Danos à Vida Privada e à Intimidade, sob a Perspectiva do Direito do Trabalho

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas95-105

Page 95

1. Introdução

Antes de tratar especificamente da matéria objeto do presente estudo, há que se considerar que a pretensão do trabalho é trazer às discussões questões essenciais do direito, mais especificamente no que se refere ao equilíbrio entre o poder de direção do empregador e a proteção à individualidade do empregado, especialmente no que se relaciona a sua própria intimidade e privacidade.

É que a vida privada do trabalhador e todos os direitos acessórios estão inseridos no rol de direitos fundamentais e da personalidade de cada indivíduo, que se sobrepõe à relação de trabalho. Conclui-se, pois, que o fato de determinada pessoa se submeter à subordinação típica da relação de emprego (art. 3º da CLT) não confere ao empregador o direito de atuar sobre todos aspectos do trabalhador, de forma ilimitada. Em breve síntese: o fato de alguém ser empregado não lhe retira toda a proteção garantida enquanto cidadão, titular de direitos.

O jus variandi, que é conferido ao empregador em muitas oportunidades, enseja a equivocada impressão de que o empregado deve se submeter a tudo que for determinado pelo empregador, o que, evidentemente, não é real. O trabalhador vende sua força de trabalho, mas não seus direitos essenciais, até porque inalienáveis.

Vale ressaltar, ainda inicialmente, que o poder de direção (jus variandi) é característico da relação de emprego, nos moldes do art. 3º da CLT, mas o direito do trabalho, inequivocamente, tutela também as relações de trabalho que não são relações de emprego, especialmente após a Emenda Constitucional n. 45/2004, que ampliou nesse sentido a própria competência da Justiça do Trabalho.

Ocorre que, tratando-se do equilíbrio entre poder de direção de uma parte (empregador) e direito de resistência da outra (empregado), é evidente que as questões inerentes à proteção da intimidade e privacidade do trabalhador são mais presentes nas relações de emprego, que, exatamente por isso, serão consideradas para efeitos de nossa análise.

A atualidade, provavelmente pelo desenvolvimento dos meios tecnológicos e de comunicação (uso da internet, correspondência eletrônica, câmeras de filmagem e segurança, entre outros), trouxe às relações de trabalho situações até então desconhecidas, paras as quais ainda não há a necessária positivação, decorrência natural das mudanças sociais, econômicas e mesmo tecnológicas.

É comum, na atualidade, os empregadores estabelecerem câmeras de segurança em todo ambiente de trabalho, impondo-se analisar se a imagem do empregado pode ser utilizada como se patrimônio do empregador fosse. Imagine-se que o empregador faça uso da filmagem do ambiente do trabalho para o acesso de seus clientes, a fim de promover seu negócio. Evidente que, nesse caso, a imagem do trabalhador será objeto de fonte de lucro para o empregador, não como ocorre em atividades cuja a imagem é contratada (modelos fotográficos, por exemplo), mas como meio de promover a atividade empresarial.

O exemplo referido certamente atenta contra a privacidade dos trabalhadores, especialmente porque a filmagem e a divulgação da imagem daqueles trabalhadores não está entre as atribuições naturais de suas funções.

Trata-se de hipótese clara de desrespeito à intimidade e privacidade do empregado em que pode ser vislumbrada a hipótese de condenação a pagamento de indenização por

Page 96

dano extrapatrimonial, a exemplo do ocorrido no processo n. 02484200006402008, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Relatora Desembargadora Magda Aparecida Kersul de Brito:

Ao mesmo tempo em que o recorrente argumenta que a empresa lucrou com a utilização de sua imagem, argumenta também que houve invasão de privacidade, que foi exposto de forma abusiva pela internet, pois foram instaladas câmaras em suas dependências exibindo imagem de seus empregados, que não se opôs para não ser demitido.

A reclamada alega que a imagem somente era acessada pelos clientes e que mostrava todo o salão de atendimento, conforme foto de folhas 145.

A exibição da atividade dos empregados, para fins de acompanhamento pelos clientes através da internet não se insere entre as atividades a que o empregado normalmente se obriga quando da contratação, nos termos do parágrafo único do art. 456 da Consolidação das Leis do Trabalho:

Parágrafo único. À falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal.

Não se pode presumir válida a sua concordância na vigência do contrato de trabalho.

