Serviços públicos

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SERVIÇOS PÚBLICOS
11.1 DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS GERAIS
A inf‌luência do direito administrativo francês, principalmente de León Duguit
e Gaston Jèze, sobre o direito brasileiro se percebe na centralidade que o conceito de
serviço público ganhou no ordenamento e na doutrina a partir do segundo pós-guer-
ra, sobretudo pela pena de Themístocles Brandão Cavalcanti, autor de um clássico
tratado de direito administrativo.1
A partir de então os serviços públicos se tornaram um dos pilares centrais do
direito público nacional. Isso se vislumbra em dois dispositivos constitucionais
que tratam do tema em sentido geral. De um lado, o art. 175, caput prescreve que
“incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de conces-
são ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. O
parágrafo único desse artigo exige que o Congresso edite lei para tratar, entre outras
coisas, dos direitos dos usuários, da política tarifária, da obrigação de manter o serviço
adequado, bem como do regime das concessionárias e permissionárias de serviços
públicos. De outro lado, o serviço público ganha destaque no art. 37, § 3º, que exige
lei para disciplinar “as formas de participação do usuário na administração direta
ou indireta, regulando especialmente: I – as reclamações relativas à prestação dos
serviços públicos em geral (...)”.
Sobretudo por meio dos dois dispositivos referidos, o conceito de serviço público
adquiriu inquestionável status constitucional no Brasil. Todavia, a Carta Magna não
oferece uma def‌inição abstrata e geral do conceito, nem aponta com toda a clareza
seus limites, resumindo-se a indicar alguns deles em dispositivos esparsos e a esta-
belecer regras básicas para certos setores. Na verdade, não raramente, a Constituição
atribui de modo genérico certas atividades ao Estado, que são interpretadas por
muitos como serviços públicos, ainda que não tenham sido expressamente rotuladas
como tais pelo legislador.
Até 2017, tampouco havia def‌inição geral do conceito no plano infraconstitu-
cional. Com a edição do chamado Código de Defesa do Usuário do Serviço Público
1. Para uma breve história do serviço público no Brasil, cf. KLEIN, Aline Lícia; MARQUES NETO, Floriano
de Azevedo. Tratado de direito administrativo, v. 4: funções administrativas do Estado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014, p. 52.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME II • Thiago Marrara
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(Lei n. 13.460), essa lacuna foi suprida. No intuito de tratar dos direitos gerais dos
usuários e concretizar o mencionado art. 37, § 3º da Constituição, que trata do direito
de manifestação, o Código def‌iniu o serviço público como “atividade administrativa
ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida (sic)
por órgãos ou entidades da administração pública” (art. 2º, II).
Essa def‌inição legal é ampla, pois abarca tanto os serviços públicos admi-
nistrativos, que têm os próprios órgãos e agentes públicos como clientes, quanto
aqueles voltados à população pela oferta de bens e serviços. No entanto, a def‌inição
apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar, serviço público não é atividade
exercida” pela Administração Pública. Trata-se de atividade sob “titularidade” do
Estado, com ou sem exclusividade, ou seja, de modo monopolizado ou não. Já o
exercício dessa atividade pode ocorrer de maneira direta (pelo próprio titular) ou
indireta (por outras pessoas em nome do titular). Em segundo lugar, o dispositivo
legal indicado não aponta os fatores ou características que diferenciam o serviço
público frente a outras atividades do Estado, como seu caráter necessariamente
benéf‌ico e seu regime publicístico.
