Crianças e adolescentes sujeitos de direito

AutorOlympio de Sá Sotto Maior Neto
Páginas679-698

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No quadro real de marginalidade experimentado pela maioria da população brasileira (integrante do país campeão mundial das desigualdades sociais), padecem especialmente as crianças e adolescentes, vítimas frágeis e vulneradas pela omissão da família, da sociedade e, principalmente, do Estado, no que tange ao asseguramento dos seus direitos elementares.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), cumprindo comando da Constituição Federal, materializou proposta de dar atenção diferenciada à população infanto-juvenil, rompendo com o mito de que a igualdade resta assegurada ao tempo em que todos recebem tratamento idêntico perante a lei. Com indiscutível acerto, concluiu o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente que, quando a realidade social está a indicar desigualdade (e hoje se calcula a existência de cerca de quarenta milhões de crianças e adolescentes carentes ou abandonados), o tratar todos de forma igual, antes de garantia da isonomia, comparece como maneira de cristalização das desigualdades, dando-se, muitas vezes, contornos de legalidade a situações de exploração e opressão. Dessa sorte, como fórmula para estabelecer a isonomia material, entendeu-se indispensável que as crianças e adolescentes perseguidos, vitimizados, marginalizados na realidade social (vale dizer, à margem dos benefícios produzidos pela sociedade) viessem a receber, pela lei, um tratamento desigual, necessariamente privilegiado. Sob esse enfoque é que encontramos como suporte teórico do Estatuto da Criança e do Adolescente a doutrina da proteção integral, cuja tese fundamental assevera incumbir à lei assegurar às crianças e adolescentes a satisfação de suas necessidades especiais, enquanto seres humanos em peculiar fase de desenvolvimento. Assim, pela nova legislação, as crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como mero objeto de intervenção do Estado, devendo-se agora

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reconhecê-los sujeitos dos direitos elementares da pessoa humana em desenvolvimento, de maneira a propiciar o surgimento de verdadeira ponte de ouro entre a marginalidade e a cidadania plena.

Alertado pela realidade social e alentado pelo propósito de justiça (com a ocorrência de absoluta sintonia na perspectiva de que o enfrentamento ao subdesenvolvimento – e à subcidadania – dá-se mediante a efetivação dos direitos do homem), o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu um conjunto de normas tendentes a colocar a infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão, cumprindo mandamento constitucional no sentido de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227 da CF).

Insista-se no sentido de que a proposta da lei é o da universalização dos direitos fundamentais, alcançando assim todas as crianças e adolescentes. Ou seja, numa perspectiva de justiça e solidariedade, a lei quer que todas as crianças e adolescentes possam exercitar os direitos que parte da população infanto-juvenil já exercita.

Exatamente por esse aspecto, é impossível criticar-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, já que ninguém pode ter a insensibilidade social de querer negar às crianças e adolescentes brasileiros (máxime quando se trata daquela parte da população oriunda das famílias empobrecidas e despossuídas) a possibilidade de exercício dos direitos elementares da cidadania. O empenho de todos nesse momento, portanto, deve ser na linha de que as previsões do Estatuto da Criança e do Adolescente deixem de ser tratadas como meras declarações retóricas ou singelas exortações morais (e, por isso mesmo, postergadas na sua efetivação ou relegadas ao abandono), para se constituírem em instrumentos de materialização das promessas de cidadania contidas no ordenamento jurídico.

Decorrente de indevida manipulação ideológica e de absoluto desconhecimento por parte da população das regras jurídicas por ele estabelecidas, o Estatuto da Criança e do Adolescente é alvo permanente de críticas, especial-mente pelas camadas sociais que dele poderiam se utilizar para garantia dos direitos que contempla. Desenvolve-se então sentimento de aversão, do tipo “nunca li mas sou contra”, que impossibilita interferência positiva da lei na

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realidade – diga-se, muitas vezes trágica – experimentada pelas nossas crianças e adolescentes e suas famílias.

Assim sendo, na busca da superação de maléficos mitos, penso que o primeiro passo destinado à implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente deve se direcionar à sua adequada e correta difusão junto aos dois mais significativos aparelhos ideológicos: os meios de comunicação social e o sistema educacional, lembrando, para tanto, que ambos também se encontram submetidos ao princípio constitucional da prioridade absoluta em favor da infância e juventude.

