Desapropriação

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DESAPROPRIAÇÃO
15.1 DEFINIÇÃO E FUNDAMENTOS
A mais radical de todas as formas de intervenção do Estado sobre o direito
de propriedade é a desapropriação. Trata-se de transmissão compulsória de um
bem ao patrimônio do Estado, como expropriante, ou de terceiros em condições
previstas em lei, fundamentando-se ora na promoção de certo interesse público
primário, ora na necessidade de se punir o proprietário pela violação da função
social da propriedade.
Como a desapropriação ataca gravemente o direito de propriedade (ancorado
no art. 5º, XXIII da CF), sua legalidade depende de um processo administrativo
preparatório. Caso haja resistência do proprietário, a desapropriação desembocará
em processo judicial, cabendo ao juiz f‌ixar a indenização em sentença. Como al-
ternativa ao Judiciário, a Lei n. 13.867/2019 previu a possiblidade da mediação ou
da arbitragem. Isso revela que a desapropriação como meio de aquisição originária
de propriedade dependerá sempre de processo administrativo e ocasionalmente de
processo arbitral ou de processo judicial.
Da perspectiva do proprietário originário, a desapropriação ocasiona a “inter-
venção supressiva” do direito de propriedade. Ao decretá-la, o Estado afasta o caráter
perpétuo da propriedade sobre um determinado bem, daí porque a desapropriação
não conf‌igura mera restrição. Ela consiste em medida de extinção de direito que
impacta o patrimônio de pessoas físicas, de pessoas jurídicas de direito privado ou
de pessoas jurídicas de direito público.
A desapropriação não se limita a suprimir a propriedade particular não estatal.
Também os componentes patrimoniais do próprio Estado se sujeitam à desapropria-
ção sob certas condições especiais. Além disso, a desapropriação abarca qualquer
tipo de propriedade. Embora a desapropriação conf‌iscatória, a sancionatória urbana
e a sancionatória rural se limitem aos bens imóveis, as desapropriações ordinárias
incidem sobre bens imóveis ou móveis, materiais ou imateriais. Como explica Le-
tícia Queiroz de Andrade, apesar de bens imóveis serem o objeto mais frequente,
qualquer tipo de bem pode ser desapropriado, incluindo ações, quotas de capital,
direitos possessórios e outros, salvo os personalíssimos. Apenas para ilustrar, em
1961, o Estado de São Paulo desapropriou as ações da Companhia Paulista de Estra-
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME II • Thiago Marrara
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das de Ferro.1 A respeito do tema, o STF editou a Súmula 476, nos termos das quais:
desapropriadas as ações de uma sociedade, o Poder desapropriante, imitido na posse,
pode exercer, desde logo, todos os direitos inerentes aos respectivos títulos”.
Da perspectiva do expropriante, a desapropriação conf‌igura meio de “aquisição
originária” de propriedade. A aquisição é originária, não derivada, uma vez que ani-
quila todos os vínculos jurídicos anteriores sobre o bem, seja por parte do proprie-
tário, seja por parte de terceiros. Por conseguinte, usufrutos, direitos de superfície,
cláusulas de inalienabilidade e quaisquer outros eventuais vínculos sobre o bem
desaparecem a partir do momento em que ele se descola do proprietário originário.
Apesar disso, o bem expropriado não se destina necessariamente ao patrimônio
da entidade expropriante. Há desapropriações que agregam um bem ao patrimônio
do ente público que as executa e outras que implicam a transferência do bem a ter-
ceiro, inclusive um particular. A destinação dos bens a terceiros se vislumbra nas
desapropriações para reforma agrária, para construção de distritos industriais, na
desapropriação por zona e em várias outas espécies.
Por isso, não se deve enxergar na desapropriação um mecanismo de formação
apenas do patrimônio estatal. A característica marcante da desapropriação não reside
no destino do bem. Seu traço essencial reside na supressão da propriedade por força
de um mandamento estatal fundamentado em interesses públicos primários ou na
necessidade de promoção da função social da propriedade.