Por essas razões, apesar da inovação legislativa em def‌inir o conceito, ainda se
af‌igura necessário que a doutrina o discuta e esclareça. Nessa tarefa, entendo mais
preciso def‌inir serviço público como atividade de natureza prestativa atribuída ao
Estado por opção do legislador, sob monopólio ou não, executada direta ou indireta-
mente, e que desempenha a função de satisfazer as necessidades básicas da população,
submetendo-se a um regime fortemente marcado pelo direito público em contraste
com as meras atividades econômicas. Na def‌inição teórica aqui formulada, alguns
aspectos fundamentais merecem destaque:
O serviço público constitui “atividade estatal”, mas não necessariamente
terciária. Ao contrário do que ocorre na economia, a palavra “serviço” ganha
sentido mais amplo no direito administrativo e engloba desde uma ativida-
de do setor primário (exploração dos recursos da natureza para geração de
matérias-primas), do setor secundário (industrialização) ou do terciário
(serviços propriamente ditos). Isso permite incluir no conceito de serviço
público atividades muito diversas, como a geração de energia, a iluminação
pública, o tratamento de esgoto, os serviços de educação, o transporte cole-
tivo de passageiros, a saúde e a cultura. Certos serviços públicos sequer se
encaixam nos três setores econômicos, pois indicam tarefas administrativas
internas do Estado e sem relevância ou função econômica direta, como o ar-
quivamento e a gestão de documentos públicos. Por essa abrangência, andou
bem o legislador na Lei n. 13.460/2017 (Código dos Usuários) ao descrever o
serviço público ou como “atividade administrativa” ou como “prestação direta
ou indireta”, tanto de bens, quanto de serviços à população.
Todo serviço público tem caráter “prestativo”. Seu objetivo imediato consiste
em gerar uma comodidade às pessoas, diferentemente da atividade de polícia
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11 • SERVIÇoS PÚBLICoS
administrativa, das restrições estatais à propriedade e da intervenção estatal
na economia, que, de pronto, implicam limitação dos direitos, da liberdade
ou do espaço privado para, apenas de modo mediato, irradiarem efeitos posi-
tivos à sociedade. Essas três atividades assumem caráter restritivo, enquanto
o serviço público e o fomento estatal se mostram prestativos. Nesse aspecto,
a def‌inição do Código do Usuário, antes mencionada, foi insuf‌iciente, pois
não qualif‌icou o serviço público como atividade prestativa e, com isso, não
promoveu a necessária distinção face de outras funções da Administração
Pública.
O serviço público busca “satisfazer necessidades básicas” da população para
garantir a dignidade humana. É essa característica que difere o serviço público
do fomento estatal. Conquanto ambos assumam função prestativa e visem a
benef‌iciar a coletividade, no fomento, o Estado estimula a sociedade a, por
si mesma, gerar comodidades para satisfazer suas necessidades. Daí porque
o Estado fomenta as atividades privadas de interesse público (esfera pública
não estatal). Já no serviço público, o Estado gera a comodidade em si. Veja-
mos a diferença com o exemplo da cultura. Nesse campo, abre-se ao Estado
a possibilidade ou de construir um teatro e contratar agentes públicos para
compor uma orquestra que realizará concertos para a população (como serviço
público) ou de conceder incentivos f‌iscais e outros tipos de benefício para
que agentes econômicos invistam em orquestras privadas e tornem a música
clássica mais acessível à população (fomento). Note-se, porém, que existem
serviços públicos administrativos, consistentes em atividades preparatórias
de outras, como os serviços de arquivamento ou processamento de dados, de
capacitação interna de servidores. Essas atividades exercem papel de suporte
ou de complemento do serviço público principal.
O serviço público, por sua imanente função garantidora da dignidade huma-
na, consiste em um grupo de atividades sujeitas ao “regime de direito admi-
nistrativo”, marcado por princípios, prerrogativas e sujeições não presentes
em atividades comuns. Exemplo disso é o princípio da continuidade que,
entre outras coisas, limita as hipóteses de interrupção do serviço e impõe
restrições ao direito de greve dos agentes públicos. A continuidade, assim
como a modicidade, a generalidade, a atualidade e outros princípios gerais
formam o conceito de serviço público adequado, detalhado tanto na Lei de
Concessões (Lei n. 8.987/1995) quanto no Código de Usuários dos Serviços
Públicos (Lei n. 13.460/2017).
O serviço público não tem uma essência, não decorre da natureza da atividade,
mas sim de “escolha do legislador” que varia no tempo (período histórico) e
no espaço (de acordo com o ordenamento jurídico). Dizendo de outro modo:
não existem atividades que por sua mera natureza sejam serviços públicos
em qualquer parte do mundo. Como alerta Dinorá Grotti, na qualidade de

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