Dano à Identidade Pessoal do Trabalhador

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas29-44

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1. Introdução

A dignidade da pessoa humana desempenha atualmente as funções de ser objeto e fim de todo o ordenamento, funcionando como ponto de partida nos raciocínios jurídicos e como paradigma para valoração final nos pronunciamentos legislativos, administrativos e judiciais, cumprindo a tarefa de ser, ao mesmo tempo, piso e teto, origem e destino, de quaisquer manifestações estatais ou privadas.

Na perspectiva jurídica, a dignidade humana foi positivada no período da reconstrução europeia do segundo pós-guerra1, explicitamente em contraposição às violações que os conflitos ocasionaram, quando os seres humanos foram tratados como objeto, sendo o primeiro veículo formal o preâmbulo da Carta das Nações Unidas (1945)2, seguindo-se pela Constituição italiana (1947)3, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948)4, a Lei Fundamental alemã (1949)5, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)6 e, na experiência ibero-americana, com as Constituições portuguesa (1976)7e espanhola (1978)8, ambas promulgadas democraticamente após longos períodos de governos ditatoriais.

No âmbito regional dos Estados Americanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, aprovada entre nós pelo Decreto Legislativo n. 27, de 1992 e promulgada pelo Decreto presidencial n. 678, de 1992, prevê no art. 1º que todo ser humano é considerado pessoa para os fins da Convenção; no art. 5º que toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral, respeitando-se, em relação aos presos, à dignidade inerente ao ser humano e,

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finalmente, no art. 11 que toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) prescreve em seu art. 1º que a dignidade do ser humano é inviolável, devendo ser protegida e respeitada, seguindo-se um capítulo dedicado à dignidade, no qual objetivamente são tutelados os direitos à vida, à integridade do ser humano, a proibição de torturas e demais tratamentos desumanos ou degradantes, vedando-se a escravidão e os trabalhos forçados.

Na esteira do movimento de centralização da dignidade da pessoa humana no direito internacional, no direito comunitário, dos Estados Americanos e da União Europeia, bem como nos ordenamentos jurídicos dos países democráticos, a Constituição Federal de 1988 também elegeu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), além de reafirmar em outros dispositivos a sua observância nas relações familiares (art. 226, § 7º), na proteção das crianças e adolescentes (art. 227), bem como no dever de proteção dos idosos (art. 230). A dignidade humana também foi adotada de forma implícita em diversas outras passagens da Carta, por exemplo, ao indicar como um dos seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, que são elementos que compõem o núcleo do conceito, acenando à sua origem filosófica de garantir a todos os meios básicos para o exercício de uma vida livre, consciente e feliz.

A rigor, nem precisava o constituinte enunciá-la expressamente, eis que a ostensiva preocupação com os direitos fundamentais, garantindo-se os direitos individuais, sociais, coletivos e universais em toda a Constituição é reconhecimento de que no sistema jurídico atual a dignidade humana ocupa posição central.9O conceito de dignidade humana coincide com o reconhecimento de que a pessoa deve ser respeitada e considerada em sua individualidade, protegendo-se e fomentando a própria vida, sua integridade psicofísica, aqui incluindo os direitos de personalidade, o direito à saúde, física e mental, a proteção e a garantia do mínimo existencial, a sua liberdade, enquanto autonomia e capacidade informada de autodeterminação, a sua igualdade perante terceiros, tanto formal quanto material, e em face da comunidade, de cuja relação e convivência social resultam a proteção dos deveres de solidariedade e boa-fé nas suas relações. O respeito e a incidência de todas essas dimensões é que irá proporcionar uma vida digna.

O reconhecimento das múltiplas dimensões do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana conduz dire-tamente para a constatação de que a sua eficácia também é multidimensional, ou seja, a dignidade funciona tanto como limite à atuação intrusiva do Estado e de terceiros, quanto exige, em outras perspectivas, a atuação positiva, prestacional, do Estado e dos particulares.

