Coronavírus e força maior: configuração e limites

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Ocupação do AutorProfessor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas25-44
CORONAVÍRUS E FORÇA MAIOR:
CONFIGURAÇÃO E LIMITES
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Professor Titular e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito Civil e Mestre em Direito da Cidade
pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado e consultor em temas de
direito privado. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior
de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE).
Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil).
Sumário: 1. Introdução – 2. Força maior, gradações da impossibilidade de prestar e requisitos
na invocação da pandemia – 3. Força maior e autonomia privada – 4. Pandemia e atividade
legislativa de emergência – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Março de 2020. Espraia-se, em escala global, cenário distópico a alcançar indistinta-
mente países de diferentes níveis de desenvolvimento. Fala-se logo de quadro comparável
à chamada inf‌luenza espanhola (de 1918, que resultou na morte de 100 milhões de pes-
soas) ou à peste negra (do século XIV, que dizimou entre 75 e 200 milhões de pessoas).1
Os impactos iniciais da pandemia da Covid-19, resultante do novo coronavírus que se
alastrou a partir da cidade de Wuhan na China desde dezembro passado, alcançam em
primeiro plano a saúde da população e, na esteira desta, as relações pessoais e econômi-
cas que se travam no meio social (quando do fechamento da segunda edição já são mais
de 45 milhões de pessoas infectadas em todo o mundo; na primeira edição, em abril de
2020, eram cerca de um milhão e meio de infectados).
A gravidade extrema e a extensão mundial da crise produzem incertezas entre os
operadores do direito que, subitamente, viram-se desaf‌iados a lidar com problemas dos
mais variados matizes: escassez, violência doméstica, conf‌litos de vizinhança, crime de
contágio, falsas notícias, tensões trabalhistas, descumprimento de contratos, dentre
outros.2
Em meio ao cenário turbulento, o Estado assume o necessário protagonismo na
coordenação das ações de enfrentamento ao vírus e adota medidas interventivas de va-
riados graus na vida dos cidadãos e na economia dos diferentes países.
Seguindo tal ordem de considerações, o legislador brasileiro, visando a evitar ou,
ao menos, a conter o caos que se avizinha, lança mão de pacotes normativos em regime
1. HARARI, Yuval Noah. Lições para uma pandemia. In: O Globo, Segundo Caderno, p.1, 24.03.2020.
2. Em 20 de março de 2020, é editado Decreto Legislativo nº 6, reconhecendo estado de calamidade pública no Brasil,
para os f‌ins do art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000.
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de emergência, com profundos impactos na disciplina da responsabilidade civil aqui-
liana e contratual. Calha destacar aqui a formulação de lei que institui “Regime jurídico
emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) no período da
pandemia do Coronavírus (Covid-19)” – Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020.
Até porque, no plano do direito dos contratos, já se pode perceber que a mega crise
produz descumprimentos em larga escala, a ocasionar situações caracterizadoras de mora
e inadimplemento absoluto nos negócios em execução, as quais, por sua vez, engendra-
rão novos desaf‌ios a árbitros e magistrados no que tange à conf‌iguração de hipóteses
de revisão, resolução, suspensão, prorrogação, renegociação etc.3 O foco principal do
presente artigo insere-se nesse contexto e dirige-se à conf‌iguração da hipótese de força
maior como excludente de responsabilidade e seus limites, em função da ocorrência da
lastimável pandemia.
2. FORÇA MAIOR, GRADAÇÕES DA IMPOSSIBILIDADE DE PRESTAR E
REQUISITOS NA INVOCAÇÃO DA PANDEMIA
Não conduz a um único resultado o processo interpretativo dos efeitos provocados
pelo novo coronavírus às relações contratuais. Com efeito, a depender da composição
de interesses atingidos, no concreto programa contratual em análise, diversa será a
qualif‌icação do fato jurídico pandemia.4 Assim, nos contratos de execução continuada
ou diferida, a pandemia, embora por vezes não impossibilite a prestação, pode torná-la
extremamente onerosa ao devedor, de modo a justif‌icar a revisão ou resolução contratuais,
ou mesmo a repactuação espontânea da avença pelas partes, em nome do princípio da
conservação dos negócios;5 em outros pactos, suas consequências poderão determinar
tão somente a suspensão da execução do objeto da contratação, postergando os deveres
de prestação para ulterior momento6; e ainda em outros tantos casos, o fato jurídico
3. Sobre o impacto dos momentos de crise na execução dos contratos, v. CORDEIRO, António Menezes. A crise e a
alteração de circunstâncias. In: Revista de Direito Civil, a. 1, n. 1. Coimbra: Almedina, 2016.
4. Na explicação Pietro Perlingieri: “Ao mesmo fato histórico o direito pode atribuir uma pluralidade de qualif‌icações,
tomando-o em consideração em várias normas e para diversos f‌ins. O fato ‘granizo’ pode adquirir relevância jurí-
dica em relação a vários perf‌is. Um agricultor pode ter concluído um contrato de seguro contra danos decorrentes
de granizo (art. 1882 ss. Cód. Civ.). Ao fato ‘granizo’ se coliga o dano assegurado e nasce a favor do agricultor o
direito a ressarcimento por parte da empresa seguradora. O mesmo fato pode funcionar como pressuposto para
o agricultor, na qualidade de arrendatário (art. 1615 ss. do Cód. Civ.), possa obter a redução do cânon do arren-
damento segundo o art. 1635 Cód. Civ. Mas não só. O mesmo granizo, que pode ser de tal modo abundante que
não permita a circulação sobre o terreno e impeça a entrega dos frutos ao credor, pode constituir uma hipótese
de impossibilidade de adimplemento não imputável ao devedor-agricultor, liberatória (ainda que temporária) do
débito (art. 1256 Cód. Civ.). A obrigação f‌ica suspensa e volta a ter ef‌icácia, presentes determinados requisitos,
assim que o impedimento cessar”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria
Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 640-641).
5. A título ilustrativo da qualif‌icação da pandemia da Covid-19, a doutrina e a jurisprudência têm debatido o fun-
damento da revisão judicial dos contratos. No contrato de locação, v.g., ora se indica o modelo da onerosidade
excessiva, ora se aponta o caminho da interferência no exercício das faculdades de uso e fruição, sob os inf‌luxos
da regra do art. 567 do Código Civil. Como expressão do reconhecimento da onerosidade excessiva, vale mencio-
nar decisão da 22ª Vara Cível da Comarca de São Paulo que admitiu, durante o período de calamidade, a redução
do valor do aluguel de imóvel comercial para 30% do montante pactuado originalmente. (TJSP, 22ª V.C., tutela
cautelar antecedente no processo nº 10266645-41.2020.8.26.0100, julg. 02.04.2020).
6. Em tema de relações de trabalho, a pandemia do Covid-19 poderá gerar a suspensão do contrato por até sessenta
durante o estado de calamidade pública, conforme dispõe o artigo 8º da Medida Provisória 936 de 1º de abril de 2020.
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