Capítulo 9 - Competência

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CAPíTUlO 9
COMPETÊNCIA
1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
Existem dois conceitos sobre competência com consequências distintas. Tradi-
cionalmente, a competência é def‌inida como medida ou parcela da jurisdição estatal.
Observa-se que, por essa def‌inição, vincula-se a existência da competência à exis-
tência da própria jurisdição, relacionando-a ao plano da existência. Para uma visão
mais moderna, competência é o âmbito dentro do qual o juízo exerce de forma válida
a jurisdição, nesse sentido, a competência relaciona-se ao plano da validade. Assim,
o juízo incompetente ostenta jurisdição, porém os atos praticados não serão válidos.
Tanto é assim, que se for reconhecida a incompetência do juízo, o juízo que receber
o feito terá a oportunidade de ratif‌icar os atos praticados pelo juízo incompetente.
Trata-se do princípio da competência aparente ou translatio iudici com previsão
no art. 64, § 4º, do CPC/15. Por este princípio, conservam-se os efeitos da decisão
proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo
juízo competente. Assim, entendemos que a competência possui natureza jurídica
de pressuposto processual de validade (art. 485, IV, CPC). Entretanto, vale mencio-
nar dois tópicos decorrentes desta conclusão: a) possibilidade de reconhecimento
de ofício do vício da incompetência; b) possibilidade da extinção do processo sem
resolução de mérito em decorrência do reconhecimento da incompetência.
O vício da incompetência, como regra, somente poderá ser reconhecido de
ofício nos casos de inobservância das regras absolutas de f‌ixação da competência
(art. 64, § 1º, CPC), ou seja, quando verif‌icada a incompetência absoluta. Trata-se
de vício processual que pode ser reconhecido de ofício em qualquer tempo ou grau
de jurisdição, desde que o seja até dois anos após o trânsito em julgado (arts. 966,
II c/c 975, CPC). Assim, caso seja verif‌icada a ocorrência de vício da incompetência
absoluta em sede de cumprimento de sentença (arts. 525, § 1º, VI e 535, V, CPC),
deverá ser observado decurso do prazo decadencial de dois anos para a propositura
da ação rescisória, sob pena de permitir, por via indireta, a consecução de objetivo
que não é mais permitido por via direta. O vício da incompetência relativa, por ou-
tro lado, somente poderá, como regra, ser reconhecida mediante requerimento do
réu, porque versa sobre inobservância de regras relativas, portanto derrogáveis, de
f‌ixação da competência. O vício da incompetência relativa deverá ser alegado como
preliminar em sede de contestação no procedimento comum de processo de conhe-
cimento (arts. 64 c/c 337, II, CPC) ou como matéria de defesa em sede de impugna-
ção ao cumprimento de sentença (artes. 525, § 1º, VI e 535, V, CPC). Caso não seja
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realizada tal manifestação ocorrerá a denominada prorrogação de competência, ou
seja, o juízo anteriormente incompetente tornar-se-á o competente (art. 65, CPC).
É possível, porém, o reconhecimento de ofício do vício da incompetência relativa,
desde que o órgão jurisdicional verif‌ique a presença de um foro de eleição abusivo.
Deverá o juiz declarar tal cláusula como inef‌icaz e remeter os autos para o juízo do
foro do domicílio do réu (art. 63, § 3º, CPC). Como visto no capítulo dos ref‌lexos
do CPC/15 nos processos coletivos, não será possível nas demandas coletivas a re-
alização de negócio jurídico processual para f‌ins de eleição de foro, pois a regra de
competência aplicável é absoluta.
O segundo tema que deve ser abordado como consequência da af‌irmação da
natureza de pressuposto processual de validade é informar qual será a consequência
processual do reconhecimento do vício da incompetência. Para facilitar a compre-
ensão do tema, dividirei as consequências conforme o tipo de vício processual: a)
incompetência absoluta: como regra, haverá a anulação dos atos judiciais decisórios,
desde que o juízo competente, para o qual os autos foram remetidos, deixe de ratif‌icar
os atos praticados pelo juízo incompetente (art. 64, § 4º, CPC). Outra consequência
processual é a possibilidade da rescisão da coisa julgada material (art. 966, II, CPC);
b) incompetência relativa: como regra, haverá somente a remessa dos autos ao juízo
competente, mas sem a decretação da invalidade dos atos judiciais decisórios. Nada
obstante, o juízo competente, que recebe os autos, poderá ratif‌icar ou não os atos
decisórios já praticados. Outra consequência processual será a extinção do processo
sem resolução do mérito, no âmbito do juizado especial cível estadual (art. 51, III da
Lei 9.099/1995). Assim, é correto af‌irmar que, apesar da competência ser um pres-
suposto processual de validade (art. 485, IV, CPC), não haverá, como regra geral, a
extinção do processo sem resolução de mérito.