Utilizada a sua imagem, ainda que em conjunto com os demais empregados, para fins comerciais, cabe indenização nos termos do art. 20 do Código Civil Brasileiro.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Defiro ao reclamante indenização pelo uso da imagem que arbitro em R$ 10.000,00 (dez mil reais), observando-se que o reclamante foi filmado no período de 16 de novembro de 1999 até a despedida em 3 de março de 2000.

Evidente, nesse sentido, que a proteção da honra, da intimidade e da privacidade do trabalhador é garantida nos exatos termos do art. 5º, X, da Constituição Federal, que garante a todas as pessoas a inviolabilidade de intimidade, vida privada, honra e imagem, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O texto constitucional é de aplicação imediata e incontestável aos contratos de trabalho, especialmente considerando a atual constitucionalização do direito do trabalho, determinando a interpretação do texto infraconstitucional em conformidade com a Constituição Federal.

Como já exposto, o poder de direção do empregador que é conferido pelo texto da Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 3º, autoriza que o empregador trace as diretrizes de todo e qualquer contrato de trabalho. Ao mesmo tempo, as disposições do art. 3º da CLT obrigam o empregado à observância de referidas determinações do empregador. Há, entretanto, limites para o exercício da autorização legal.

Pela propriedade da matéria, devem ser invocadas as considerações de Raissa Bressanim Tokunaga1:

O jus variandi pode ser conceituado como a faculdade de o empregador, por meio do poder diretivo, introduzir, de forma discricionária, unilateralmente e a qualquer tempo, modificações quanto a aspectos não essenciais do contrato de trabalho, relativos à prestação de serviços e à organização da empresa.

Pode-se afirmar também que o jus variandi é prerrogativa unilateral do empregador, pois ele pode efetuar as modificações na prestação pessoal de serviços do empregado e na organização da empresa sem o consentimento deste. (...)

Por outro lado, o jus variandi do empregador não é ilimitado, de modo que deve obedecer a certas restrições, sendo discricionário e não arbitrário.

Conclui-se, pois, que há claros limites para o exercício do poder de direção do empregador, especialmente porque o empregado não renuncia os direitos da personalidade dos quais goza na condição de pessoa natural. A relação de emprego não altera a condição de pessoa natural, anterior e pressuposto do contrato empregatício.

Nesse sentido as lições de Alice Monteiro de Barros:

A inserção do empregado no ambiente de trabalho não lhe retira dos direitos da personalidade, dos quais o direito à intimidade constitui uma espécie. O empregado, ao ser submetido ao poder diretivo do empregador, por certo sofre algumas limitações em seu direito à intimidade. É inadmissível, entretanto, que a ação do empregador se amplie a ponto de ferir a dignidade da pessoa humana. Como se vê, não é o fato de o empregado subordinar-se ao empregador ou de deter este último o poder diretivo que irá justificar a tutela à intimidade no local de trabalho, do contrário, haveria uma degeneração da subordinação jurídica em um estado de sujeição do empregado.2A tênue linha divisória entre poder de comando e respeito à privacidade e intimidade do empregado leva a inúmeras discussões para se diferenciar o que é possível e proibido no contrato de trabalho.

Cada vez mais é necessária a observância de tais circunstâncias, em razão dos impactos trabalhistas e sociais causados pelo desrespeito à intimidade e privacidade do trabalhador, especialmente no que se relaciona ao próprio

Page 97

contrato de trabalho, ao patrimônio moral do empregado,
e até mesmo considerando a proteção do Estado, evitando-se, por exemplo, inúmeras enfermidades psiquiátricas, extremamente onerosas para o Instituto Nacional do Seguro
Social.

2. Intimidade e privacidade: direitos fundamentais

Tratando de intimidade e privacidade, é de rigor invocar as considerações de Adriana Calvo3:

O direito à privacidade constitui-se na escolha entre divulgar ou não o que é íntimo, e, assim, construir a própria imagem. A privacidade é um direito natural.

A intimidade relaciona-se às relações subjetivas, de trato íntimo da pessoa, isto é, suas relações familiares e de amizade, além de também se relacionar com as relações objetivas, envolvendo as relações comerciais como, por exemplo, no trabalho. Por íntimo se deve entender tudo o que é interior ou simplesmente pessoal (“somente seu”, como se costuma dizer popularmente), e por privado, o caráter de não-acessibilidade às particularidades contra a vontade de seu titular.

Assim, considerando...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT