Construindo a Noção de Dano Moral Coletivo. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Sua Dimensão ou Projeção Coletiva

AutorCosta, Marcelo Freire Sampaio
Páginas23-45
Dano Moral Coletivo nas Relações Laborais
23
Capítulo 1
CONSTRUINDO A NOÇÃO DE
DANO MORAL COLETIVO.
DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E A SUA DIMENSÃO
OU PROJEÇÃO COLETIVA
Este capítulo pretende desenvolver aspectos relacionados à descoberta de um
novo perfil(7) do Direito Civil, voltado à necessária adequação constitucional (prévia),
à interpretação dessa disciplina, bem como construir noção de dignidade da pessoa
humana cuja dimensão ultrapasse os limites da individualidade.
Acredita-se ser o caminho pertinente para alcançar o objeto teórico principal
deste ensaio, qual seja o estudo do dano moral coletivo.
Iniciar-se-á demonstrando a aproximação das categorias de direito público e
privado, ocasionando novel posicionamento ou reposicionamento do ser humano
no seio das relações privadas.
1. Desconstrução do paralelismo entre o público e o privado
O Direito Civil clássico foi solidificado tendo em conta a antiga summa divisio
pertinente à delimitação estanque entre direito público e privado do Corpus Iuris
Civilis romano, “corporificada na sentença de Ulpiano: ius publicum est quod ad
statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem”(8).
O direito público personificava unicamente as relações do Estado romano. O
direito privado era a disciplina dos cidadãos(9). Ambos eram estanques e afastados,
(7) Expressão de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad.
de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
(8) PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 12. (o
direito público corresponde às coisas do Estado; o direito privado está relacionado à disciplina dos
cidadãos — tradução livre).
(9) Idem.
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Marcelo Freire Sampaio Costa
como se fossem linhas paralelas(10), tal qual a metáfora do “jardim e a praça”(11),
cada um possuindo lógica completamente distinta e própria.
O ocaso do paradigma liberal(12)(13) em que usualmente restaram privilegiados
os valores relacionados à extremada intangibilidade da liberdade individual em de-
trimento dos poderes estatais com fundamento na observância do (dogma) sistema
da separação de poderes ou funções, as promessas incumpridas do verdadeiro Estado
Social do século anterior nas economias periféricas — como é o caso brasileiro(12) —,
a leitura constitucional crítica(13) e com pretensões transformadoras do movimento
chamado de neoconstitucionalista(14), entre outros fatores, acabaram por gerar a
aproximação das fronteiras(15) dos campos público e privado, anteriormente, como
visto, incomunicáveis e com lógicas próprias e inconciliáveis.
O modelo liberal desenvolvido no século XVIII baseou-se na total separação
entre Estado e sociedade, portanto, entre o direito público e o privado. Não era função
estatal cuidar das relações privadas interpessoais. Os códigos, por intermédio de
um pretenso sistema sem lacunas(16), deveriam servir como uma espécie de manual
de regulação sobre como as pessoas deveriam se comportar nas relações eminente-
mente privadas, “como poderiam realizar intercâmbios, e quais as formalidades e
limites para tais relações”(17). Tratava-se “de uma ‘sociedade de Direito Privado’, na
qual cabia à codificação delimitar a esfera da liberdade privada dos indivíduos nas
relações que estes mantinham com o mercado”(18). Noutras palavras, a codificação
(10) Tal comparação talvez nem seja a mais correta levando-se em consideração, segundo as Ciências Exatas,
que as paralelas acabam encontrando-se no infinito; já os direitos público e privado, na concepção
provecta, nem no infinito se tocariam.
(11) SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social
e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1986.
(12) STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica e as possibilidades de superação do positivismo pelo
(neo)constitucionalismo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Constituição, sistemas
sociais e hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 154.
(13) Vide a imperdível obra de BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas
normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.
84-85.
(14) Acerca desse movimento, vide, com bastante proveito, DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna.
Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria de direito em tempos de interpretação
moral da Constituição. São Paulo: Landy, 2006.
(15) Sobre o assunto vide, com profundidade, SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses pri-
vados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses
públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 23-116.
(16) TEDESCHI, Sebastián Ernesto. El Waterllo del Código Civil napoleónico: una mirada crítica a los fun-
damentos del derecho privado moderno para la construcción de sus nuevos princípios generales.
In: COURTIS, Christian (Org.). Desde otra mirada: textos de teoria crítica del derecho. Buenos Aires:
Eudeba, 2001. p. 159-181 (tradução livre).
(17) Ibidem, p. 159.
(18) SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p. 69.
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