O coronavírus e a responsabilidade nos contratos internacionais

AutorNelson Rosenvald
Ocupação do AutorProcurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais
Páginas3-24
O CORONAVÍRUS E A RESPONSABILIDADE
NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS
Nelson Rosenvald
Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito
Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universi-
dade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17).
Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito
Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil (IBERC). Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.
Sumário: 1. Introdução – 2. O contrato como instrumento de alocação de riscos – 3. A força
maior – 4. A doutrina da frustration – 5. A força maior e o hardship no BGB e instrumentos in-
ternacionais – 6. O estado da arte no direito brasileiro: março/dezembro 2020; 6.1 A pandemia
e a força maior; 6.2 Pandemia e alteração das circunstâncias – 7. Conclusão. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A historicidade do conceito de contrato não é a sua única variável. A globalização
impôs o receituário contratual das jurisdições da common law,1 um misto entre a tradi-
ção inglesa depurada pelo pragmatismo norte-americano. Os contratos internacionais
pressupõem a paridade entre atores de diversos países. Nada obstante, a despeito da pre-
sunção de simetria das relações interempresariais, a assimetria econômica entre os países
de origem e, sobremodo institucional, perante ordenamentos jurídicos que oferecem
uma longa história de previsibilidade e segurança jurídica, normaliza os instrumentos,
práticas e remédios contratuais norte-americanas e ingleses. Diante de uma pandemia,
notadamente o coronavírus, é necessário vislumbrar o seu impacto na execução de con-
tratos com o DNA de uma tradição jurídica diversa das jurisdições af‌iliadas a civil law.
Porém, abordaremos também o direito alemão e os instrumentos internacionais que se
aplicam à temática, sempre levando em consideração que a rígida dicotomia common
law/civil law é relativizada diante crescente importância da jurisprudência e de outras
tendências de descodif‌icação (v.g. soft law) no terreno da civil law e, da colcha de reta-
lhos que resulta da tendência à codif‌icação na esfera anglo-americana. Tudo isto ilustra
a convergência das famílias legais, com consequência sobre o exame da pandemia nos
contratos internacionais.
1. Como tivemos ocasião de tratar em certa ocasião, “a expressão genérica “civil law” se refere a um número de
diferentes tradições jurídicas, situadas nas famílias “romanística”, “germânica” e “nórdica”. Em alguns aspectos,
as divergências entre as três famílias são mais signif‌icativas do que a própria polarização “civil law” x “common
law”; b) as próprias jurisdições da “common law” são bastante heterogêneas. Notadamente, há uma profunda
distinção estrutural entre o direito inglês e o direito norte-americano. Essa diferença é tão pronunciada, que se
por um lado faz sentido cogitar de uma tradição anglo-americana no sentido histórico, qualquer insinuação sobre
um direito anglo-americano é equivocada”. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo, p. 43.
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NELSON ROSENVALD
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Este artigo analisa a alocação positiva ou negativa de riscos em caso de mudanças
radicais nas fundações do contrato, com enfoque no coronavírus, que não apenas acarreta
pesados custos humanos, porém impacta dramaticamente no comércio mundial. Em
economias integradas, onde as organizações dependem de seus fornecedores no exterior,
esses eventos incluirão doenças e quarentenas. Entra em cena a discussão da força maior,
da frustration e do hardship como modelos jurídicos que converterão a crua realidade
em justif‌icativas válidas para que uma parte de um contrato adie o desempenho, não
execute, ou renegocie os termos de um contrato em razão da pandemia.
2. O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE ALOCAÇÃO DE RISCOS
Se o direito brasileiro tende a entender o contrato não apenas como uma espécie de
negócio jurídico2, porém como instrumento jurídico de alocação de riscos,3 é da tradição
anglo-saxônica o signif‌icado do contrato como instrumento econômico para as partes,
baseado em um modelo comercial de “bargain”, com arrimo na doutrina da “conside-
ration”. A privacidade do contrato é sustentada pelo princípio do “at arm’s length”,
promovendo-se acordos equitativos do ponto de vista legal, nos quais cada parte não se
sujeita à pressão ou inf‌luência indevida da outra,4 sem que essas transações lhes impu-
tem deveres f‌iduciários. Atribui-se cada parte a faculdade de buscar a melhor barganha,
cuja tutela demanda restritas e cirúrgicas limitações à liberdade contratual, relutando
os tribunais em interferir na substância do ajuste, mesmo quando circunstâncias super-
venientes perturbem severamente o contrato. Não há um princípio geral de revisão de
contrato ou a imposição de um dever de renegociar, pois mesmo diante de signif‌icativas
dif‌iculdades, prevalece a noção de que o contrato é para as partes e não para os tribunais.5
Em nossa tradição, o Código Civil é um instantâneo dos contratos. Contudo, na
common law, onde inexiste uma estrutura legislativa sistemática, o regramento contratual
se encontra em livros nas prateleiras das bibliotecas. As noções fundamentais provêm de
precedentes de meados do século XIX.6 Ao invés de princípios, parte-se dos “cases” – dos
mais antigos aos mais atuais – para responder a novas perguntas. Fora dos casos, vêm as
2. O esquema legado pelo direito romano de divisão tripartite do direito das obrigações entre contrato, responsabi-
lidade civil e enriquecimento injustif‌icado é a regra ainda atual nos sistemas codif‌icados. Porém as jurisdições da
common law não abrem espaços para esquemas. Não existem livros de direito das obrigações, apenas de “contracts/
tort/ Unjustif‌ied enrichment”.
3. A Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/19) robustece o conceito de contrato como um mecanismo posto à
disposição da autonomia privada para domar as incertezas do futuro, como forma de gestão de riscos para que as
partes estabilizem expectativas.
4. Há de se notar que o “Right of Third Parties Act” de 1999, criou uma exceção signif‌icativa sobre a doutrina da
privacidade do contrato, permitindo a terceiros, em circunstâncias def‌inidas, a execução direta de cláusulas con-
tratuais.
5. “The contract is the law adopted by the parties, and it is the contract which the judge must use a starting point for
his deliberations; if it has a gap, he must f‌ill it in accordance with the standards developed by reputable commercial
men for contracts of that type. No doubt this investigation leaves the judge a great deal of room for play, but it
remains true that he must take functional and equitable considerations into account only to extent necessary for
the performance of his proper task, namely the discover of the allocation of risks typical of contracts of the same
type”. ZWEIGERT K.& KÖTZ, H. An introduction to comparative law, 3. Ed, Oxford, 1998, p. 536.
6. Como encontrar os chamados “key cases”? Frequentemente os compêndios trazem os casos que casam com a
situação concreta. Há uma enormidade de precedentes, normalmente de meados do século XIX, pós revolução
industrial, determinado uma forte noção comercial dos contratos.
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