O tratamento do nexo causal no Código Civil: uma oportunidade perdida?

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito pela PUC-RS. Especialista em Direito Processual Civil. Advogada e Professora.
Páginas69-88
O TRATAMENTO DO NEXO CAUSAL
UMA OPORTUNIDADE PERDIDA?
Flaviana Rampazzo Soares
Mestre e Doutora em Direito pela PUC-RS. Especialista em Direito Processual
Civil. Advogada e Professora.
Sumário: 1. Considerações iniciais – 2. A causa no texto do Código Civil e o nexo causal como
requisito da responsabilidade civil – 3. Delimitação conceitual do nexo causal e suas principais
correntes teóricas – 4. O nexo causal na jurisprudência – 5. Um modelo trifásico de aferição do
nexo causal e seus desaos práticos – 6. O Código Civil trata adequadamente o nexo causal?
– 7. Conclusões – 8. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O principal dispositivo do Código Civil de 1916 que dispunha sobre a
responsabilidade civil era o art. 159, o qual estabelecida que quem, “por ação ou
omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violasse direito ou causasse
prejuízo a outrem, seria “obrigado a reparar o dano”.
A análise da redação do texto legal acima referido corrobora a armação no
sentido de que, historicamente, a responsabilidade civil vinha essencialmente
atrelada à noção de culpa. Os manuais indicavam que a imputação subjetiva de
responsabilidade era a baliza central, e os casos de responsabilidade objetiva
eram residuais. A causalidade não foi considerada merecedora de atenção, pois
a redação do texto legislativo apenas a utilizava como elo entre os dois elementos
que eram considerados como prevalentes: o dano e o ilícito.
Antes da edição da Constituição Federal de 1988, as ações de responsabili-
dade civil em grande medida diziam respeito sobretudo às perdas patrimoniais
como, p. ex., acidentes de trânsito, danos em propriedades imobiliárias, danos
causados por animais, danos emergentes e lucros cessantes decorrentes de
perdas materiais. Nesse contexto, estava justicada a relevância atribuída pela
lei ao dano e ao ilícito.
Os processos que tratavam de questões vinculadas à personalidade humana
eram minoria, e essencialmente abarcavam as suas manifestações economicamen-
te apreciáveis (por exemplo, o “preço” no mercado de uma imagem utilizada sem
consentimento do titular).
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O Código Civil de 2002 (CC) modicou um pouco esse cenário, separando
o ilícito e a responsabilidade essencialmente em três artigos, art. 186, art. 187 e
art. 927, respectivamente. Os dois primeiros reconhecem como ato ilícito tanto
o abuso de direito quanto a conduta voluntária, negligente ou imprudente, que
“violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”. No
art. 927, especica a consequência da prática do ato ilícito, que é a obrigação de
reparar o dano.
Conquanto essa redação possa à primeira vista parecer singela e de fácil
aplicação, ela traz algumas informações importantes, a primeira representada
pela ampliação do conceito ampliado de ato ilícito, a segunda no sentido de que
um ato ilícito não necessariamente ensejará apenas uma repercussão de respon-
sabilidade civil, a terceira de que todo dano juridicamente relevante, “ainda que
exclusivamente moral”, pode ser passível de indenização.1
Outros interessantes avanços do Código Civil foram a redação do parágrafo
único do art. 927, que tratou da responsabilidade civil objetiva por danos decor-
rentes do exercício de atividades de risco e o art. 931, o qual atribui imputação
objetiva de responsabilidade aos empresários individuais e empresas, pelos danos
causados pelos produtos postos em circulação. O restante do “trabalho” foi feito
pelo Código de Defesa do Consumidor, que trouxe a responsabilidade objetiva
do fornecedor como regra.2
Embora esses aprimoramentos tenham sido muito importantes ao desenvol-
vimento da responsabilidade por danos, criou-se um desao: quando a imputação
objetiva da responsabilidade passa a ter protagonismo, o nexo causal desloca-se
da periferia para a centralidade do tema.
Isso não quer dizer que a vítima do dano na responsabilidade subjetiva
tenha facilidade de prova do nexo causal, quando a descoberta da sua real causa
dependa de uma investigação apurada, por meio de perícia, por exemplo, ou de
dados que não estejam ao alcance da parte, ou, ainda, cujo custo seja tão elevado
para um resultado incerto que torna antieconômica a investigação.
Apenas quer dizer que o ilícito perde o protagonismo na responsabilidade
objetiva, sendo essencial que exista dano juridicamente tutelado e que haja um
liame qualicado (nexo causal) entre esse dano e o apontado ofensor.
Por isso, o estudo do nexo causal passa a ser essencia l, porque as “portas de
saída” da responsabilidade quanto ao responsável passam a ser a prova de que
1. Para melhor compreensão do texto, utiliza-se a expressão “indenização” como gênero, do qual a com-
pensação (típica dos danos extrapatrimoniais), e a reparação (condizente com os danos patrimoniais),
são espécies.
2. Alguns sustentam que o CDC teria suplantado o art. 931 do CC, outros que as regras deveriam ser
conjugadas e interpretadas harmonicamente.
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