2. REGRA GERAL DE COMPETÊNCIA
Em regra, a competência é def‌inida pelo foro do local do dano (arts. 93, CDC,
2º, LACP e 209, ECA). Excepcionalmente, o critério será em razão da pessoa, ou seja,
será imprescindível visualizar a qualif‌icação jurídica da parte e o âmbito de atuação
funcional. É o que ocorre no mandado de segurança coletivo e no mandado de in-
junção coletivo. Impende salientar que trata-se de regra absoluta de competência,
apesar do uso de um critério territorial.1 Em verdade, trata-se de uma regra, como
sustenta parcela da doutrina, territorial-funcional de competência, pois o legislador
levou em consideração o local do dano, mas sem ter como diretriz o interesse das
partes, e sim o viés de indicar um juízo que ostentará maior possibilidade de profe-
rir uma decisão mais efetiva, na medida em que o juízo do local do fato terá maior
1. “Recorde-se que a competência funcional é estabelecida quando diversas funções num mesmo processo, coor-
denadas à mesma atuação da vontade da lei, são atribuídas a órgãos jurisdicionais diversos, como ocorre na
competência por graus de jurisdição ou mesmo na competência para a ação de cognição e posteriormente para
a ação de execução.” LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. Op. cit., p. 265.
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proximidade com os fatos e com a coleta probatória.2 Apesar de entender a premissa,
baseada, principalmente na literalidade da norma em comento e do conceito do cri-
tério funcional, reputo mais adequado af‌irmar que o termo “funcional” empregado
pelo legislador no art. 2º, LACP teve o simples condão de reforçar a ideia de que se
trata de uma competência absoluta. O legislador, atento a isso, corrigiu a ideia pro-
palada e, na redação do art. 209, ECA e do art. 80 do Estatuto do Idoso, passou a usar
expressamente o designativo “absoluto”, sem a necessidade de referência expressa
ao critério funcional. Esta percepção é encontrada na maior parte das obras sobre
o tema.3 Há quem sustente que se trata de uma regra funcional de competência.4 É,
portanto, independentemente da natureza f‌ixada, uma regra de competência abso-
luta inderrogável pela vontade das partes, improrrogável e cognoscível ex off‌icio pelo
órgão jurisdicional.
Apesar da omissão no CDC, a regra de competência para a propositura das de-
mandas coletivas consumeristas, assim como para as demais, é absoluta, em virtude
da mútua complementariedade entre as normas integrantes do microssistema da
tutela coletiva.5
Como podemos inferir da leitura dos arts. 2º, caput, LACP e 93 do CDC, a regra
geral é o foro do local do dano. O dano de âmbito local é aquele cuja extensão terri-
torial é pequena, ou seja, o dano não terá uma repercussão ampla. Não há maiores
dif‌iculdades para esta conceituação, bem como consequências processuais práticas.6
Observa-se, contudo, que nos casos de danos de âmbito nacional ou regional, o inciso
II do art. 93 do CDC estabelece que a competência será do foro da capital do estado
ou no Distrito Federal. Porém, não se def‌iniu os critérios para diferenciação do que
seria dano de âmbito nacional ou regional. Para alguns autores, dano que atinge mais
de um município é dano de âmbito regional. Para outros, dano de âmbito regional
seria o dano que atingisse mais de um município de regiões diferentes. Outros falam
2. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. Op. cit., p. 266. PIZZOL, Patricia Miranda. A
competência no Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 573-574.
3. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. Op. cit., p.
134. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública e meio ambiente. São Paulo: Forense Universitária,
2003, p. 120-121; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Interesses Difusos e Coletivos. Revista Trimestral de direito
público. São Paulo: Malheiros, 1993, n. 3, p. 193; MENDES, Aluísio Gonçalves. Competência Cível da justiça
federal. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 19; VICENZI, Brunela Vieira de. Competência funcional – distorções.
Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, nº 105, p. 277-278.
4. BARBI, Celso Agrícol. Comentários ao Código de Processo Civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. 1, p.
320; FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 4ª ed. v.1 Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.99; MARINONI,
Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 165; SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. 10ª ed. v.1. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 150.
5. “Não seria correta a af‌irmação de que a competência instituída pelo Código de Defesa do Consumidor para as
demandas coletivas é relativa, não absoluta, como aquela relacionada às demandas da Lei de Ação Civil Pública.”
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. Op. cit., p. 277.
6. “Parece que nesse caso o dano não terá repercussão muito ampla, estando limitado a produtos ou serviços que
atingirão tão somente pessoas domiciliadas em pequena área territorial, sendo a característica principal a pequena
extensão geográf‌ica do dano.” NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do Processo Coletivo. Op. cit., p.
180.
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