Capítulo 16 - Instrumentos extraprocessuais e extrajudiciais da tutela coletiva

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CAPíTUlO 16
INSTRUMENTOS EXTRAPROCESSUAIS E
EXTRAJUDICIAIS DA TUTElA COlETIVA
Os instrumentos extraprocessuais são aqueles que podem ser utilizados e
aplicados sem a necessidade da existência formal de uma relação jurídica de direito
processual, enquanto os instrumentos extrajudiciais são aqueles que não precisam
de judicialização para surtirem os seus regulares efeitos. Os instrumentos previstos
para a tutela coletiva são: inquérito civil, procedimento preparatório, termo de ajus-
tamento de conduta, acordo de leniência e recomendação.
1. INQUÉRITO CIVIL (RES. 23 CNMP E ARTS E LACP)
O inquérito civil encontra regulamentação, decorrente da Constituição (art. 129, III,
CR/88) e no plano infraconstitucional nas seguintes normas: art. 8º, § 1º, LACP; art. 6º,
Lei 7.853/1989; arts. 201, V e 223, ECA; art. 26, I, LONMP e art. 6º, LONMPU. No plano
infralegal, há a resolução 23, CNMP que preconiza as principais regras procedimentais
sobre o tema. Os Ministérios Públicos estaduais e o federal podem regulamentar em reso-
luções próprias, desde que não conf‌litam com a resolução do CNMP, normas específ‌icas.1
Interessante mencionar que as regras que regulamentam o inquérito civil são
meramente procedimentais e não processuais, portanto, a União e os estados ostentam
competência concorrente para legislar sobre o tema, conforme art. 24, XI, CR/88. O
STF, no bojo da ADI 1285/SP, reconheceu esta possibilidade.2 Assim, entendo que
o âmbito de regulamentação infralegal (por meio das resoluções locais) tem como
limite a regulamentação infraconstitucional, mormente quando tiver como objetivo
a restrição da atividade funcional dos membros do MP. A doutrina mais autorizada
sobre o tema segue o mesmo entendimento af‌irmando que as normas assim editadas
devem se manter adstritas ao espaço de conformação alcançado pela autonomia
administrativa do MP, sem poder exorbitá-la.3
1.1. Conceito e natureza jurídica
O inquérito civil é um instrumento extraprocessual e extrajudicial de atribuição
exclusiva do MP,4 cuja f‌inalidade é reunir os substratos mínimos para a formação do
1. No âmbito do MPRJ vige a resolução GPGJ (Gabinete do Procurador Geral de Justiça) 2227/2018.
2. ADI 1285/SP, Pleno, rel. Min. Moreira Alves, DJe 23.03.2001 (informativo 221).
3. GARCIA, Emerson. Ministério Público: Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 291.
4. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. Malheiros, 2010. p. 385
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seu convencimento e possibilitar a adoção da solução mais adequada e efetiva para
a tutela da coletividade, seja com a judicialização da questão (visão demandista da
tutela coletiva) ou com a adoção dos demais meios de solução dos conf‌litos (visão
resolutista da tutela coletiva). É um instrumento que não tem por f‌im, portanto,
somente reunir um conjunto probatório para f‌ins de judicialização, posto inserido
no sistema multiportas. Há quem o considere, também, como uma cautelar prepara-
tória probatória sui generis.5 É um procedimento administrativo, sendo instrumento
exclusivo da tutela coletiva. Não há a possibilidade de instauração de inquérito civil
nos casos de lesão aos direitos meramente individuais, ainda que sejam indisponí-
veis. Nada obstante, o inquérito civil pode servir de fundamento para ação penal
pública. O STF6 e o STJ7 admitem tal uso com certa tranquilidade. Se houver dúvida
do membro do MP acerca do tema ser afeto à tutela coletiva, não deve ser instaurado
inquérito civil, mas procedimento preparatório. O procedimento preparatório será
analisado em tópico específ‌ico.
1.2. Características
As características principais do IC estão descritas na resolução 23, CNMP (art.
1º). Nada obstante, abordá-las-ei neste tópico tecendo as considerações relevantes.
a) of‌icialidade: o inquérito civil, por ser um procedimento administrativo, deve
ser instaurado formalmente, que se dá por meio de um despacho (promo-
ção) fundamentado do membro do mp devidamente exteriorizado por uma
portaria. este formalismo indica a of‌icialidade (art. 2º, Res. 23, CNMP).
b) publicidade: como regra, o inquérito civil é público, bem como seus atos.
