O Código Civil de 2002 e o impacto da pandemia no equilíbrio das relações obrigacionais

AutorNancy Andrighi
Ocupação do AutorEx-aluna da gloriosa Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ministra do Superior Tribunal de Justiça.
Páginas149-176
O CÓDIGO CIVIL DE 2002
E O IMPACTO DA PANDEMIA NO EQUILÍBRIO
DAS RELAÇÕES OBRIGACIONAIS
Nancy Andrighi
Ex-aluna da gloriosa Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Ministra do Superior Tribunal de Justiça.
“Cosa grande es un Código Civil
(Angel Ossorio)
Sumário: 1. O contexto da crise: a peste – 2. A relação jurídica obrigacional como processo – 3.
O enfrentamento do desequilíbrio contratual; 3.1 Soluções negociais; 3.2 Soluções legais; 3.2.1
Delineamentos dogmáticos das principais teorias; 3.2.2 Conformação atual do direito positivo
brasileiro; 3.3 A interpretação do superior tribunal de justiça nos últimos 5 anos; 3.4 Reexões
acerca da revisão contratual no contexto da pandemia – 4. Conclusão – 5. Bibliograa.
1. O CONTEXTO DA CRISE: A PESTE
“Os agelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles
quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guer-
ras. E, contudo, as pestes, assim como as guerras, encontram sempre as pessoas
igualmente desprevenidas”.
O excerto acima, extraído da obra A Peste, Magnum Opu s de Albert Camus,
proeminente escritor franco-argelino vencedor, em 1957, do Prêmio Nobel de
Literatura, não poderia ser mais atual.
O romance, publicado em 1947, pouco após o m da Segunda Guerra Mun-
dial, “best-seller” em meio à atual pandemia, narra a história dos habitantes da
cidade de Orã, na Argélia, que se veem às voltas com uma inesperada epidemia.
Solidariedade, egoísmo, losoa, ética, moral, solidão, amor, revolta, exílio,
são alguns dos temas fundamentais que permeiam a obra, alegoria da condição
humana, entrelaçando-se para criar um universo literário de triste atualidade,
capaz de fornecer elementos para a compreensão dos dilemas da sociedade con-
temporânea.
Se há alguns anos o romance pareceria distante da realidade, atualmente,
parece narrar, com muita similaridade, as angústias e os impactos sofridos pela
sociedade humana em virtude da Pandemia de Covid-19.
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Com efeito, a atual crise sanitária, além dos incalculáveis impactos negativos
medidos, sobretudo, e infelizmente, por vidas humanas perdidas, afetou todos os
setores do sistema jurídico.
A crise, no entanto, não é a primeira a impactar o mundo jurídico e a exigir
soluções dos operadores do Direito.
Em 23 de janeiro de 1918 foi publicada, na França, a famosa Lei Faillot, apro-
vada no último ano da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), fruto de projeto
apresentado pelo deputado Auguste Gabriel Failliot tendo em vista os impactos
do conito mundial no equilíbrio dos contratos.
Tratava-se de uma “lei de guerra, de caráter transitório, mas que introduziu
no ordenamento jurídico um suporte normativo que possibilitou a resolução, por
qualquer das partes contratantes, de obrigações de fornecimento de mercadorias
e alimentos, contraídas antes de 1º de agosto de 1914, bem assim que ostentassem
a natureza sucessiva e continuada, ou apenas diferida”.1
Menciona-se, por oportuno, os artigos primeiro e segundo da vetusta le-
gislação:
Art. 1º. Na pendência da guerra, e até sua expiração, por um prazo de três meses a partir da
cessação das hostilidades, as disposições excepcionais desta lei são aplicáveis aos negócios
e aos contratos de caráter comercial, por ambas as partes ou por uma delas somente, con-
cluídos antes de 1o de agosto de 1914, e que consistam seja na entrega de mercadorias ou
de gêneros, seja em outras prestações, sucessivas ou apenas diferidas.
Art. 2º. Independentemente de causas de resolução oriundas do direito comum ou de con-
venções particulares, os negócios e contratos mencionados no artigo precedente podem
ser resolvidos a pedido de qualquer uma das partes, se provado que, por razão do estado de
guerra, a execução das obrigações de um dos contratantes envolver encargos que lhe causam
um prejuízo de uma importância que ultrapassa e muito as previsões razoavelmente feitas
à época da convenção.
A Lei Failliot representou, com efeito, marco fundamental da interferência
legislativa na execução dos contratos e da moderna concepção de revisão contra-
tual, cujas origens remontam à cláusula rebus sic stantibus2, concebida, no período
1. RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da im-
previsão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 29. Adverte Otavio Luiz Rodrigues Jr. que a Lei Failliot não
foi a primeira a reconhecer a teoria da imprevisão: “Na Itália, o Decreto Real n. 739, de 27 de maio de
1915, já admitia a intervenção judicial nos contratos. E os arestos do Conselho de Estado, anteriores a
1918, também demonstravam as ssuras na obrigatoriedade absoluta dos contratos” (RODRIGUES
JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2006. p. 52).
2. A expressão pode ser traduzida, literalmente, por “estando assim as coisas”. O nome da referida cláusula
advém da famosa expressão medieval contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de
futuro rebus sic stantibus intelliguntur (os contratos de trato sucessivo ou a termo cam subordinados,
a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas).
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