A defesa do consumidor no brasil: fundamentos, organização e funcionamento

AutorAmélia Soares da Rocha
Páginas31-92
2
A DEFESA DO CONSUMIDOR NO BRASIL:
FUNDAMENTOS, ORGANIZAÇÃO E
FUNCIONAMENTO
No primeiro capítulo, foram apresentados e analisados alguns aspectos da “pós-
modernidade” e das bases atuais da sociedade contemporânea necessárias à compreensão
dos fatores que animam a realidade complexa, numerosa e descentralizada do mundo
jurídico atual (GUEDES, 2020, p. 7). Para tanto, valeu-se da perspectiva do f‌luxo in-
formacional (Castells), da questão ambiental (Beck), da importância de se enxergar a
interseccionalidade entre raça, classe e gênero como obstáculos estruturais a impactarem
na formação da conf‌iança (Davis) e as principais perspectivas de mudanças sociais – e,
em consequência, jurídicas – pós-pandemia Covid-19. Analisou-se, também, a posição
da pessoa neste processo de virtualização da vida na contemporaneidade.
Tudo no objetivo de (re) conhecimento da estrutura fática real de formação e cum-
primento dos contratos de consumo na atualidade. Não há como imaginar a ef‌icácia de
um direito dissociado de sua realidade e nem faz mais sentido pesquisas jurídicas inca-
pazes de impactar, de alguma forma, a prática real e concreta do Direito. Sem olhar para
a vida social como ela é, ter-se-á uma previsão meramente formal e distante da realidade
concreta, que é o que realmente deve interessar ao Direito e aos direitos.
Cumprida a primeira etapa de análise do panorama social atual, neste segundo
capítulo, atém-se à apresentação e compreensão das razões e dos objetivos da tutela di-
ferenciada da pessoa consumidora no f‌im de superar sua vulnerabilidade, equilibrando
a relação de consumo ao diminuir a assimetria informacional e contribuir para o ideal
de mercado perfeito. É preciso compreender, portanto, desde logo, a importância da
proteção da informação – que é estruturante (KRETZMANN, 2019, p. 10) no direito
do consumidor, para uma pungente atividade econômica. Para tal compreensão, reve-
la-se imprescindível debruçar-se sobre o processo de formação da conf‌iança da pessoa
consumidora (a repercutir no cumprimento voluntário dos contratos).
Para tanto, apresenta-se, primeiro, a coerência entre o reconhecimento da vulne-
rabilidade do consumidor com a ordem constitucional brasileira vigente, através da
relação entre princípio da igualdade e a defesa do consumidor. Depois, apresentam-
-se as principais vulnerabilidades da pessoa consumidora conforme a categorização
consolidada na prática jurídica brasileira atual. Segue-se apresentando os limites de
atuação do CDC – Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor e em ato
contínuo problematiza-se algumas externalidades a afetarem o processo decisório da
pessoa consumidora e a consequente necessidade de estratégias, a partir do direito do
CONTRATOS DE CONSUMO.indb 31CONTRATOS DE CONSUMO.indb 31 31/03/2021 16:03:4331/03/2021 16:03:43
CONTRATOS DE CONSUMO • AMÉLIA SOARES DA ROCHA
32
consumidor, para neutralizar possibilidades de manipulação e preservar a autonomia
da pessoa consumidora. Examina-se, também, o papel da Defensoria Pública nesse
processo, especialmente no que concerne ao seu papel de pautar a realidade de consu-
midores – principalmente dos mais carentes – nas instâncias de poder que determinam
as relações de def‌inição.1
Feito isso, espera-se que, no terceiro capítulo, se tenham condições de analisar a
realidade contratual no direito do consumidor e que, no quarto, estejam claros os marca-
dores necessários à análise empírica, a partir da jurimetria2, sobre as atuais def‌iciências
da informação que motivam judicialização.
2.1 RECONHECER A VULNERABILIDADE PARA VIABILIZAR A IGUALDADE: “OS
DANOS DA POBREZA TRANSCENDEM O POBRE”3
Os danos da pobreza, da vulnerabilidade, da desigualdade não atingem apenas
os pobres e vulneráveis, mas toda a coletividade. Compreender tal fato é compreender
que cuidar da pessoa em condição de vulnerabilidade é também cuidar de quem não é,
diante da repercussão coletiva dos atos individuais (ROCHA, 2013, p. 11; 15). Entre
tantos exemplos, basta lembrar-se da própria pandemia da COVID-19, a demonstrar que,
em última instância a sorte de cada um está inexoravelmente ligada à sorte dos demais
(TRINDADE, 2006). Ou, de outro lado, perceber que, apesar de parecer distante da
esfera de negócios de cada um, cada catástrofe, em realidade, repercute na vida privada
de todos (JAYME, 2003, p. 134).
Se há desigualdade, há vulnerabilidade: é da essência da desigualdade a existência
de uma vulnerabilidade. Se não há vulnerabilidade, não há desigualdade: é ela, a vulne-
rabilidade, o sintoma principal de uma relação desigual, e o primeiro passo para a cura
é o estudo dos seus sintomas, causas e consequências4.