Por meio de promoção do MP, devidamente fundamentada, em casos excep-
cionais, será decretado o sigilo parcial ou total (arts. 7º e 8º, Res. 23, CNMP
c/c Lei 12.527/2011; art. 4º, Res. 2 do CNJ/CNMP e art. 7º, XIII, XIV e XV,
EOAB). Diante desta característica, surge um questionamento interessante:
aplica-se a Súmula Vinculante 14 no inquérito civil? São encontrados dois
entendimentos sobre o tema: 1ª tese: deve ser aplicada no inquérito civil.
Pela literalidade da súmula, que só faz referência a ação criminal (polícia ju-
diciária), poderia ser concluída a inaplicabilidade, porém deve ser extraída a
ratio decidendi desse precedente. A norma do precedente versa sobre o acesso
da defesa técnica aos autos de procedimento investigatório, porém, adstrito
às diligências já realizadas e formalizadas nos autos. Diligência encetada é a
determinada, mas ainda pendente. Logo, a defesa técnica não pode ter acesso
a essas diligências, sob pena de frustrar a investigação. A defesa técnica, em
5. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. O inquérito civil como uma cautelar preparatória probatória sui generis.
MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 219.
6. RE 597.727/MG, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 14.05.2016.
7. AgRg no REsp 1.319.736/MG, rel. Min. Felix Fischer, DJe 17.03.2015; AgRg no AREsp 625.101/DF, rel.
Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., j. 18.02.2016, DJe 23.02.2016.
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meu sentir, não pode ter acesso quando a investigação já formalizada nos
autos indica quais serão as próximas diligências, mas somente àqueles que já
foram integralmente encerradas. De qualquer forma, a promoção ministerial
deve estar devidamente fundamentada (fundamentação adequada e especí-
f‌ica). Como justif‌icar a aplicabilidade da SV? Aplicação direta da técnica do
distinguishing, que é a comparação entre o caso concreto e a ratio decidendi
do precedente. 2ª tese: a aplicação é exclusiva para as investigações de
índole criminal. O STF proferiu decisões neste sentido.8
A doutrina, de uma forma geral, seguindo a linha do que aqui foi sustentado,
apresenta hipóteses nas quais a publicidade merece mitigação: a) quando puder
causar dano signif‌icativo à imagem do investigado; b) quando o MP teve acesso à
informação sigilosa colacionada aos autos; c) quando a publicidade puder causar
danos à coletividade e à efetividade procedimental.9 Vale lembrar que a exposição
indevida do investigado poderá ensejar a prática de abuso de autoridade (art. 38, da
c) inquisitivo: não há contraditório e ampla defesa. Nada obstante, é plenamen-
te possível que o membro do MP possibilite o exercício do contraditório e
da ampla defesa. O MP pode notif‌icar o investigado para que preste esclare-
cimento. Pode permitir que ele indique testemunhas para serem ouvidas. O
exercício do contraditório gera duas consequências importantes: i) confere
mais viés democrático ao procedimento; ii) confere maior valor ao substrato
probatório reunido ao longo do procedimento.
d) dispensabilidade (art. 1º, parágrafo único, Res. 23, CNMP): o inquérito
civil é dispensável para o manejo de qualquer instrumento típico de tutela
coletiva. Para celebrar TAC, acordo de leniência ou expedir recomendação
será imprescindível pelo menos a existência de procedimento administrativo
ou um instrumento formalizado, salvo nos casos de urgência.
e) ausência de controle judicial da promoção de arquivamento: o inquérito
civil, no que pertine ao arquivamento, sofre controle interna corporis. A ho-
mologação ou não da promoção de arquivamento é da atribuição do próprio
MP, sem participação judicial. O membro do MP promove o arquivamento
e essa promoção sujeitar-se-á ao reexame necessário do órgão colegiado su-
perior. No caso do MP da União é a Câmara de Coordenação e Revisão (art.
62, IV, c/c 171, da LC 75/1993). No MP Estadual é o Conselho Superior do
MP (art. 9º, § 1º da LACP)10.
8. Rcl 8458 AgRg, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 26.06.2013, DJe 19.09.2013; Rcl 10771 AgRg, rel. Min.
Marco Aurélio, j. 04.02.2014, Dje 18.02.2014.
9. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. O inquérito civil como uma cautelar preparatória probatória sui generis.
Op. cit., p. 224. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. Op. cit., p. 339.
10. Com o advento da Lei 13.964/19, com a nova redação conferida ao art. 28 do CPP, não há mais a antiga
diferença entre o arquivamento do inquérito policial e o do inquérito civil, pois ambos sofrem somente o
controle interna corporis.
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