15.2 PANORAMA DAS MODALIDADES
A desapropriação constitui um dos temas mais complexos do direito administra-
tivo positivo. Isso se deve a vários fatores. A legislação que cuida da matéria provém
de longa data e formou-se de modo gradual e irregular ao longo dos tempos. Hoje,
inúmeras leis que tratam da matéria convivem, cada qual editada em momentos
históricos distintos e com estruturas normativas bastante diferenciadas. Aspectos
abordados em algumas das leis são ignorados em outras, problema que exige do
intérprete cuidado na interpretação e na aplicação da legislação, além do emprego
constante de mecanismos de integração de lacunas, sobretudo a analogia.
Agrega-se a esse problema a farta jurisprudência sobre o assunto. O Judiciário
buscou dar sistematicidade ao caos legislativo e compatibilizar a antiga legislação
com as transformações do ordenamento jurídico, sobretudo a edição da Constituição
de 1988. No entanto, muitas vezes, a jurisprudência torna o sistema ainda mais com-
plicado. Ideal seria que o Congresso Nacional, detentor de competência legislativa
privativa sobre o assunto, sistematizasse todas as modalidades de desapropriação em
1. ANDRADE, Letícia Queiroz de. Desapropriação – aspectos gerais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017, s. p.
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um código único e atualizado, elaborado com base na jurisprudência consolidada
e sob os mandamentos constitucionais em vigor.
Enquanto uma legislação de sistematização não surge, a complexidade do tema
pede que se cotejem os tipos de desapropriação separadamente para, em seguida, exa-
minarem-se tópicos comuns a todos eles, na tentativa de se construir uma teoria geral.
De acordo com a Constituição de 1988, existem cinco modalidades principais
de desapropriação aceitas no Brasil. Todas elas constam expressamente do texto
constitucional e encontram regimes jurídicos próprios estruturados a partir de um
grande número de leis que, entre outros aspectos, regem os processos adminis-
trativos e judiciais de desapropriação, os direitos, os poderes e os deveres do ente
expropriante e do proprietário afetado, bem como as implicações sobre o direito de
terceiros, a indenização e a destinação do bem.
Com o objetivo de oferecer um panorama introdutório, o quadro abaixo sumariza
as cinco modalidades, suas leis de regências e algumas de suas características centrais:
Quadro: modalidades de desapropriação
Modalidade Legislação Competência material Indenização
Ordinária por necessidade
ou por utilidade pública
Art. 5º, XXIV CF / Dec.-Lei
n. 3.365/1941
União, Estados, DF e
Municípios Prévia, justa e em dinheiro
Ordinária por interesse so-
cial
Art. 5º, XXIV CF / Lei n.
4.132/1962
União, Estados, DF e
Municípios Prévia, justa e em dinheiro
Sancionatória rural por vio-
lação da função social
Art. 184 e 185 CF / Lei
n. 8.629/1993 e LC n.
76/1993
Exclusiva da União
Títulos da dívida agrária
(TDA) resgatáveis em até
20 anos
Sancionatória urbana por
violação da função social
10.257/2001 Exclusiva dos Municípios
Títulos da dívida pública
(TDP) resgatáveis em até
10 anos
Conscatória por plantação
de psicotrópicos ou trabalho
escravo (também conhecida
como expropriação)
8.257/1991 Exclusiva da União Não há indenização
Fonte: elaboração própria
15.3 COMPETÊNCIAS PARA LEGISLAR E PARA EXECUTAR
Pela característica altamente interventiva da desapropriação e sua relação direta
com direitos civis, a Constituição adequadamente reserva ao Congresso Nacional
a competência privativa para legislar sobre o assunto (art. 22, II da CF). Por conse-
quência, as leis que cuidam dos cinco tipos de desapropriação e seus respectivos
processos valem para todos os entes federativos, ou seja, não são meras leis federais,
senão verdadeiras leis nacionais, vinculantes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios. Exatamente por isso, o STF afastou o dispositivo da Lei

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