Funcionando como fundamento jurídico dos Estados Democráticos, deriva da dignidade da pessoa humana que os direitos fundamentais positivados pelas constituições representam suas especificações nos diversos ramos do Direito. Cada direito fundamental enunciado representa a incidência da dignidade humana, um reflexo em determinada situação específica, ou seja, o resultado da intermediação legislativa constitucional ao mediar as suas eficácias prestacionais e protetivas aos casos especiais. Peter Häberle nos ensina que no sistema constitucional alemão, os direitos fundamentais subsequentes ao art. 1º da Lei Fundamental, que garante a proteção da dignidade humana, assim como os objetivos estatais, têm a dignidade como premissa e encontram-se a seu serviço.10O próximo passo foi reconhecer a força normativa da dignidade humana e a sua aplicação direta nas relações jurídicas, sem necessidade de intermediação legislativa ordinária, seja na relação entre os cidadãos e o Estado (eficácia vertical), como também nas relações entre os particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). A admissão da eficácia da dignidade humana nas relações privadas, incluindo as relações de trabalho, proporcionou constatar-se a possibilidade fático-jurídica de violação, cuja principal repercussão são os danos pessoais indenizáveis.

2. Danos à pessoa humana

Ao se admitir que os direitos fundamentais e os direitos humanos previstos na Constituição e nos tratados internacionais são incidentes nas relações jurídicas de trabalho, aplicados de forma mediada pela legislação ou diretamente a partir das citadas fontes normativas, necessariamente teremos que admitir que, além da sua imperatividade e observância pelos sujeitos da relação, existe a possibilidade fático-jurídica de sua violação. E, acorde com a centralidade da dignidade da pessoa humana em nosso sistema jurídico, a violação dela e dos direitos fundamentais ocasionará os danos à pessoa humana, exigindo do sistema jurídico instrumentos adequados para a sua multifacetada e completa reparação.

A filosofia clássica distinguia dois tipos de entes: o ente que conhece – que é o ser humano – e os entes ou objetos que são conhecidos pelo homem, disso seguindo que durante muitos séculos a preocupação dos filósofos se restringiu ao conhecimento do mundo e dos objetos em si. O homem deveria subsistir e, por isso, seu principal esforço estava dirigido ao conhecimento e domesticação das plantas e dos animais para o seu proveito. A partir dessa primeira aproximação do mundo, o ser humano se interessou por questionar o “ser” das coisas, desenvolvendo como resultado da sua empreitada cognoscitiva o capítulo da filosofia que é a metafísica.

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A preocupação com as coisas, que dominou o pensamento filosófico por muitos séculos, acabou influenciando o Direito, de modo que os juristas, com uma visão individualista, patrimonialista e reducionista, esforçaram-se por compreender e proteger, principalmente, as coisas que integram o patrimônio de cada ser humano, descuidando do conhecimento e da tutela jurídica das pessoas em si mesmas.

O patrimônio adquire, dentro deste marco conceitual, lugar preferencial de atenção tanto do legislador como da ciência jurídica, cujo mais bem acabado projeto foi o Código Civil francês de 1804 e a doutrina civilista da época. Em referido Código Civil, e em todos os demais que nele buscaram inspiração, como o Código Civil brasileiro de 1916, se conceitua e normatiza, de forma extensa e minuciosamente, tudo que se relaciona com a propriedade privada e a tutela dos direitos patrimoniais, deixando de fora da preocupação legislativa a proteção da pessoa humana.

São por esses motivos que a linguagem da ciência jurídica divisou as consequências dos danos em patrimoniais e extrapatrimoniais, tendo a propriedade (coisas) como premissa para sua conceituação e como centro de imputação jurídica.

Contudo, a racionalidade como nota definidora do ser humano começou a ser revisada no início do século XX pelos filósofos existencialistas que, resgatando e desenvolvendo as premissas do cristianismo em torno do livre arbítrio, substituíram a racionalidade pela liberdade enquanto centro, nota distintiva, da existência do ser humano.

Considerando que a liberdade é o ser do homem, seu núcleo existencial, é a partir dela que decidimos aquilo que desejamos fazer, o que projetamos realizar em nossa vida, ainda subjetivamente. Na sequência, a liberdade externaliza-se com a capacidade de realizar nossos projetos, isto é, de converter os pensamentos em atos, em condutas humanas intersubjetivas, as quais apenas podem ser restringidas legitimamente pelo sistema jurídico, de acordo com os impedimentos da legislação.

A nova filosofia existencialista de Kierkegaard11, Heidegger12, Sartre13e Jaspers14, entre outros filósofos, influenciou os juristas e conduziu à substituição da visão eminentemente individualista e patrimonialista do Direito, que tinha como objeto de preocupação as coisas, por uma...

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