Contrato de consumo, análise econômica do direito e o distinto lugar da informação na formação das obrigações para o consumidor

AutorAmélia Soares da Rocha
Páginas93-124
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CONTRATO DE CONSUMO,
ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO
E O DISTINTO LUGAR DA INFORMAÇÃO
NA FORMAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
PARA O CONSUMIDOR
Analisadas as principais concepções contemporâneas sobre a sociedade atual e suas
mais evidentes repercussões para a pessoa consumidora e identif‌icados os fundamentos,
organização e funcionamento da defesa do consumidor no Brasil tem aqui continuidade
o estudo específ‌ico do contrato de consumo. Enfatiza-se a sua diferença do contrato cível
e do contrato empresarial, a iniciar-se por um necessário escorço histórico-comparativo,
para, então, se observarem os impactos sobre eles decorrentes da ainda incompreendida
– e muitas vezes indevidamente estigmatizada – Análise Econômica do Direito – AED.
Como se verá mais adiante analisar as repercussões econômicas dos direitos não é
inviabilizá-los, mas, ao contrário, pode ser uma forma de mais rápida e ef‌icientemente
realizá-los1. É também uma forma de, com dados concretos, potencializá-los, vez que
a defesa do consumidor – jamais se pode esquecer – é princípio da ordem econômica.
Ambas as ciências a econômica e a jurídica – têm por objeto o comportamento humano.
Se os economistas são considerados frios e calculistas, e os juristas, românticos e utó-
picos, a aproximação entre os dois campos do conhecimento pode trazer bons frutos
para a justiça da vida cotidiana.
Relembre-se de que foi demonstrado, nos capítulos anteriores, que a validade da
formação da conf‌iança do consumidor exige uma comunicação clara, com informa-
ção ef‌icaz, adaptada às variadas vulnerabilidades da pessoa consumidora a permitir a
compreensão necessária à realização de “contrato na perspectiva de uma cooperação
em busca de uma f‌inalidade comum, com base na boa-fé.” (PASQUALOTTO, 2002). O
contrato de consumo não é, assim, apenas instrumento de circulação de riquezas, mas
uma ferramenta para equilibrar a relação naturalmente desigual2 entre consumidor e
fornecedor, objetivo tão mais facilmente alcançado quanto mais ef‌icaz for a informação.
1. Na década de 1970, Orlando Gomes já reconhecia que “contrato que não pode ser entendido, de forma mais
aprofundada, na sua essência íntima, se o operador do direito se limitar a considerá-lo em uma dimensão exclu-
sivamente jurídica, como se constituísse uma realidade autônoma dos aspectos socioeconômicos e políticos”
(SILVA, 2018).
2. Tanto que a presunção de vulnerabilidade da pessoa consumidora é o primeiro princípio da Política Nacional das
Relações de Consumo – PNRC (art. 4º, I do CDC).
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CONTRATOS DE CONSUMO • AMÉLIA SOARES DA ROCHA
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Mas, diante da proliferação do comércio de dados e da atuação dos algoritmos, a infor-
mação (que é elemento essencial do contrato de consumo), o processo de formação da
vontade contratual da pessoa consumidora adquirem contornos peculiares, e merece,
nesse particular, uma observação mais atenta, pelas repercussões no próprio adimple-
mento contratual3 afetados que são especialmente pela assimetria informacional e pelos
custos de transação (que podem ser agravados com as externalidades).
Ainda no capítulo4, foram apresentados os principais aspectos do direito do con-
sumidor no Brasil, para que, neste capítulo5, se possa analisar melhor as diferenças no
âmbito dos contratos, bem como se possa estudar contratos de consumo sob as lentes
da AED. Tal ponto revela-se muito importante porque a maioria dos estudos a respeito
do direito contratual sob a metodologia da AED não diferencia – ao menos não expres-
samente – os contratos civis, dos comerciais e dos de consumo. Tal “detalhe” faz muita
diferença.
Espera-se que no quarto capítulo já se tenham amadurecidas compreensões e con-
ceitos necessários à análise das razões – explícitas ou implícitas – da judicialização do
contrato de consumo na atualidade. Para que, a partir desse “diagnóstico”, se possam
construir possibilidades concretas para o melhoramento deste “contratar”, de modo a
incentivar seu cumprimento voluntário e reduzir custos de transação, em benefício do
equilíbrio do mercado de consumo.
CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS
Como ensina Orlando Gomes (1983), o Código Civil – CC “foi o estatuto orgânico
da vida privada, elaborado para dar solução a todos os problemas da vida de relação
dos particulares” (GOMES, 1983, p. 45). Mas perdera a “generalidade e a completude”
(GOMES, 1983, p. 45), as quais certamente não recuperará, pois chegará o tempo dos
“microssistemas com a sua própria lógica e o seu método peculiar” (GOMES, 1983, p.
47) e passou o Código Civil a funcionar como “direito residual, a reger unicamente os
casos não regulados nas leis especiais, tendo perdido a sua função de direito comum,
de núcleo da legislação privada e de sede da disciplina das relações entre particulares.”