Sobre igualdade, é de se lembrar que na marcha civilizatória, já há tantos passos
percorridos que a própria escravidão – hoje universalmente repudiada em qualquer
1. Conceito de Ulrich Beck tratado no capítulo anterior.
2. Jurimetria é “a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento de
uma ordem jurídica. A partir dela, f‌ica claro que a Jurimetria se distingue das demais disciplinas jurídicas tanto
pelo objeto como pela metodologia empregada na sua análise. De uma perspectiva objetiva, o objeto da Jurimetria
não é a norma jurídica isoladamente considerada, mas, sim, a norma jurídica articulada, de um lado, como resul-
tado (efeito) do comportamento dos reguladores e, de outro, como estímulo (causa) no comportamento de seus
destinatários. A norma jurídica é estudada na condição de fator capaz de inf‌luenciar os processos de tomada de
decisão de julgadores e cidadãos. De uma perspectiva metodológica, a Jurimetria usa a estatística para restabelecer
um elemento de causalidade e investigar os múltiplos fatores (sociais, econômicos, geográf‌icos, éticos etc.) que
inf‌luencia, o comportamento dos agentes jurídicos.” (NUNES, 2019, p. 112–112, grifou-se).
3. Expressão usada por Amélia Soares da Rocha (2013, p.11), no livro “Defensoria Pública: fundamentos, organização
e funcionamento”.
4. Adverte, entretanto, Cláudia Lima Marques (2020, p. 312), que novos estudos europeus, apontam distinções
entre igualdade, desigualdade e vulnerabilidade, pois a desigualdade se aprecia sempre da comparação entre de
situações e pessoas, porquanto a vulnerabilidade, embora f‌ilha da igualdade, é uma noção f‌lexível e ainda não
devidamente consolidada e nem sempre precisa de uma comparação entre sujeitos e situações, sendo às vezes
inerente e verif‌icável unilateralmente. Ainda que fosse consenso tal diferença – que ao contrário da igualdade, a
vulnerabilidade pode ser detectada a partir da observância de um único sujeito – não há como falar de vulnera-
bilidades, sem antes, falar-se de igualdade.
CONTRATOS DE CONSUMO.indb 32CONTRATOS DE CONSUMO.indb 32 31/03/2021 16:03:4331/03/2021 16:03:43
33
2 • A DEFESA DO CONSUMIDOR NO BRASIL: FUNDAMENTOS, ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO
dos seus aspectos – já foi considerada um avanço humanitário em guerras5. Ou seja, se
ainda se está há muitos passos de uma igualdade real e concreta, muito já se caminhou
e não se pode menosprezar a conquista da igualdade formal6. Mas por que a igualdade é
tão desejada, importante e necessária, se todos são diferentes em suas singularidades?
Não há, por exemplo, um DNA igual a outro? Como lidar com a diferença, com as iden-
tidades, na busca pela igualdade? Para Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito
a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes
quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que
reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades.” (SANTOS, 2003, p. 56).
Igualdade não é padronização ou ideologia, mas uma mínima paridade de oportu-
nidades no início de uma caminhada (o f‌inal, depende de cada um, de cada uma). Mas,
repita-se, como ensina Tobias Barreto “direito não é só uma coisa que se sabe; é também
uma coisa que se sente” (BRITTO, 2007, p. 75) e talvez por isso, pelas diferentes expe-
riências e vivências de cada um é que seja tão difícil compreender que igualdade não é
paternalismo ou socialismo, mas simplesmente um caminho para que “cada um seja o
melhor que possa ser” (BARROSO, 2016, p. 22).
Enquanto humanidade, no plano formal, principalmente no pós 2ªGGM avançou-se
muito: brancos e negros, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, judeus
e católicos e daí por diante. Mas, no plano material? Na vida real, concreta, vivida, há
igualdade ou é um f‌im que ainda se persegue? Aristóteles dizia justamente que, para se
alcançar a igualdade, é preciso tratar desigualmente os desiguais. Mas como se identi-
f‌icar a desigualdade a ser superada? Ensina Sadek (2019a) que o preceito da igualdade
constitui a base da cidadania e das possibilidades de se almejar a construção de uma
sociedade democrática e republicana, formada por cidadãos. Indivíduos se convertem
em cidadãos na medida em que usufruem direitos (SADEK, 2019a, p. 15). Mas trata-se
de um país no qual até 13/05/1888, pessoas negras eram “tratadas” no direito das coisas
e não no direito das pessoas7. Talvez, o f‌im da igualdade, portanto, seja o propósito de
igualar as oportunidades de fruição dos direitos conforme cada um se faça, a partir de
uma garantia mínima de igualdade de partida, merecedor8.
O fato é que o “desejo” de igualdade permeia toda a história constitucional brasileira,
e como, nas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha (1990, p.15) “a Constituição é o
modo de ser jurídico de cada povo em cada época, é certo que o princípio da igualdade
5. Este fato foi lembrado pelo colega Professor Rafael Mota, há alguns anos, por ocasião de banca de defesa de mo-
nograf‌ia, em que ambos eram examinadores. É que inicialmente os prisioneiros de guerra eram assassinados. Em
“avanço civilizatório”, em vez da morte, passaram a ser escravizados, o que pode ser considerado menos grave
que a retirada arbitrária da vida.
6. É a poesia de Eduardo Birri – equivocamente atribuída a Eduardo Galeano, de que não sabia para que servia a
utopia, pois andava dois passos e ela se afastava mais dois; mas que então descobriu que a utopia servia para fazer
caminhar.
7. Ref‌lexão feita por Allyson Mascaro Nascimento em palestra na Universidade de Fortaleza – UNIFOR, por volta
de 2011-2012.
8. Diz o poeta Vinícius de Moraes que a vida só se dá para quem se deu e assim deve ser com os direitos: luta por
igualdade não é luta paternal, não é tutela.
CONTRATOS DE CONSUMO.indb 33CONTRATOS DE CONSUMO.indb 33 31/03/2021 16:03:4331/03/2021 16:03:43

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT