessoas jurídicas de direito público interno.
A segunda razão é normativa: a expressão bens estatais não é absorvida direta-
mente pelo ordenamento jurídico brasileiro. A busca da expressão no Código Civil e
na Constituição da República evidencia essa asserção. O problema é que a obsessão
legislativa pela expressão “bem público” dif‌iculta que se visualize toda a riqueza dos
bens estatais por trás dos textos normativos.
A terceira razão é doutrinária: por força da terminologia e dos conceitos pre-
feridos pelos diplomas normativos, sobretudo no modelo inaugurado pelo Código
Civil de 1916, a doutrina que se f‌irmou no direito administrativo concentrou suas
ref‌lexões no exame dos “bens públicos”, apenas uma parcela dos bens estatais. Raras
1. Esse capítulo retoma e reproduz, com atualizações, reduções e simplif‌icações, parte da exposição mais
completa e detalhada desenvolvida em MARRARA, Thiago; FERRAZ, Luciano. Tratado de direito admi-
nistrativo, v. 3: direito administrativo dos bens e restrições estatais à propriedade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME II • Thiago Marrara
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são as explanações teóricas que buscam relacionar os bens públicos e os demais bens
do Estado em uma análise mais abrangente e sistemática.
A quarta razão é social e administrativa: af‌inal, na contemporaneidade, o Estado
não mais se confunde com o público, nem a sociedade com o privado. Pessoas físicas
e jurídicas não estatais ora gerem bens públicos, ora detêm bens não estatais que
cumprem função pública. As funções de Estado e da sociedade se misturam, entre-
laçam-se; os papeis dos bens se mesclam e, nessa modif‌icação de cenário, desponta
um direito administrativo que incide sobre os bens privados.
Em virtude dos fatores descritos, é preciso insistir na necessidade de se ampliar
o escopo dos estudos gerais por meio da valorização de um vasto “direito administra-
tivo dos bens”, o qual se divide em três partes menores: (i) o direito administrativo
dos bens públicos; ii) o direito administrativo dos demais bens estatais privados
e (iii) o direito administrativo dos bens particulares vinculados a funções estatais
(doravante enquadrados no conceito de “domínio público impróprio” ou de “bens
públicos fáticos”). Para se compreender a complexidade desse campo de estudos, é
preciso resgatar previamente certos conceitos introdutórios que o circundam.
16.2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS
16.2.1 Território e domínio eminente
Como pessoas de direito internacional público, os Estados dependem de espaço
para desenvolver suas tarefas, suas políticas públicas e para tutelarem os interesses
e direitos da nação ou grupo de nações que lhe deu origem. Para atingir essas f‌ina-
lidades, é preciso que se lhe conf‌ira soberania sobre as terras que estão dentro de
suas fronteiras – nisso se incluindo o solo, o subsolo e o espaço atmosférico –, sobre
as águas e sobre outros recursos naturais estratégicos.2
De nada adiantaria reconhecer o território como campo de ação do Estado se, a
isso, não se somassem poderes de gestão soberana sobre os indivíduos, suas relações
sociais e os bens situados neste espaço. Em última instância, no direito internacional
público, o “poder geral de governo, administração e disposição constitui o imperium”.
Eis o poder de governar uma ou mais nações que se encontram no território e seus
indivíduos isoladamente, utilizando-se, via de regra, do direito como instrumento
de disciplina da vida social. Ao lado do “imperium”, o direito internacional se refere
ao “dominium” com o objetivo de apontar o direito de propriedade eventualmente
reconhecido em cada território estatal.3
2. BROWNLIE, Ian. Direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 121.
3. BROWNLIE, Ian. Direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 123.
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No âmbito do direito administrativo, ao se falar de domínio eminente e domí-
nio público geralmente se deseja fazer referência às noções do direito internacional
público mencionadas, ou seja, ao império e ao domínio, respectivamente. Isso
signif‌ica, em poucas palavras, que o “domínio eminente” nada mais é que o poder
de governo e de administração que a ordem internacional reconhece a um Estado
soberano sobre seu território e sobre o povo nele situado. É daqui, portanto, que
deriva o poder de polícia e outros poderes estatais sobre a vida privada. Por sua vez,
o “domínio público” expressa o patrimônio estatal como indicador de riquezas ou,
em sentido mais limitado, o conjunto de propriedades estatais que se encontram em
regime público diferenciado do direito privado, ou melhor, do “domínio privado”.
16.2.2 Objetos, bens e coisas
Dentro do território, constrói-se a ordem jurídica e aí despontam os “objetos do
direito”, que, simplif‌icadamente, classif‌icam-se em três grupos. O primeiro deles é
representado pelo próprio indivíduo, considerado tanto em sua estruturação corporal
quanto em seus interesses. Embora, tradicionalmente, as normas que atingiam os
indivíduos em si os tomassem de modo isolado, ao longo do tempo proliferaram-se
normas que o tratam de modo coletivo e difuso e, mais atualmente, sob o ideal de
sustentabilidade, normas que cuidam de gerações futuras, sequer existentes.
Ao lado do indivíduo em si, como ser vivo e social, o direito também toma
como seu objeto as atividades humanas de modo direto ou indireto. Ora o direito
protege a possibilidade de tais atividades existirem e se desenvolverem, ora o direito
as limita ou def‌initivamente as proíbe. Na sua conformação, isso engloba tanto as
atividades executadas pelas próprias forças individuais, quanto as desempenhadas
indiretamente, ou seja, por um indivíduo em nome de outro ou por instrumentos
mecânicos ou eletrônicos. Tais atividades não se resumem ao trabalho ou a outras
ações econômicas. Elas igualmente incluem práticas religiosas ou culturais. Fora
isso, o direito ainda toma como seu objeto as ações mediadas pelas pessoas jurídi-
cas, que nada mais são que f‌icções jurídicas cuja razão de ser repousa em motivos
econômicos, jurídicos e até mesmo contábeis.
O terceiro objeto do direito são elementos geralmente não humanos, materiais
ou imateriais, que se encontram no patrimônio dos indivíduos ou das pessoas jurí-
dicas por eles criadas, sejam elas estatais ou particulares. Esses bens ora são dados,
existentes a despeito da humanidade, como a atmosfera, as águas, as terras, o espaço
sideral e as ondas magnéticas – comumente enquadrados na categoria de recursos
ambientais –, ora são criados pelo ser humano, como as máquinas em geral, os
computadores, as marcas e as criações intelectuais até as grandes infraestruturas.
Dentre os recursos ambientais, especif‌icamente, há bens que não se sujeitam
à apreensão ou ao controle fático, porque são f‌luídos, imprecisos ou de grandeza
incomensurável. Embora possam ser inf‌luenciados pela ação humana e utilizados

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