(GOMES, 1983, p. 47).
Tal constatação deu-se no início da penúltima década do século passado. Era
um momento de transição no Brasil, eis que tramitava um projeto de novo Código
Civil, vivia-se o início do “pós-ditadura militar”, a luta por eleições diretas, a admissão
3. Como será examinado no quarto capítulo, “sonegar” informação pode ser “um barato que sai caro”, pois acredi-
ta-se que não incentiva o cumprimento voluntário dos contratos, gerando judicialização e aumento dos custos
de transação.
5. Como lembram Amanda Flávio Oliveira e Felipe Moreira dos Santos Ferreira (2012), um exemplo desta impor-
tância “é o fato de que dois psicólogos ganharam o Prêmio Nobel de Economia por estudos na área da Economia
Comportamental. Em 1978, Herbert Simon, da Universidade de Carnegie Mellon, recebeu o prêmio pelos seus
estudos no desenvolvimento da ideia de ‘racionalidade limitada’, argumentando que o pensamento racional, por
si só, não explica a tomada de decisões”.
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normativa da tutela coletiva, os ensaios para uma nova Constituição e se fortalecia o
movimento por um direito específ‌ico de proteção aos consumidores, enquanto se vivia
um momento de brutal inf‌lação no país.
Hoje, já se tem uma nova Constituição, um novo Código Civil e um CDC. Mas
mesmo passadas quase três décadas de sua vigência, o CDC ainda não tem o seu campo
de aplicação devidamente compreendido e respeitado, suas ferramentas adequadamente
aplicadas e ainda sofre muitos preconceitos como se fosse inimigo do mercado, do forne-
cedor e da geração de empregos e renda, como se fosse de um paternalismo populista e
responsável. É muito comum, ainda, o uso indiscriminado de institutos do CDC, como
se iguais fossem aos do CC quando, def‌initivamente não são.
Por essa premissa, no propósito de explicar as convergências e as divergências
entre o direito do consumidor e o direito civil (representados, respectivamente, pelo
CDC e pelo CC) e sua repercussão nos direitos da pessoa consumidora, imprescindível
a análise do contexto histórico e político do surgimento do CDC, bem como o reconhe-
cimento das principais diferenças entre contrato de consumo, contrato cível e contrato
empresarial, como se verá adiante.
3.1.1 Alguns aspectos preliminares: do ajuste mútuo de vontades à adesão por
conança
O surgimento do Código de Defesa do Consumidor – CDC no cenário jurídico
nacional ocorreu num momento de grande defasagem do Código Civil – CC (PAS-
QUALOTO, 2002, p. 96). Um CC que, em 1916, após intensos debates públicos – no que
se destacam os protagonizados por Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa (ambos nordestinos)
– rompia “a ininterrupta vigência, por mais de três séculos, das Ordenações Filipinas”
(GOMES, 2006, p. 3)6, mas que lamentavelmente, ref‌letiu apenas o “ideal de justiça
de uma classe dirigente, europeia por sua origem e formação, constituindo um direito
que pouco levava em conta as condições de vida, os sentimentos ou as necessidades das
outras partes da população, mantida em um estado de completa ou meia escravidão”
(GOMES, 2006, p. 22)7.
Tal cenário fez com que o CDC f‌izesse bem ao direito civil brasileiro: seu ingresso
na arena jurídica pátria trouxe “novos ares” a todo o direito privado, que já coexistia
6. Orlando Gomes (2006, p. 9-10) denuncia, ainda, que as ordenações portuguesas vigoraram mais tempo no Brasil
que em Portugal: “Interessante insistir na observação de que as Ordenações compiladas para o Reino de Portugal
tiveram vida mais longa e inf‌luência mais decisiva no Brasil. Em 1867, Portugal organizou seu Código Civil, à
base do projeto elaborado pelo Visconde Seabra. [...] não havendo exagero na proposição de que o Código Civil
brasileiro constitui, em pleno século XX, uma expressão muito mais f‌iel da tradição jurídica lusitana do que a
que pode representar o próprio Código Civil português promulgado cerca de cinquenta anos antes”.
7. Tal distanciamento entre Direito “estatal” e realidade concreta foi bem examinado nos capítulos anteriores. E
como adverte Joseane Suzart Silva (2018) “Aqueles princípios eram de extrema importância para o atendimento
dos anseios da classe burguesa que alcançara o poder, visto que o objetivo era ampliar o campo das contratações
e fazer com que fossem cumpridas, para que os lucros não fossem afetados. Assim sendo, durante os séculos XVII
e XVIII, as codif‌icações oitocentistas disciplinavam as regras jurídicas e determinavam o cumprimento literal
da lei e dos contratos f‌irmados, independentemente do equilíbrio ou não das prestações. A norma jurídica era a
fonte única do direito e deveria ser interpretada e aplicada textualmente, para garantir que os interesses da classe
dominante fossem resguardados e mantidos”.
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