Gestão de bens

Páginas189-249
17
GESTÃO DE BENS
17.1 GESTÃO DE BENS COMO FUNÇÃO ADMINISTRATIVA1
A Administração Pública não se limita a desempenhar atividades f‌inalísticas,
ou seja, funções administrativas, prestativas ou restritivas, voltadas ao atendimen-
to direto das necessidades dos cidadãos e da coletividade. Para operacionalizar o
poder de polícia, os serviços públicos, as intervenções econômicas e as restrições à
propriedade, é necessário que desenvolva igualmente “funções instrumentais” ou
“serviços administrativos”. Nessa categoria, incluem-se a gestão de recursos hu-
manos, a gestão de recursos f‌inanceiros e a gestão dos bens estatais. De modo geral,
portanto, a discussão teórica sobre a natureza dos bens em si difere daquela acerca
das inúmeras tarefas administrativas envolvidas no seu gerenciamento.
Dois aspectos relevantes da gestão de bens como função administrativa ins-
trumental merecem atenção. Em primeiro lugar, sob a perspectiva de conteúdo, ela
abarca questões jurídicas que dizem respeito: (i) à aquisição; (ii) à afetação, ao uso
e aos mecanismos de outorga de uso; (iii) à possibilidade de oneração dos bens por
garantias; (iv) à penhorabilidade; (v) à prescritibilidade; (vi) à alienação e (vii) à
tutela dos bens estatais. Esses são os setes pilares deste capítulo.
Não há, porém, um regime jurídico padrão no direito brasileiro em relação a
cada dos tópicos mencionados. Exatamente por isso, em segundo lugar, para que
se possa compreender a riqueza dos regimes jurídicos, cumpre à ciência do direito
administrativo oferecer uma “escala de dominialidade”, em que se distribuem os
bens de acordo com a maior ou a menor incidência de direito público e privado. Ao
se posicionar um bem dentro da escala de regimes jurídicos, deseja-se indicar de
modo mais preciso o conjunto de regras e princípios jurídicos que sobre ele incidem,
afastando-se da falsa ideia de que o regime dos bens é ou completamente público
ou privado.
É ainda comum encontrar a expressão regime jurídico no singular como se
um objeto jurídico (seja uma pessoa, uma atividade ou um bem) fosse regido por
1. Esse capítulo retoma e reproduz, com atualizações, reduções e simplif‌icações, parte da exposição mais
completa e detalhada desenvolvida em MARRARA, Thiago; FERRAZ, Luciano. Tratado de direito admi-
nistrativo, v. 3: direito administrativo dos bens e restrições estatais à propriedade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME II • Thiago Marrara
190
um corpo imutável e invariável de normas jurídicas. A construção teórica de uma
escala de regimes jurídicos objetiva superar essa concepção estática. Sobre pessoas,
atividades e bens de que cuida o ordenamento jurídico, não existe um único regime.
Por consequência, sobre um mesmo e único bem, há praticamente tantos regimes
quanto o número de contextos nos quais o bem se insere. O rótulo ou a natureza
do objeto para o direito não def‌inem isoladamente o regime jurídico. Na verdade,
vários fatores se conjugam nessa construção, incluindo, ao menos: titularidade,
natureza jurídica e função.
A escala de dominialidade parte da premissa de que sobre um objeto jurídico,
incluindo bens, existem regimes estruturais e regimes funcionais. Os estruturais
representam o corpo de normas básicas que atingem o bem por sua própria essência
ou natureza jurídica. O fato de um bem ser móvel o submete a regras diversas que
dif‌icilmente variarão por alterações funcionais. Vinculado ou não ao Estado, utilizado
ou não em serviço público, sobre ele incidirão as normas referentes aos móveis. Ao
estrutural se adicionam os regimes funcionais. Eles consistem em blocos de normas
regentes de um bem por força da função que exerce. Enquanto o regime jurídico
estrutural decorre da essência ou da natureza do bem, os funcionais se baseiam na
função por ele exercida e variam de acordo com as mudanças no emprego do objeto,
a despeito de mantido o regime jurídico estrutural. A diferenciação desses regimes
é essencial para a compreensão da dinâmica do direito, e não somente em matéria
de bens, como demonstra Eros Roberto Grau ao examinar as empresas estatais.2
17.2 ESCALA DE DOMINIALIDADE: A PLURALIDADE DE REGIMES
JURÍDICOS
Por muito tempo, vigorou na doutrina a visão dicotômica do regime jurídico
dos bens – visão derivada de um apego à tradição civilista de separá-los conforme a
titularidade. Como o Código Civil somente menciona bens públicos e bens priva-
dos, por paralelismo, a doutrina tendeu a reduzir os regimes a dois. Sucede que esse
raciocínio bipolar faliu, pois se tornou insuf‌iciente para explicar a realidade social e
estatal. O cruzamento de critérios subjetivos e funcionais revelou que a bipartição
dos regimes jurídicos encontrou seus limites. Não ref‌lete a complexidade da matéria.