Quanto aos meios de comunicação social, torna-se viável buscar horários reservados em rádios e televisões (atendendo-se à finalidade educativa pre-vista no art. 221, inc. I, da Constituição Federal) de molde a se difundir, cotidianamente e um a um, os direitos da população infanto-juvenil, contribuindo-se, pela via do conhecimento da lei, com a efetividade do seu respectivo exercício.

Nesse campo, vale registrar a importância de experiências exitosas como, no Estado do Paraná, da Ciranda – Central de Notícias dos Direitos da Infância e Adolescência (www.ciranda.org.br) e, nacionalmente, da Rede Andi Brasil (www. redeandibrasil.org.br), produzindo e repercutindo matérias jornalísticas informadoras da sociedade sobre a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, contrapondo-se inclusive – e de forma imediata – a equívocos tão comuns na nossa imprensa em relação às previsões legais.

Na seara da difusão de indevidos mitos, convém esclarecer sempre que, correlatamente aos direitos inscritos, as crianças e adolescentes são alcançados por todas as obrigações contempladas no ordenamento jurídico, estando eles sujeitos a responder perante as mais variadas instâncias, principalmente a Justiça da Infância e Juventude e o Conselho Tutelar, pelos atos antissociais que praticam, notadamente quando atingem a categoria de atos infracionais (ou seja, a conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção).

Dessa forma, ao contrário do equivocadamente difundido, o Estatuto da Criança e do Adolescente não significa a “porteira aberta para a impunidade” nem contempla qualquer regra que se traduza em “garantir que as crianças e adolescentes possam praticar os atos ilícitos que quiserem, sem nada lhes acontecer” ou que importe “rompimento das relações de autoridade” no âmbito da família ou da escola. A clara definição da lei é no sentido de que nenhum adolescente a que se atribua a prática de conduta estabelecida como

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crime ou contravenção pode deixar de ser julgado pela Justiça da Infância e Juventude (ou, em se tratando de criança, pelo Conselho Tutelar e sujeito às chamadas medidas protetivas, arroladas no art. 101 do ECA). Caso comprovada a conduta ilegal, será o adolescente responsabilizado pelos seus atos e, como resposta social, receberá a imposição das chamadas medidas socioeducativas (art. 112 do ECA), que vão desde a advertência, passando pela obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade, até a internação, para os casos mais graves, que significa privação de liberdade do infrator.

Então, quando se trata de adolescente autor de ato infracional, a proposta é de que, no contexto da proteção integral, receba ele medidas socioeducativas tendentes a interferir no seu processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social. O educar para a vida social visa, na essência, ao alcance de realização pessoal e de participação comunitária, componentes próprios da cidadania.

Bom dizer que, desse elenco de medidas acima arroladas, a que se mostra, sem dúvida, com as melhores condições de êxito é a da liberdade assistida, porquanto se desenvolve direcionada a interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades. O acompanhamento, auxílio e orientação, a promoção social do adolescente e de sua família, bem como a inserção no sistema educacional e no mercado de trabalho certamente importarão o estabelecimento de projeto de vida capaz de produzir ruptura com a prática de delitos, reforçados que restarão os vínculos do adolescente, seu grupo de convivência e a comunidade. E, no outro extremo desse mesmo olhar, vislumbra-se que a internação é a medida socioeducativa com as piores condições para produzir resultados positivos.

Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes internados acabam ainda mais distanciados da possibilidade de um desenvolvimento sadio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais (especialmente no que tange a responder com violência aos conflitos do cotidiano), a probabilidade (quase absoluta) é de que os adolescentes acabem absorvendo a chamada “identidade do infrator”, passando a se reconhecer, sim, como de “má índole, natureza perversa, alta periculosidade”, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinquência (os “irrecuperáveis”, como dizem deles).

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Desta maneira, quando do desinternamento, certamente estaremos diante de cidadãos com categoria piorada, ainda mais predispostos a condutas violentas e antissociais. Por isso, embora seja necessário em determinadas situ-ações operar a...

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