Dano moral coletivo e lesão à ordem urbanística

AutorAnnelise Monteiro Steigleder
Páginas179-198
DANO MORAL COLETIVO
E LESÃO À ORDEM URBANÍSTICA
Annelise Monteiro Steigleder
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Doutoranda em Planejamento
Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Promotora de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul.
Sumário: 1. Introdução – 2. A responsabilidade civil por danos à ordem urbanística – 3. O
dano moral coletivo e as sensibilidades no espaço da cidade – 4. Conclusões – 5. Bibliograa.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva aprofundar os estudos sobre o dano moral coletivo,
propondo-se a ref‌letir sobre a possibilidade de seu reconhecimento e sobre o seu
conteúdo, quando associado a danos urbanísticos. Em princípio, se pode af‌irmar
que o dano moral coletivo associado ao dano urbanístico tem por objeto a agressão
a valores imateriais associados a direitos fundamentais inseridos no “cluster”1 que
conforma o direito à cidade sustentável, que, sob o marco do Estado Democrático
de Direito e a partir do disposto no art. 182 da Constituição Federal de 1988 e do
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), incorpora o ideal de “cidade para todos”,
assim como apregoava Henri Levébvre.2
O ideal de uma cidade justa e inclusiva, que sirva como espaço material para a
realização plena dos direitos de personalidade, é elaborado a partir da interpretação
sistêmica do texto constitucional, cujo art. 1º reconhece a primazia do princípio da
dignidade da pessoa humana e o dever estatal de combater as desigualdades sociais
e de erradicar a pobreza. A Constituição, além de af‌irmar a necessidade de o espaço
urbano cumprir sua função social para garantir o bem estar aos habitantes da cidade
(art. 182), af‌irma os direitos fundamentais ao patrimônio cultural e ao ambiente
ecologicamente equilibrado (arts. 216 e 225), compondo, assim, a base jurídica
para que se possa identif‌icar o conteúdo de danos extrapatrimoniais causados pela
violação de funções da cidade.
Colocam-se como questões para o presente estudo: a responsabilidade civil é
adequada ao enfrentamento dos danos urbanísticos e à compensação de danos mo-
1. MELLO, Cláudio Ari. Elementos para uma teoria jurídica do direito à cidade. In Revista de Direito à Cidade.
V. 09, n. 2, p. 437-462.
2. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001, p. 19.
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rais coletivos associados a tais categorias de lesões? Qual o conteúdo do dano moral
coletivo urbanístico?
Para dar conta destes questionamentos, em primeiro lugar propomos uma ref‌le-
xão sobre a possibilidade de a responsabilidade civil ser um instrumento adequado
ao enfrentamento dos danos à ordem urbanística, pontuando, de início, a necessi-
dade de enfrentar a imprecisão conceitual do “dano urbanístico”. A expansão das
funções da cidade, relacionada à ampliação das necessidades existenciais humanas,
torna complexa a caracterização do objeto material suscetível de dano, suscitando
a importância de problematizar se essa categoria de danos limita-se a impactar a in-
fraestrutura urbana, ou se alcança aspectos imateriais, como o sossego e a qualidade
de vida.
Em segundo lugar, procuraremos demonstrar a importância dos conceitos de
imaginário e de sensibilidade para a identif‌icação dos valores de uso que se projetam
sobre a cidade, esta def‌inida como um bem sociocultural. Por f‌im, avançaremos
sobre hipóteses de danos morais coletivos associados a lesões à ordem urbanística,
procurando identif‌icar as situações em que haverá, ou não, sobreposição com o dano
ambiental e com outras categorias de danos a direitos de personalidade.
2. A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS À ORDEM URBANÍSTICA
A conf‌iguração do direito à cidade sustentável representa uma importante
transmutação no objeto do Direito Urbanístico, cuja origem remete para a tutela do
ordenamento territorial, de padrões estabelecidos no plano diretor e em leis de zonea-
mento.3 Esse ramo do direito, responsável por garantir os padrões do desenvolvimento
urbano, surgiu como reação do Direito Público para a solução de problemas urbanos
associados ao crescimento desordenado das cidades. A ratio de seus instrumentos
passa pela categorização das coisas em bens jurídicos, públicos ou privados, a f‌im
de que seu uso possa ser planejado, garantindo-se segurança jurídica e estabilidade
às relações sociais, pressupostos inafastáveis para o desenvolvimento da sociedade
e para o exercício dos direitos proprietários. Em sua gênese, é movido por crenças
higienistas, liberais e desprovidas de preocupações com a justiça social.
Todavia, com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da
Cidade (Lei 10.257/2001), o cenário de atuação do Direito Urbanístico altera-se
completamente. O art. 182 da Constituição Federal de 1988 prevê que “a política de
desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme dire-
trizes gerais f‌ixadas em lei, tem por objetivo o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes”. O § 1º do dispositivo
impõe a obrigatoriedade de elaboração do plano diretor para municípios com mais
de vinte mil habitantes, e o § 2º af‌irma que “a propriedade urbana cumpre sua função
3. Idem, p.36.
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