Restrições à propriedade

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RESTRIÇÕES À PROPRIEDADE
14.1 PROPRIEDADE: CONCEITO E RESTRIÇÕES
Muito simplif‌ica damente, no sistema jurídico pátrio, a propriedade abrange o
direito de usar, gozar, dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la de quem quer
que injustamente a possua ou detenha (art. 1.228 CC). Esses direitos apresentam três
características ideais. São absolutos, exclusivos e perpétuos. Absolutos, pois valem
até que o ordenamento lhes coloque um limite de conteúdo ou modo; exclusivos,
pois reservados ao proprietário ou a alguém por ele autorizado; perpétuos, pois du-
ram enquanto o particular não dispuser da propriedade ou enquanto o objeto não
desaparecer ou for transferido para o patrimônio de outrem em razão das formas de
extinção da propriedade.
A propriedade idealmente considerada sofre necessárias restrições no quotidia-
no para viabilizar a convivência harmônica. Essas restrições variam de acordo com
o sistema jurídico considerado e o momento histórico. Quanto mais a coletividade
se preocupar com os interesses coletivos e difusos, maiores serão as restrições da
propriedade individual. Diversamente, nos contextos em que a coletividade é menos
valorizada, menores serão as restrições aos direitos do proprietário. Não por outra
razão, hoje, pelo fato de a sociedade se preocupar crescentemente com os danos que
os usos das propriedades geram a bens difusos e a terceiros, desponta uma tendência
clara de se intensif‌icar as restrições ao proprietário.
A multiplicação dessas restrições transbordou o direito administrativo e aca-
bou por contribuir para a formação de novos ramos, como o direito urbanístico e
o direito ambiental. Além disso, a referida preocupação social com a propriedade
fez que as restrições se ampliassem, de modo que elas atualmente abrangem não
somente deveres de abstenção e de tolerância do proprietário em relação a atuações
estatais, mas também deveres positivos (“de fazer”), como o de edif‌icar, o de parcelar
ou o de restaurar.
Tudo isso mostra que o fundamento maior da propriedade e de suas restrições
pelo Estado é a coleti vi dade! Houvesse uma única pessoa na terra, não seria útil
separar os objetos sob sua propriedade dos de outrem. Todos os objetos seriam seus,
ao menos potencialmente. A f‌ixação da propriedade e de seus direitos tornar-se-ia
completamente prescindível. É por isso que se diz que a propriedade resulta do fe-
nômeno social, ou melhor, da necessidade de separação das esferas dos indivíduos
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME II • Thiago Marrara
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que convivem em comunidade. O fundamento e a própria garantia da propriedade
são o povo.
Ao mesmo tempo em que o grupo social torna útil o instituto da propriedade
como sistema de distinção dos bens, ele impõe condicionamentos aos donos. A
divisão de esferas individuais subjacente à propriedade sustenta suas restrições.
Por isso, a propriedade é absoluta, perpétua e exclusiva apenas num plano abstrato
e ideal. Na prática, ela sempre será limitada, exatamente para se impedir que seja
gerida de modo incompatível com direitos alheios, individuais ou transindividuais.
Ao se impor restrições à propriedade por meio do Estado como instituição a serviço
do povo, busca-se compatibilizá-la com o interesse de todos e torná-la, com isso,
útil ao proprietário e aos que com ele convivem.
14.2 PRINCÍPIOS LIMITADORES DAS RESTRIÇÕES ESTATAIS
Em modelos democráticos, é o Estado como entidade representante da coleti-
vidade que cria e garante o direito de propriedade e, ao mesmo tempo, delineia suas
restrições e as executa. Ele age em nome do corpo social e, para proteger interesses
públicos ou combater ilegalidades, limita os direitos fundamentais, nos quais se
incluem a liberdade e a propriedade. Isso signif‌ica que os atos, normativos ou con-
cretos, que impõem restrições estatais à propriedade, em última instância, buscam
promover interesses públicos primários. Assim, todo e qualquer tipo de restrição
que tiver por escopo a promoção de meros interesses pessoais da autoridade pública
ou estranhos à Administração Pública serão ilícitos, por desvio de f‌inalidade e por
violação dos princípios do interesse público e, eventualmente, da impessoalidade.
Papel igualmente relevante para o exame de validade de restrições à propriedade
é exercido pelo princípio da legalidade administrativa. Como o Estado age de modo
a afetar o direito fundamental de propriedade (art. 5º, XXII CF), é preciso que toda e
qualquer forma de restrição observe a reserva legal, ou seja, que obtenha autorização
do Poder Legislativo como órgão representante da coletividade. Em outras palavras,
exige-se que as restrições à propriedade encontrem previsão na Constituição ou
em lei, pois é daí que retiram legitimação democrática. Não por outro motivo, as
desapropriações estão expressamente listadas no texto constitucional por serem
a maior das restrições, já que retiram do patrimônio de certa pessoa um objeto de
propriedade. Além da desapropriação, muitas restrições aparecem na Constituição,
como as requisições. No entanto, não é essencial que todas elas constem do texto
constitucional. Imprescindível para a validade jurídica da restrição é que baseada
ao menos em lei em sentido formal. E isso decorre do art. 5º, II da Constituição, de
acordo com o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”.
Mesmo as restrições mais simples deverão encontrar algum fundamento em
lei por força do mandamento transcrito. No entanto, nos casos menos restritivos,

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