Há bens estatais públicos, mas também bens estatais privados. Há bens privados em
regime comum e outros que, por uma vinculação com funções da administração
pública, sujeitam-se à incidência signif‌icativa do direito administrativo como se
públicos fossem. Na evolução histórica, chegou-se, hoje, a um cenário em que nem
tudo o que é estatal é público e nem tudo que é particular é privado.
É por conta dessa simples constatação que se justif‌ica a necessidade de se passar
da tradicional, porém restrita “teoria dos bens públicos” para o campo abrangente
2. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 152.
191
17 • GESTÃo DE BENS
do “direito administrativo dos bens”, que abrange três grupos patrimoniais: bens
estatais públicos, bens estatais privados e bens privados em função pública (ou bens
públicos fáticos). Sob enfoque analítico alargado, a compreensão do regime jurídico
dos bens públicos reduz-se a mero capítulo de uma investigação bem maior e que
lida com bens compreendidos em inúmeros pacotes normativos.
À luz do direito administrativo dos bens, os regimes jurídicos são variados e
diversif‌icados. Perde sentido explicá-los a partir da distinção clássica entre regime
de direito administrativo e regime de direito privado. A complexidade real pede nova
fórmula explicativa dos regimes jurídicos e, como resposta a essa demanda, desponta
a teoria da escala de dominialidade. Trata-se de escala teórica que serve para indicar
um conjunto de regimes jurídicos graduados de acordo com a interferência maior
ou menor do direito administrativo.
Em face de fatores práticos e legislativos, a escala de dominialidade brasileira
deve abranger ao menos cinco degraus. O primeiro deles, aqui denominado de
“domínio público estatal”, inclui os bens públicos de uso comum do povo e os bens
públicos de uso especial. Esses são os bens que mais intensamente se sujeitam
ao direito administrativo. O segundo, chamado de “domínio público impróprio”,
engloba os bens de pessoas jurídicas de direito privado em função pública, sobre-
tudo os reversíveis por força de contratos de delegação de serviços públicos, mas
não apenas eles. O terceiro, “domínio público não afetado”, designa o conjunto de
bens dominicais. O quarto, “domínio privado estatal”, abrange os bens de pessoas
estatais de direito privado sem vinculação a atividades públicas. E o quinto degrau
da escala, “domínio privado não estatal”, compõe-se de bens que se situam fora do
direito administrativo dos bens e que se sujeitam tão somente a normas de restrição
da propriedade baseadas no poder de polícia.
Em contraste ao que se sustentou em tese concluída sobre a matéria em 2005
e publicada em 2007,3 a escala de dominialidade aqui apresentada é mais fragmen-
tada, mais aprofundada, pois aparta o conjunto de bens dominicais do de bens
estatais privados. É verdade que tais bens exercem funções semelhantes na prática.
No entanto, o direito positivo cria regras que se aplicam aos primeiros, mas não aos
segundos. Certa norma constitucional, por exemplo, consagra a imprescritibilidade
de bens dominicais imóveis, proteção que não atinge bens estatais privados. Essas
diferenças se justif‌icam em virtude da titularidade. Enquanto os dominicais perten-
cem a pessoas jurídicas públicas, os estatais privados encontram-se no patrimônio
de pessoas jurídicas de direito privado.
Uma vez que a escala de dominialidade proposta para explanar o regime jurí-
dico dos bens se pauta simultaneamente nos dois critérios que permeiam o estudo
da matéria, o subjetivo (subjacente às normas do Código Civil) e o funcional (mais
presente nos estudos administrativos), dela consta a titularidade como um dos fa-
3. MARRARA, Thiago. Bens públicos, domínio urbano, infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 94.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT